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C) Construindo narrativas fotográficas

3 ENREDANDO POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM A EDUCAÇÃO DE JOVENS E

3.3 As culturas [Escolares e Juvenis] na/da Educação de Jovens e Adultos

3.3.2 Cultura escolar – cultura da Escola

A cultura é uma noite [oceânica] escura em que dormem as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas práticas -, mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos, atravessam-na; aparecimentos e criações que delineiam a chance de um outro dia. Noite oceânica que me fascina e me interroga.[...] Cada cultura prolifera em suas margens. Produzem-se irrupções, que designamos como “criações” relativamente a estagnações. Bolhas soltando do pântano, milhares de sóis explodindo e se apagando na superfície da sociedade. No imaginário oficial, elas figuram como exceções ou marginalismos.

(CERTEAU, 2013 , p.239-242)

Faz-se necessário concordar com a afirmação de Certeau (2013) quando pensa a cultura escolar como “uma noite oceânica”, profunda, escura e, por certo, o “esconderijo” de outras tantas culturas. Ela é o oceano onde são enredadas interações e intercâmbios que desafiam o olhar treinado dos pesquisadores, que como “pirilampos” ou “grandes pássaros noturnos” aventuram-se a “atravessá-lo”, na tentativa de fazer emergir os indícios das “revoluções” urdidas nas profundezas.

A partir do que diz Certeau (2013), considero ter mergulhado nessa noite escura em busca dos atravessamentos produzidos nas fronteiras desterritorializadas das microculturas, que promovem “irrupções”, “criações” e eclodem como “bolhas”, ou mesmo como “sóis explodindo e se apagando na superfície” dessa noite. É justamente nas interações promotoras desses atravessamentos/entrecruzamentos/intersecções que emergem as “práticas marginais”, práticas que, por vezes, figuram nas margens do instituído, burlando, resistindo e reconfigurando as profundezas da cultura escolar.

Ratifico a defesa feita por Pérez Gómez (2001) quando, ao tratar da cultura escolar na sociedade neoliberal, alerta para o fato de que essa análise requer muito mais que uma explicação causal, visto que “conhecer, a própria cultura é um empreendimento sem fim”, imaginemos este desafio potencializado, ou seja, conhecer “as culturas dos outros”. Empreendimento que se avoluma se pensar que as culturas são sistêmicas, possuem caráter indeterminado e ambíguo e estão sempre abertas à interpretação.

Em se tratando da cultura escolar, os estudos vêm assumindo papel relevante dentre as pesquisas que tomam a escola e seu cotidiano como objeto de estudo desde a segunda metade do século XX. Essas pesquisas, apesar das diferentes abordagens que assumem, têm evidenciado dois polos de reflexão: um primeiro incide na constatação da escola em seu caráter homogeneizador, ou seja, discutem a escola “enquanto instituição com uma prática social própria e única”, (SILVA, 2006), e cuidam da descrição dos elementos que a emolduram como uma instituição semelhante em qualquer lugar do planeta.

Esses estudos caminham no sentido de pensar a cultura escolar naquilo que lhe é próprio, um olhar da cultura em sua matriz mais conservadora, a partir de seus aspectos latentes, como o conjunto dos elementos que a consolidam como instituição, a exemplo de seus princípios, critérios, normas, práticas, condutas, modos de pensar e de atuar, hábitos, ritos, materialidade física, simbologia, significados, entre outros. (VIÑAO FRAGO, 1995; DOMINIQUE JULIA, 2001; FORQUIN, 1993).

Outra vertente das pesquisas busca compreender como os sujeitos da escola produzem essa cultura e como são por ela produzidos.

Defendendo que a cultura é perpassada por uma “trama de interconexões relacionais entre os atores e as diversas culturas” (MARINHO, 2014, p.116), o que consequentemente provoca deslocamentos que reconfiguram a paisagem do cotidiano escolar a partir de “trajetórias indeterminadas, aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam”. (CERTEAU, 2012, p.91).

São polos de reflexão que, a princípio, parecem antagônicos, no entanto o tensionamento advindo dessas reflexões pode ser mais bem compreendido se pensarmos que os defensores da “cultura escolar” sob as bases funcionalista e estruturalista vinculam a ideia de escola como transmissora de uma cultura fabricada no macrossistema, no âmbito de uma organização racional “determinada e nivelada por uma cultura societal”, produzida fora da escola e num outro polo de reflexão temos a discussão acerca da existência de uma “cultura da/de escola”, o que alguns preferem chamar de “cultura organizacional escolar” a qual se sustentaria sob a perspectiva interacionista, onde “a cultura da escola é a cultura organizacional escolar, (...) portanto, particular. (CARVALHO, 2006, p.4).

Nisto reside as especificidades locais consideradas face a uma cultura global de caráter homogeneizante na qual todas as escolas se assemelham seja por suas características materiais – a exemplo das estrutura física e equipamentos, espirituais – no que diz respeito a seus ritos, mitos, comportamentos, formas de ser, ou mesmo pelas questões pedagógicas materializadas nos currículos, nos sistemas de avaliação, de gestão dentre outros.

De certo, inúmeras definições e até mesmo a ausência de delimitações acerca da cultura escolar abre margem para as diversas análises e, nesse sentido, é possível dizer que há autores que referem que falar em cultura escolar, cultura da cultura da/de escola, da cultura organizacional escolar traz em si o mesmo centro, sendo que cada análise tomaria formato específico a depender da abordagem sobre a qual fosse tomada, se sociológica, antropológica, histórica ou outra (POL, 2007; CARVALHO,2006; SILVA,2006, MARINHO, 2014).

Se pensarmos a partir dos estudos de Barroso (1996; 2006), Torres (2003; 2005; 2008), Forquim (1993), Silva (2006), entre outros, veremos que os polos de reflexão possuem suas especificidades, mas que em determinados momentos as concepções de “cultura escolar” e de “cultura da escola” têm suas fronteiras dissipadas, ou seja, há uma confluência quando se acredita que a escola regida pelo “princípio da homogeneidade” (BARROSO, 2006) e constituída como reprodutora de “um conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos [...]” imperativamente anteposto à instituição (FORQUIN, 1993) é um espaço marcado pela “didatização” de suas práticas traduzidas pelas relações de poder as quais determinam o “substrato do processo educativo” (BARROSO, 2006, p.2). No entanto, há que se pensar que nessa/dessa mesma escola brotam culturas gestadas no seu interior, a cultura da escola, compreendida como as práticas escolares, as táticas astuciosas operadas no lugar praticado pelos passantes desse lugar (CERTEAU, 2011) e trazem à superfície as especificidades de uma determinada instituição atribuindo-lhe traços únicos, são os “acontecimentos” que emergem das profundezas da cultura escolar homogeneizante.

Isto posto, assume-se nesta pesquisa a compreensão de que o estudo da cultura escolar traz a cultura da escola, compreendendo-a conforme argumenta Silva (2006, p.206) ao afirmar que:

Seja cultura escolar ou cultura da escola, esses conceitos acabam evidenciando praticamente a mesma coisa, isto é, a escola é uma instituição da sociedade, que possui suas próprias formas de ação e de razão, construídas no decorrer da sua história, tomando por base os confrontos e conflitos oriundos do choque entre as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e gestão, nas suas práticas mais elementares e cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer tempo, segmentado, fracionado ou não.

Conforme Silva (2006), não é a mudança terminológica que traz em seu bojo uma mudança substancial, mas a forma de conceber a cultura escolar, que em si é portadora da cultura da escola. É uma mudança de concepção acerca do que é a escola como instituição que vai da cultura da “homogeneidade virtual” à “heterogeneidade real”. (BARROSO, 2006).

Não se não nega a existência das relações de poder gestadas em nível macro, mas ultrapassa as amarras institucionais, em nível micro, produzindo assim uma “cultura da escola”, uma “cultura organizacional escolar”, algo que diz respeito às características de cada cotidiano.

Desse modo, a cultura da escola a singulariza, considera seus sujeitos, seus ritmos, ritos, linguagens, imaginários, modos próprios de regulação, resistência e transgressão, ou seja, estamos diante do que realmente são as instituições escolares como ambientes ecológicos. Diante disto, a posição adotada nesta pesquisa se movimentou no sentido do

estudo da cultura da escola, estudando o cotidiano para assim capturar as práticas que singularizam a instituição.

Algumas evidências de que as pesquisas acerca da cultura escolar tem tomado esse curso é o que pode ser observado no texto de Knoblauch [et.all.] (2012), que sistematiza os resultados de vinte anos de pesquisas [1987-2007] acerca da produção stricto sensu sobre a temática, com base no Banco de Dissertações e Teses da Capes.

Os resultados evidenciaram que os estudos não tratam, necessariamente, da caracterização dos “protagonistas que atuam no espaço escolar”, ou mesmo da descrição daquilo que é próprio dessa cultura, mas reafirmaram o que dissera Azanha (1991), no início dos anos 90 do século passado, quando surge a necessidade das pesquisas acerca da cultura escolar se mostrar como uma possibilidade de encontrar mecanismos para enfrentar a “crise da educação brasileira”. O autor afirmava que esses estudos não cuidavam em estudar apenas os protagonistas da escola, mas em “descrever as práticas escolares e os seus correlatos (objetivados em mentalidades, conflitos, discursos, procedimentos, hábitos, atitudes, regulamentações, ‘resultados escolares’ etc.)”. (AZANHA, 1991, p.67). Estava em evidência a preocupação com o estudo da “cultura da escola”.

Pode-se inferir que, apesar da produção acadêmica apresentar preocupação por estudar as questões patentes da cultura escolar em sua perspectiva funcionalista/estruturalista, já se percebia desde os anos 90 um movimento no sentido de “estudar a/na escola” a partir daquilo que era produzido no seu interior.

Com base nas diversas leituras que tratam da “cultura da escola” ou “cultura organizacional escolar” (CAIXEIRO, 2011; SANTOS GUERRA, 2002; SILVA, 2006; MARINHO, 2014; TORRES, 2005, 2007), é possível pensar que essa cultura é tecida a partir das relações que vão sendo “fiadas”, ou seja, culturas que vão sendo produzidas a partir de seus fios, os quais vão tecendo a rede de relações e intercâmbios que possibilita a circularidade entre os diversos contextos culturais.

É sabido que a cultura escolar pertence a um contexto social mais amplo, o contexto da “cultura global” (SANTOS GUERRA, 2002), lido como o “macrossistema” (BRONFENBRENNER, 2002) de onde provêm os elementos que influenciam direta ou indiretamente as práticas escolares nos mais diversos sistemas, nas “microculturas”, conforme se pode observar na paisagem cultural da Figura 4, que traz o cotidiano escolar e a multiplicidade de culturas que o constitui.

Figura 4 - O cotidiano escolar: paisagem cultural e microculturas

Fonte: Da autora, 2015.

Numa perspectiva etnográfica, a paisagem cultural representada na figura acima, evidencia um cotidiano no qual as microculturas (FEIXA, 1994) movimentam-se em todas as direções, influenciando-se reciprocamente como sistemas entrelaçados, “culturas de fronteira”. (CANCLINI, 2003).

Microculturas como espaços onde os “fluxos de significados e valores” são movidos por pequenos grupos, ou mesmo “subsistemas”, se compreendemos esse cotidiano como “um ambiente ecológico” fundado por estruturas que se encaixam.

De certo, permeia a construção da vida nesse cotidiano o que Ginzburg (1987) chamou de “circularidade entre as culturas”. Culturas que se sobrepõem dadas as relações de poder, no entanto não é pelo fato de uma cultura nascer da resistência a essas relações que a ela é dado o status de cultura menor ou inferior. Todavia há processos de reconfiguração dessas culturas resultante das lutas cotidianamente travadas. Culturas de fronteiras tênues que se interpenetram, nas quais os sujeitos se constroem individual e coletivamente, microculturas que se interconectam em processos dinâmicos e não lineares de produção da vida.

É possível pensar que a cultura escolar constitui-se de vários elementos, dentre eles, as microculturas de seus sujeitos e espaços, conforme mostrado na Figura 4. Culturas que coabitam no interior da cultura escolar como produtoras de significados de grupos específicos e, nesse sentido, compreende-se que tal paisagem demanda outras definições. Todavia, estas não se configuram objeto de aprofundamento neste trabalho visto que nosso interesse consiste em estudar as culturas dos jovens estudantes – as culturas juvenis – que serão mais bem

discutidas na subseção a seguir. As demais, apesar de sua relevância e especificidades, perfilam nesse cenário para exemplificar a composição do mesmo.

Pode-se assim dizer que o estudo no/do cotidiano escolar e suas culturas se constitui, deveras, um contributo no sentido do entendimento do que se passa dentro da escola, bem como no seu entorno, pois busca a compreensão do que ocorre nesse espaço particular (DOMINIQUE JULIA, 2001), desinvisibilizando os fazeres ordinários dos praticantes (CHARTIER, 2000), submersos nas áreas pouco iluminadas da cultura escolar. (SANTOS GUERRA, 2002).