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4. TIC´s E PROCESSOS DEMOCRÁTICOS

4.5. Cidadania e cidadania online: alguma diferença?

4.5.1. Cidadãos do século XXI

Néstor García Canclini analisa como as mudanças nos modos de consumo alteraram as

21 A emenda foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça em 17 de novembro de 2010. Disponível em

http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/11/17/comissao-do-senado-aprova-proposta-de-realizacao-de-plebiscitos- por-iniciativa-popular-923044464.asp. Acesso em 20/11/2010.

formas e possibilidades de se exercer a cidadania. Aliado às mudanças na perspectiva do consumo, lembra-nos do esgotamento dos grandes projetos políticos, que também contribui para as mudanças estruturais da cidadania. Para melhor entender, recorremos às palavras do

autor: “Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos [...]

recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.” (CANCLINI, 1999, p. 37).

O ponto de partida de Canclini é um consumidor cidadão, cuja participação cívica se dê pelo consumo consciente de bens e cultura. A identidade desse cidadão constitui-se por meio do consumo, ou do que se deseja consumir. Já a cultura de hoje é um “processo multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer

cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar” (CANCLINI, 1999, p. 41).

Assim como a cultura do efêmero, de valores dinamizados, as decisões políticas e econômicas se dão em função das seduções imediatistas do consumo.

Canclini sugere, entre outras coisas, que se repense o sentido da cidadania e do consumo. O autor quer desconstruir as concepções que julgam o comportamento dos consumidores como irracionais, tanto quanto aquelas que veem os cidadãos atuando em função da racionalidade ideológica. Segundo o autor, o exercício da cidadania é a relação social existente na política. Porém, há várias facetas dessa cidadania: pode-se exercê-la por meio da cultura, do cuidado com o meio ambiente e da consciência racial. Alcançar-se-ia a cidadania comprando-se produtos ecologicamente corretos, boicotando os ilegais, como os falsificados e as empresas que utilizam mão de obra infantil, ou que não se responsabilizam pelo bem-estar de seus funcionários, por exemplo.

Canclini afirma que, hoje, é o mercado, não mais o Estado, o responsável por estabelecer um regime convergente para as formas de participação na vida pública, e o faz por meio da ordem do consumo. Dessa forma, acredita ser necessário pensar numa concepção estratégica que revise os vínculos entre Estado e sociedade e que admita as novas condições culturais de rearticulação entre público e privado, feitas pela da reestruturação social e com a ascensão dos meios de comunicação de massa (CANCLINI, 1999, p. 48).

No que se refere à mudança estrutural da sociedade, Canclini, retomando, sem o dizer, o pensamento habermasiano sobre a esfera pública e as ideias de Hannah Arendt sobre o fim da vita activa, reconhece que o cidadão, como representante de uma opinião pública, deu

lugar a um cidadão interessado em qualidade de vida.

Uma das manifestações desta mudança é que as formas argumentativas e críticas de participação dão lugar à fruição de espetáculos nos meios eletrônicos, em que a narração ou simples acumulação de anedotas prevalece sobre a reflexão em torno dos problemas, e a exibição fugaz dos acontecimentos sobre sua abordagem estrutural e prolongada (CANCLINI, 1999, p. 52).

O autor sabe que a perda da eficácia das formas tradicionais e ilustradas de participação cidadã (partidos, sindicatos, associações de base) não é compensada pela incorporação das massas como consumidoras ou participantes ocasionais dos espetáculos que os poderes políticos, tecnológicos e econômicos oferecem, através dos meios de comunicação de massa. Mesmo levando em consideração essa mudança, para Canclini, “poderíamos dizer, que no momento em que estamos a ponto de sair do século XX, as sociedades se organizaram para fazer-nos consumidores do século XXI e, como cidadãos, levar-nos de volta para o século XVIII.” (CANCLINI, 1999, p. 53).

Após dois séculos de profundas reestruturações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e especialmente culturais, como retroceder a um século no qual os principais meios de informação eram os periódicos impressos e não os eletrônicos, como agora? Junto a essas mudanças e aos avanços tecnológicos, sobreveio outra cultura, na qual os contatos face a face são cada vez mais esparsos; as identidades formam-se pela multiculturalidade veiculada pelos meios eletrônicos; a mídia transmite centenas de informações por minuto, sem contextualizá-las adequadamente; as necessidades de consumo são geradas em tempos cada vez menores; a política se desfaz nos discursos espetacularizados, também pelo mercado; o exercício da cidadania, em resumo, dá-se no momento do voto e, mesmo assim, muitas vezes, essa pseudoatitude democrática está impregnada por um capitalismo agonizante, pela busca doentia por geração de lucro e enriquecimento individual.

Em seu discurso antineoliberal, Canclini salienta que a globalização, dentre outras coisas, é responsável pelo fato de mais de 40% da população latino-americana não ter emprego estável e condições adequadas de segurança (CANCLINI, 1999, p. 42-43). Como pensar num consumidor consciente de suas funções como cidadão se quase metade da população da América Latina não tem renda fixa e muitas vezes precisa pagar pela sua própria segurança? Isso sem mencionar outros índices que mensuram os níveis socioeconômicos e culturais duma população.

estar em expansão no Brasil. Marketing de causa ou marketing social, produtos conscientes e, mesmo, a nova responsabilidade social são, na maioria das vezes, máximas de empresas mais preocupadas com o retorno de seu capital do que com o bem-estar social. Estratégias econômicas, principalmente.

As perspectivas de que esse consumo consciente crescerá a passos largos nas próximas décadas são otimistas em demasia, tanto quanto o idealismo de Canclini, cujo pensamento projeta a emergência e consolidação de novas formas de cidadania via consumo.

Para que o consumo se transforme em uma estratégia política, como quer Canclini, entende-se que deva ser massivo. No entanto, o consumo de massa que se conhece hoje visa, antes, à aquisição pelo preço do que por produtos politicamente corretos, mesmo porque, em se tratando especificamente de Brasil, a grande massa de consumidores sequer tem noção do que é ser um consumidor consciente; pois sua preocupação está em conseguir o melhor preço. Canclini acredita, porém, que o consumo serve para pensar, pois, “quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos com que nos integramos e nos distinguimos na sociedade civil, com que combinamos o pragmático e o aprazível.” (CANCLINI, 1999, p. 45).

O desenvolvimento tecnológico é um grande aliado das minorias e dos pequenos grupos bem definidos em nichos de mercado. “Os consumidores são produtos, frequentemente vendidos aos anunciantes.” (SUNSTEIN, 2003, p. 28).

O consumo até pode servir para pensar, entretanto só faz pensar àqueles acostumados com o exercício racional em outras tarefas diárias, na profissão, lendo periódicos, participando de discussão política ou cultural, etc. – ou seja, pouquíssimas pessoas.

Não há como exigir que um trabalhador assalariado compre produtos culturais em lojas autorizadas se no mercado informal são encontrados por menos da metade do preço. Fica difícil exigir consciência de pessoas cujo nível de instrução é mínimo; que trabalham 15 horas por dia e que, para sustentar sua família, fazem dívidas no crescente mercado de financeiras populares; que compram um eletrodoméstico em 12 parcelas de 10 reais; pessoas que jogam seus lixos nas ruas; que mandam suas crianças para sinaleiras, que não controlam a natalidade, e cujo lazer é assistir a programas de auditório no final do dia.

O exercício da cidadania, hoje, pode ocorrer de forma isolada, por indivíduos reunidos em pequenos grupos, por ONGs ou por empresas privadas que exercem (ou dizem exercer) a responsabilidade social. Apesar de os estudos científicos ainda não terem conseguido

quantificar o retorno financeiro que as ações sociais trazem às empresas, estas não perdem de vista o retorno de capital que terão ao disponibilizar uma creche aos filhos de funcionários, por exemplo, ou ajudar a um grupo indígena na sua autossustentabilidade, comprando-lhes produtos artesanais. Perguntar se o consumidor consciente preferiria produtos dessa corporação ao de outra socialmente não responsável envolve vários fatores, tais como o conhecimento de empresas que exercem tais ações, a consciência de que a responsabilidade social beneficia ou pode vir a beneficiar determinada comunidade, o valor do produto em comparação a outros, etc. Além disso, a entrada e o estabelecimento no mercado de micro e pequenas empresas socialmente responsáveis precisam ser garantidos para que o processo de consumo consciente seja posto em prática com maior força.

Hermílio Santos (2004) afirma que a participação dos indivíduos nos processos de interação social contribui para o exercício da cidadania. Seguindo uma perspectiva sociológica de análise das mídias, Santos entende que estas podem desempenhar importante papel para o fortalecimento da cidadania, quando segmentos sociais marginalizados apropriarem-se das mídias e passarem a produzir conteúdos midiáticos (SANTOS, 2004, p. 129).

O indivíduo torna-se cidadão pela educação. Ninguém nasce cidadão. É necessário formar-se para ser cidadão. Atualmente, contudo, sabe-se que a maioria não tem condições para exercer sua cidadania na rede, ainda que tenha, muitas vezes, condições de passar uma ou duas horas navegando em sites de jogos e redes sociais.