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No dia dezesseis de julho de dois mil e catorze, fui informada pela coordenadora pedagógica da escola que haveria uma gincana com os estudantes da EJA e que estavam em andamento as discussões acerca das temáticas que seriam trabalhadas nessa atividade. Como as observações em sala de aula ainda não haviam iniciado, tive a curiosidade de me aproximar um pouco mais das pessoas que teciam as discussões acerca da atividade. Senti que seria de fundamental importância “estranhar” essa prática que tem se tornado comum entre as atividades das escolas dado seu caráter recreativo e competitivo no qual os estudantes trabalham em equipe e têm suas habilidades físicas, motoras e intelectuais postas à prova.

Acreditava que, “caçando” as pistas que envolviam a atividade, por meio das observações, das conversas, das fotografias ou ainda das descrições densas, poderia chegar às evidências que levariam à constatação de que a gincana poderia ser um acontecimento que, ao escapar das amarras do instituído e desprender-se da convencionalidade da sala de aula, mobilizaria as culturas em circularidade no espaço da EJA.

Os dias se passaram e numa quinta-feira, dia trinta e um de julho de dois mil e catorze, após o encerramento das atividades do horário diurno, comecei um diálogo com a diretora da escola acerca de como se havia chegado aos temas que seriam trabalhados na gincana, a saber: violência, liberdade, cooperação, igualdade e solidariedade. A mesma informou que a ideia teria surgido da análise da realidade da comunidade e das demandas locais. Nesse dia, fui convidada para fazer uma “palestra” posterior ao acontecimento, como momento de avaliação das produções dos estudantes e seus professores.

Para a realização da “palestra” solicitaram-me e autorizaram-me fotografar as atividades precedentes à gincana, as quais estariam em andamento nas diversas salas de aula e, com o material em mãos, deveria produzir uma apresentação em power point que seria exibida no dia da premiação das equipes vencedoras, ou seja, no dia seguinte ao acontecimento.

O mergulho naquele cotidiano possibilitou-me a captura autorizada das imagens, dos pequenos vídeos com as atividades dos professores, dos ensaios dos estudantes, com a produção dos gritos de guerra de cada equipe e de seus materiais como: faixas, figurinos, encenações, cantorias, entre outras.

Às 19h15min, fui informada de que os professores fariam uma aula coletiva para a exibição do filme “Faroeste Caboclo”. O filme estava relacionado às atividades que

antecediam a gincana e traria para a discussão temáticas como: violência, drogas, preconceito racial, solidariedade, abuso de autoridade, corrupção, entre outros.

O grupo de professores convidou-me a assistir à aula na sala de projeção, ao que prontamente aceitei. Após organização dos equipamentos, os estudantes começaram a chegar. De repente, a sala está lotada. Os “quietinhos” sentavam-se mais a frente e ao centro da sala, enquanto que os “avoadinhos” buscavam as fileiras laterais e do fundo da sala, alguns se sentavam desordenadamente, outros colocavam os pés sobre as cadeiras, entretanto, todos estavam atentos ao filme.

Pairava um silêncio na sala, os estudantes se reconheciam no enredo do filme, faziam comentários engraçados, do tipo “mas que neguinho mais cabuloso”, quando o filme mostrava o envolvimento de uma jovem de classe média com um jovem negro, pobre e favelado, ou ainda quando a professora “puxou um fio de conversa” sobre o enredo e os jovens dispararam a falar “o crime não compensa”, outro dissera, “ele não estudou, não fez

nada, olha aí no que deu, acabou morto”. Outro demonstra atitude de preconceito com o

jovem e diz: “uma menina bonita daquela com um nego daquele”, já um outro retruca: “é

preconceito, é bullying”, um jovem estudante, da turma de trás, incomoda-se com as falas de

alguns colegas acerca do “cara que não estudou e deu nisso”, daí ele diz “tá cabuêtando aí é

cara!?” e o diálogo continua: “a menina tinha tudo, né, o pai bancava né?”, “mas ela não queria isso pra vida dela, né?”.

Em meio aos depoimentos a favor e contra o uso e venda de drogas, o envolvimento de “menina bonita” com “um nego daquele”, ou mesmo da violência entre os jovens negros, de classe e comunidades menos favorecidas, surge Jal, um jovem tímido, muito calado, sério, estudante, trabalhador, pai, que – de repente – na sua condição de “aluno” traz para a sala de aula sua experiência de vida e começa um longo depoimento acerca dos perigos que envolvem a venda e o consumo da maconha.

Por se tratar de temas presentes em seus cotidianos não foi difícil perceber o nível de reelaboração do saber escolar presente na prática de “exibição do filme”. Momentos como esse nos remetem à compreensão do que dissera Gallo (2007) ao tratar da “ordem do

acontecimento”, ou seja, a ordem “do inesperado, do inusitado”.

Uma situação qualquer que se “eleva por um instante, e é este o momento que é importante”, como dissera Deleuze (2008, p.218), o instante em que somos tomados de sobressalto, algo que nos escapa, surpreende-nos e nos conduz por outra rota de criação.

Olhos ávidos à projeção hipnotizavam os corpos, tornando-os espectadores atentos. O silêncio só era quebrado quando de repente apareciam cenas que “esquentavam o clima” entre

os atores a exemplo de romance, sexo, disputas entre grupos rivais, dentre outros. Fora isto, o silêncio invadia a sala.

Pode-se afirmar que essa prática precedente à gincana favoreceu um trabalho interdisciplinar, integrou as turmas e autorizou o processo de interação entre os próprios estudantes e entre estes e seus professores. Pôde-se perceber que tanto os estudantes jovens quanto os adultos participavam trazendo seus saberes, seu modo de ver o mundo e de viver e falavam usando expressões próprias a partir das experiências vividas. Às 22h00min a aula foi encerrada.

O dia sete de agosto de dois mil e catorze foi um dos dias escolhidos para uma outra etapa das atividades precedentes à gincana. Desta feita, a realização das atividades artísticas, das performances, das produções dos gritos de guerra, faixas, cartazes, músicas, paródias e assim por diante. A escola respirava um novo ar: estudantes e professores mostravam-se motivados, certa euforia tomava conta do lugar e resvalava pelos cantos da escola trazendo consigo uma sensação de desordenamento que desconcertava a cultura instituída e fundava uma nova ordem, que, se olhada a partir do macro, nada mais seria que uma cultura escolar “marginal”, todavia autorizada pelos sujeitos praticantes daquele lugar.

O acontecimento em andamento possibilitara ao cotidiano escolar se reconfigurar e, conforme Gallo (2007, p.21), ser compreendido “como o conjunto das coisas e situações que

acontecem na sala de aula e para além da sala”, “situações e coisas” operadas na

informalidade dos múltiplos espaços pedagógicos da escola. Assim, as observações capturavam as falas, as imagens, as minúcias do “esforço micropolítico de criação”, (p.28), que traçavam “linhas de fuga”, táticas de guerra dos sujeitos professores e estudantes no campo da EJA.

Era nítido o envolvimento dos sujeitos; creio que tanto em função da nota que a atividade da gincana traria, como pela “liberdade” maior que agora tinham de circular um pouco mais, rir dos próprios erros, enfim, algo mobilizador havia se instalado no cotidiano das práticas culturais da/na escola. Talvez seja aquele momento em que a escola se abre à “estranheza” das culturas juvenis e, assim, o “ruído que perturba” já não é tão intrigante, porque o “mundo da vida”, notadamente das culturas dos estudantes jovens, não é mais tão estranho à “ordem cognitiva da escola”, deixa de ser clandestino para ocupar um lugar de destaque no espaço instituído.

São acontecimentos como a gincana na escola que deslocam conceitos como os de “ordem/desordem” nos/dos lugares para a percepção de um lugar praticado/vivido por todos.

É o momento que Silva (2008, p.146) defendeu como a possibilidade da “coexistência do ser jovem e do ser aluno/a num tempo e espaço comum”, o da escola.

Prosseguindo a “caçada”, foram fotografados os estudantes e professores nas diversas atividades, nas salas de aula, nos corredores: cantando, pintando, tocando, dançando, enfim, vivendo uma prática singular, conforme se pode constatar no mosaico a seguir que traz alguns desses momentos.

Figura 17 - Práticas precedentes a gincana

Fonte: Arquivos da autora, 2014.

Nas fotografias que compõem o mosaico, podem-se observar práticas que mobilizam culturas, desinstitucionalizam os lugares de “estudar e aprender”, reordenaram os fazeres, todos são sujeitos da reinvenção do cotidiano que brota das/nas interações e por isso são visibilizados/enxergados/alcançados pelas práticas escolares.

Desloca-se a prática para o lugar da vida, do riso, do canto, da performance corporal. Novos atores surgem nesse cenário a exemplo de compositores, poetas, figurinistas, maquiadores, fanfarreiros, entre outros.

Nos “espaços de liberdade”, rui o arquétipo do “bom aluno”, dadas as múltiplas aprendizagens e encontros neles estabelecidos. Aqueles/as, outrora caracterizados como “a

geração sem sem”, os jovens “de menor” ressurgem como pessoas que “gostam da escola”,

de estar na escola, trazem suas contribuições, suas criações, seus jeitos de ser, suas linguagens, gingas, gírias, que produzem saberes autônomos, talvez “não autorizados”, “marginalizados”, mas conectados aleatoriamente originando outros modos de ser aluno. Talvez “não gostem de estudar” pela maneira como a instituição escola ainda resiste à entrada dos jovens na Educação de Jovens e Adultos, pois suas práticas conservadoras e imagináveis em nada consideram esses “novos” sujeitos. Assim, acreditando ser possível a

impermeabilidade de seu território, constrói-se um mundo “descolado” das práticas sociais e dos sujeitos reais.

Com as atividades em andamento, a semana que precedeu a gincana trouxe um movimento “estranho” à dinâmica da escola, por todos os “cantos” se viam os andantes, os sorridentes, os tocadores/músicos, cantores, enfim, aprendiam e ensinavam “livres” da convencionalidade dos ritos escolares.