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C) Construindo narrativas fotográficas

3 ENREDANDO POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM A EDUCAÇÃO DE JOVENS E

3.2 Tecendo os cotidianos

3.2.1 Alguns fios da teoria: as “vias de atalho”

Os fios teóricos que Machado Pais (2003, 2008, 2012) nos traz e as discussões acerca da “Sociologia da Vida Cotidiana” defendem o cotidiano como “alavanca/rota do conhecimento”. Um cotidiano visto para além daquilo que se repete, como “uma parcela isolável do social”, é sim tudo aquilo que traça nossa trajetória de vida. (PAIS, 2012). Logo, um território complexo que desafia os pesquisadores a buscarem outras formas de olhar para esse cotidiano, como afirma Carmem Perez (2003).

Defende-se que o cotidiano não é um objeto empiricamente delimitado, mas uma “alavanca metodológica de conhecimento” dessa empiria, uma “metodologia de ignição” que toma como relevante e significante o que aparentemente não o é. Uma perspectiva cuja preocupação consiste em não só ver a sociedade ao nível dos indivíduos, mas ao mesmo tempo em ver como essa sociedade se reflete na vida desses indivíduos, cuidando em não perder de vista a historicidade desse cotidiano, que permite compreender como as sociedades e os indivíduos se transformam por força conjunta das estruturas sociais e das soluções individuais. (PAIS, 2013).

Um cotidiano que perpassa todas as esferas da vida social e tem na experiência a base fundamental do seu conhecimento. Busca o como e o porquê do que acontece na vida e, para que isto aconteça, o conhecimento científico não pode deixar de se mover no mundo das experiências cotidianas, pois é nas sutilezas desse mundo repleto de mistérios, ocultações, incertezas, imaginações, artimanhas, memórias, representações e significados, que Martins (2014, p.10) alerta para a necessidade de “compreender o fugaz e episódico [...] os disfarces e as escamoteações da realidade”. É nesse “território interstício, nesse entrelugar [...] privilegiado de produção das existências e dos conhecimentos” (OLIVEIRA, I, 2001, p.40) que a complexidade da vida cotidiana precisa ser investigada em seus processos microssociais, “recusando as certezas enganosas do convencional”, (MARTINS, 2014), duvidando do que vê e vendo além do que é patente.

Estudar o cotidiano, segundo Inês Oliveira (2001, p.10), é buscar o que está “escondido nas dobras cinzentas do irrelevante e do que aparenta ser mínimo”. Um cotidiano está “semeado de maravilhas [...]”, segundo Certeau (2012, p.245), e como um fenômeno das sociedades modernas está embebido na vida cotidiana, uma vida consolidada com o crescimento das forças produtivas e a entrada na modernidade, (DURAN, 2009), mas que se revela a partir das lentes que a observam.

Martins (1998) vem afirmar que, no momento em que tombam as grandes certezas na sociedade capitalista, entram em crise as grandes estruturas de riqueza e poder, e a sociedade é reinventada. Reinventa-se a sociedade e a vida cotidiana torna-se o centro do interesse e

refúgio de céticos, por ser o lugar em que os processos de interação entre os seres humanos ganha relevância, tornando-se ponto de referência das novas esperanças dessa sociedade.

Sociedade que nunca é a mesma, visto que nunca sabemos tudo sobre ela e o que dela sabemos nunca é o suficiente para dar conta da mesma. É nesse terreno movediço, híbrido, opaco, cindido, permeado pelas incertezas, que se movem os seres humanos. Espaço privilegiado de produção de nossas existências, crenças e valores, onde estamos e onde nos tornamos o que somos. (MARTINS, 2014; OLIVEIRA, 2001; FERRAÇO, 2001; ESTEBAN, 2006).

Concordo com os teóricos que defendem que o estudo da vida cotidiana evidenciaria as interações quase que constantes entre os seres humanos em suas rotinas diárias, agindo de forma criativa, de modo a reinventar “a realidade que não é fixa ou estática”, mas criada a partir dessas interações, (GIDDENS, 2008), o que por sua vez daria a esses seres humanos a condição de se reinventarem diante das desolações [im]postas pela nova ordem social.

Segundo Martins (1998, p.2), é do/no cotidiano que emerge “o novo herói da vida”, o “homem comum”. E nesse “pequeno mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia, das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimentos sociais”. Um mundo que, para além da concepção que permeia o imaginário social como o espaço da cópia, da reprodução da vida, da rotina como repetição, é também segundo Giddens (2008) o espaço das constantes interações sociais. Compreendendo estas interações como qualquer tipo de encontro entre as pessoas pelo simples fato de se comunicarem, gesticularem ou mesmo ao passarem umas pelas outras na rua e se entreolharem. É no micro espaço das interações cotidianas que nossas vidas são organizadas em torno da repetição, de normas, de rotinas, enfim, de nossos padrões.

Giddens (2008) não está afirmando que a vida cotidiana é um repetir-se, mas que a construção dessa vida não é necessariamente pensada racionalmente todo o tempo, visto que o fato de estarmos vivos inevitavelmente nos leva a agir e, à medida que realizamos nossas atividades aparentemente triviais, recriamos a realidade que não é fixa e muito menos estática, pois é criativamente moldada pelos encontros entre os indivíduos em seus processos interacionais.

Corroborando com a tese de Giddens (2008), Pais (2012) vem afirmar que é no fazer cotidiano de nossas vidas, com suas repetições e interações, que criamos possibilidades de sobrevivência individual e coletiva, inventando assim nossas “rotinas”, não pensando a rotina como repetição, mas como “rota, caminho”. E é justamente o estudo dos comportamentos desse “novo herói da vida”, (MARTINS, 1998), esse “homem ordinário e insubmisso”,

(CERTEAU, 2012), que possibilita o conhecimento dos significados que são compartilhados e reinventados por esse homem continuamente e não simplesmente copiados ou repetidos sem nenhum reconstruto, sem a reelaboração resultante do “desvio”, ou seja, das “maneiras de fazer” desse sujeito, preocupação primeira dos estudos de Certeau.

Certeau apresenta-nos o “cotidiano como invenção” de seus praticantes, do “caminhante inumerável”. O território em que vivem os heróis anônimos, os “produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade”, (CERTEAU, 2012, p.91). O espaço das práticas do “herói comum” que desenha indeterminadas trajetórias nas redes institucionalmente reguladas por onde passa, abrindo novos cursos nas “águas reguladas”, culminando assim com a reinvenção desse lugar pelas “práticas do desvio”.

Desvio que, segundo a sociologia do cotidiano, reconfigura os acontecimentos a partir das maneiras como os usuários operam sobre os produtos que consomem, ou seja, as “maneiras de fazer” dos praticantes do cotidiano, na produção de suas existências que, na espuma da aparente repetição, fazem emergir da prática do desvio uma nova prática. É esse desvio, a “tática do fraco no terreno do forte”, que possibilita a ebulição dos “novos produtos culturais” de forma disseminada e anônima. (CERTEAU, 2012; PAIS, 2012). Produtos culturais estes que, nesta tese, podem ser observados nas práticas cotidianas dos estudantes e dos professores na/da Educação de Jovens e Adultos.

Como na arte da guerra, as táticas de Certeau são as astúcias dos sujeitos ordinários, materializadas nessas práticas, nas “artes de fazer” que evidenciam a contestação do que é legítimo. Práticas produzidas pelos praticantes, aproveitando-se de determinadas situações de fragilidade da ordem, utilizando-se das “práticas do desvio” para minar a estrutura que sustenta essa ordem e assim atacá-la, dar golpes no terreno do inimigo, provocando os deslocamentos que reconfiguram as “maneiras de fazer cotidianas”.

A engenhosidade do fraco se dá em “seu não lugar” e “depende do tempo”, pois se insinua na ausência do olhar panótipo, momento em que “fraco” astuciosamente calcula o golpe e utiliza-se de táticas diversas para vencer as estratégias dos “fortes”, ou seja, nas práticas cotidianas das pessoas na escola pode-se perceber detalhes, minúcias que, se somadas umas as outras, podem se tornar evidências da existência de um universo “paralelo” àquele institucionalmente legitimado. Um universo onde a vida brota/borbulha, insinua-se de todos os lugares, em todas as direções, e se apresenta nas mais diversas “maneiras de fazer” a vida nessa escola.

Por exemplo, é na burla, na resistência à ordem, nas escapadelas, matando as aulas, fugindo para o lugar de ficar consigo mesmo ou até para o banheiro da escola que jovens e adultos dão seus “golpes”, por outro lado, é na não aceitação de um currículo que não acredita fazer sentido para os estudantes, na proposição de atividades que tragam sentido, na não aceitação da condição de estudantes inferiores aos demais e em outras situações, que os professores dão seus “golpes”.

Desse modo, a partir dos diversos contributos teóricos que possibilitaram a leitura do cotidiano estudado, nesta pesquisa esse cotidiano é compreendido como espaço reinventado a partir das táticas de seus praticantes. Táticas que criam novos caminhos, “novas rotas”, como “percursos de trespasse” que revelam a vida na sua “textura”, para além da “aparente” repetição.

Acredita-se, desse modo, que o cotidiano é um pouco de cada coisa e ao mesmo tempo não se prende a nenhuma delas, pois, qualquer que seja a forma de ver/ler/tecer sua leitura, ele será sempre uma incompletude diante da grandeza da vida. Seja pelas “táticas de seus praticantes” (CERTEAU, 2012), ou pela “soma das insignificâncias” (LEFEBVRE, 1991), o cotidiano é “a matéria prima”, ele é a fonte primária e primeira de todo conhecimento, pois é o vivido.

Diante disso, ao mergulhar nos cotidianos escolares, tem-se claro que a vida não se esgota na leitura do instituído, portanto, não pode ser definida tão somente pelas normas e regras sociais, pelo modelo/sistema no qual os seres humanos se inscrevem, mas deve ser lida pelo que os sujeitos praticantes fazem desse/nesse/com esse modelo/sistema, conforme sinalizam as preocupações de Oliveira e Sgarbi (2008). Ademais, é na complexidade do enredamento da vida que salta nesse/desse modelo/sistema social que se deve estudar as redes cotidianas que ganham novos fios a partir das formas como esses praticantes recriam a realidade na qual supostamente são/estão submissos, questões que serão mais bem tratadas na subseção abaixo onde se discute especificamente o cotidiano escolar.