• Nenhum resultado encontrado

2 FAZENDO O CAMINHO AO CAMINHAR: ITINERÁRIOS DE UMA

2.3 Tentativas de etnografar a escola: com quais ferramentas?

2.3.1 As observações participantes, abertas, sistemáticas, informais

[...] as práticas apenas podem ser acessadas por meio da observação, uma vez que as entrevistas e as narrativas somente tornam acessíveis os relatos

das práticas e não as próprias práticas. [...] a observação permite ao pesquisador descobrir como algo funciona ou ocorre. (FLICK,2009,p.203)

O ato de observar constitui-se o primeiro momento de qualquer pesquisa; mais especificamente da pesquisa antropológica e deve ser entendida como um processo de observação da vida cotidiana.

Dado o primado da coleta à observação, a caminhada na pesquisa etnográfica perpassa essencialmente pela capacidade do pesquisador-observador se posicionar no seio da comunidade estudada, não no sentido de ser igual ao outro, mas reconhecendo-se como ser cultural, estuda espaços e práticas culturais, estabelecendo uma relação de empatia necessária à aceitação e participação desse pesquisador no campo, do contrário, como afirma Flick (2009, p.210), não seria possível capturar a “perspectiva interna do campo estudado, e, ao mesmo tempo, sistematizar o status do estranho”. Exercício duplamente desafiador, visto que, como afirma Michael (2009,p.53), “a observação participante não é propriamente uma técnica de coletar dados, mas sim o papel do etnógrafo para facilitar sua coleta”. Logo, observar é função primeira e contínua na prática etnográfica.

Cavalleiro (2010) tecendo algumas considerações acerca da etnografia no contexto escolar, afirma que a observação sistemática dos fenômenos de interesse para o estudo dos fatos é uma das ações que constitui a abordagem etnográfica no contexto escolar. Segundo a autora, observar requer atenção ao contexto atentando para a emergência dos acontecimentos que serão selecionados e observados em maior profundidade, é o momento em que se dá a “ocorrência” bem como sua incidência e reincidência.

Flick (2009) apresenta três fases da observação participante: a primeira consiste na “observação descritiva”, a contemplação que fornece as primeiras leituras dos cenários e das pessoas, como o próprio nome diz, são as primeiras ‘descrições’, são estas que, mesmo ainda meio sem foco certo, sustentam a segunda fase da observação.

A segunda fase consiste num olhar mais direcionado, “focalizado” nos processos e problemas levantados inicialmente e que conduzem a um refinamento das questões mais objetivas da pesquisa, é o momento em que, na visão de Cavalleiro (2010), identifica-se “a ocorrência” que será objeto de aprofundamento na “observação seletiva”, pois, como o próprio nome refere, essa última etapa da observação participante concentra-se em “encontrar mais dos indícios e exemplos para os tipos de práticas e processos descobertos na segunda etapa.” (p.208). É o momento das observações em que o “olhar treinado” busca a compreensão dos aspectos de maior relevância.

Ainda nesse sentido, Flick (2009, p.203) ajuda-nos a compreender que a observação participante na pesquisa etnográfica tem como características:

a) um interesse especial no pensamento e na interação humana; b) localização no aqui e agora das situações e dos ambientes da vida cotidiana; c) uma forma de teoria e de teorização que enfatiza a interpretação e a compreensão da existência humana; d) uma lógica e um processo de investigação ilimitada, flexível, oportunista, e que requer redefinição constante daquilo que seja problemático; e) uma abordagem e um plano de estudo de caso em profundidade e qualitativos; f) o desempenho de um ou mais papéis de participante que envolva o estabelecimento e a manutenção de relações com nativos no campo; e, g) o emprego da observação direta em conjunto com outros métodos de coleta de informações.

As características da observação participante creditam-na a ser o instrumento de coleta que leva o pesquisador a mergulhar no campo assumindo a perspectiva de membro, influenciando e sendo influenciado pelo que é observado, mas mantendo o cuidado com o necessário estranhamento. Todavia, é preciso ter claro que a condução do estudo etnográfico em campo requer do pesquisador a compreensão da impossibilidade do controle de todos os elementos no processo de pesquisa, já que a captura da vida em tempo real não garante o êxito, se pensarmos que não há garantia de que naquele dia, naquele horário e naquela atividade algo acontecerá. Devido a essas limitações a observação não garante que todos os fenômenos serão capturados nas situações observadas.

Pode-se dizer que a observação participante configura-se como uma estratégia de campo que se ajusta a outros tantos processos de coleta de modo a obter o maior número possível de informações sobre esse campo e, a partir do processo de triangulação das várias fontes, tornar visível o invisível.

Pensando a observação participante como ação primária do participante-observador- participante, sua valorização constitui “a expressão de uma posição ético-política voltada para a melhor e mais rica compreensão dos fenômenos sociais, tendo como base o respeito aos indivíduos e grupos investigados”, conforme argumentação de Jorge Velho (2005,p.13) na apresentação da quarta edição brasileira do livro “Sociedade de Esquina”.

Posição que rejeita os julgamentos morais e/ou intelectuais fabricados pelo olhar da academia ou mesmo por minhas prévias ideias acerca de quem são e o que fazem as pessoas naquele contexto. É importante observar as práticas verbais e não verbais e as práticas pedagógicas, bem como as pessoas em ação e seus comportamentos concretos buscando a maior fidelidade possível ao que está sendo visto e não embeber as descrições em um olhar preconcebido.

Em se tratando desta pesquisa, as situações de observação deram-se em várias frentes, desde as observações iniciais, ou seja, as observações “descritivas” sempre acompanhadas das

notas no DCE, onde nada era deixado de lado pois qualquer fato poderia ser importante posteriormente, até o momento da observação “seletiva” dos acontecimentos eleitos na observação focalizada que serão profunda e sistematicamente estudados.

As situações de observação aconteceram entre agosto de 2013 e maio de 2015. Foram 115 dias na escola e, em todos os momentos, a observação se constituiu condição inerente à estada no campo e ao estudo da vida. Durante a pesquisa, no ano de 2013, as idas à escola aconteciam sempre às terças-feiras e durante os anos de 2014 e 2015 sempre que possível estava na escola todos os dias, as observações começavam muitas vezes já no turno vespertino, por volta das 14h00, pois sentia a necessidade de olhar a escola desde cedo e não somente no horário da aula dos estudantes da EJA, no noturno.

Como todo processo de construção do iniciante na etnografia, o prelúdio das observações também não se deu de forma tranquila, posto que precisava esperar para sentir- me confortável à estada prolongada num espaço estranho. Uma dessas situações registrada no DI narro abaixo:

Confesso que por mais que esteja consciente do papel que devo desempenhar na pesquisa etnográfica, sinto-me “forasteira” ao chegar a escola já no horário vespertino e me deparar com estudantes e professores diferentes. Mesmo com o apoio da gestão da escola e da informante-chave, ficar ali, na sala dos professores, pelos corredores da escola ou em qualquer outro lugar, traz um certo desconforto. Sinto vontade de ir embora e nunca mais voltar, mas ao mesmo tempo me pergunto: como “tomar pé da situação” se não insistir em olhar para esse cotidiano que agora me apavora? Sinto que é necessário vencer essa fase de insegurança, desconforto e incerteza, pois amanhã devo estar aqui novamente.

Desse modo, foram feitas diversas tentativas de “tomar pé da situação”, algumas delas frustradas. Talvez tenha batido na porta errada ou feito uma pergunta inconveniente. Vivia o dilema descrito por Foote Whyte (2005) quando descreveu sua entrada no campo ao pesquisar Cornerville.

Na verdade, o simples fato da imersão no campo não deu sentido a tudo que acontecia a minha volta e pensara como Whyte (2005) que numa atitude de humildade afirmara ter “a impressão de que fazia algo importante”, mas não conseguia explicar nem a si mesmo “do que se tratava”. (Idem, p.318). No/com o campo fui aprendendo que às vezes era melhor não perguntar nada, porque até para perguntar é preciso saber o que, quando e a quem, do contrário seria melhor não fazê-lo e simplesmente ficar ali, parada, “na esquina” de algum cruzamento na/da escola observando, não sei bem o que ou quem, só observando.

Ao longo da estada no campo, as observações tomaram direções diferentes conforme os objetivos da pesquisa e tornaram-se eixos centrais do olhar: a) os cenários da pesquisa: o

cotidiano escolar e seu entorno e b) os interlocutores/informantes na pesquisa, as pessoas da escola e os estudantes da EJA.

Para melhor treinamento do olhar, foi estruturado um roteiro de observação com alguns encaminhamentos que orientavam para onde e o que observar considerando o que era necessário enxergar.

Enquanto “cavava” algumas conversas ampliadas com as pessoas nos vários espaços da escola, procurava ajudar em atividades como: ornamentar murais, separar roupas e materiais no almoxarifado, fazer cartazes, auxiliar no cozimento dos alimentos da merenda escolar, montar apresentações em power point para apresentações da escola ou para as aulas de alguns professores, enfim, quando solicitada, ajudava em algumas situações, sempre tendo o cuidado de “não influenciar o grupo, porque queria estudar a situação da maneira menos afetada possível por minha presença”, conforme Whyte (Idem, p.305) alertara em seu trabalho, pois apesar de estar em busca da perspectiva do outro, não podia tornar-me o outro - o nativo.

Em algumas situações, as observações davam-se de modo menos sistematizado, o que não significa que fossem feitas aleatoriamente. A sistematização se deu com a elaboração do roteiro de observação que objetivou apreender os pormenores na produção da vida escolar. Esse roteiro tinha a função de nortear o olhar conforme descrito certa feita no DI.

Tenho um roteiro de observação do qual não me afasto quando estou na escola e principalmente na sala de aula, do contrário sentirei dificuldades para fixar o olhar naquilo que realmente é necessário. Tento não perder nenhum detalhe das aulas, das conversas paralelas, dos agrupamentos, das alegrias, enfim, dos comportamentos humanos, seja dos docentes e/ou dos discentes. Confesso que não tem sido nada fácil, mas tenho apurado o olhar no sentido de desnaturalizar práticas e comportamentos cristalizados, para ver além da aparente obviedade dessas práticas. Procuro “estranhar”. Tenho observado os acontecimentos cotidianos na/da escola sempre fazendo registros fotográficos e/ou gravações, bem como produzindo meu diário descritivo e/ou reflexivo. As observações e conversas nos corredores, na sala dos professores, no almoxarifado, na sala da direção e em tantos outros lugares, têm possibilitado pensar as entrevistas etnográficas.

No que diz respeito às observações de sala de aula, em um total de 40 em duas turmas dos anos finais do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos, totalizaram noventa e uma horas e trinta e cinco minutos de observação, registradas em 180 páginas de dois cadernos de campo, além das “descrições densas” (GEERTZ, 2013) de reuniões como conselho de classe e planejamentos, encontros entre a gestão e as famílias, bem como as atividades que mobilizavam os estudantes dentro ou fora do espaço escolar.

Da mesma forma que a entrada na escola e as observações do seu espaço não se deram de forma tão tranquila, a aproximação com as salas de aula não foi diferente, apesar de já estar na instituição há algum tempo. Essa constatação registrei certo dia no DCE:

Hoje, quinta-feira, dia 11 de setembro de 2014. É o primeiro dia de observação nas salas de aula. Estou tensa apesar de já estar há meses na escola e me sentir meio enturmada com os estudantes [mais]jovens e com os professores da EJA. Apesar disto, temo que minha presença cause algum desconforto ou mesmo provoque uma situação de aula que não é do feitio da escola. Uma situação que foge à regra para melhor ou para pior. Não sei muito bem o que ou para onde olhar, mas me apoio no roteiro de observação, ele pode me dá algumas “luzes”. Pretendo observar o contexto da sala de aula, as expressões verbais: as expressões linguísticas, elogios, depreciações, gírias, e assim por diante. Pretendo ainda observar as expressões não verbais como: a produção dos processos de aproximação e distanciamento, os comportamento que evidenciam a formação de vínculos e os laços de amizade, de aceitação, rejeição, preconceito, superioridade e inferioridade, os sentimentos, os comportamentos, as interações, os agrupamentos e por fim, as práticas pedagógicas materializadas nos processos de ensino e aprendizagem, nas relações entre professores e estudantes, se o que é ensinado propicia a reelaboração ou a mera reprodução do saber, enfim, quero ver se as culturas dos estudantes são ou não mobilizadas nas práticas docentes no interior da sala de aula e se estes processos promovem conexões entre a cultura escolar [os conteúdos, as normas disciplinares, a avaliação,entre outras]e a cultura dos estudantes.

O relato traz à cena a preocupação em ter clareza de para onde o olhar deveria ser direcionado, buscando apoio nas questões de partida da pesquisa, nos objetivos propostos e no roteiro inicial. Continuava “caçando-me”, na tentativa da autoconstrução no campo, pois acredito no que dissera Cardoso (2004, p.103): “[...] a formação do pesquisador propõe o planejamento de todas as fases de seu trabalho, mas não o prepara para ver com olhos críticos seus humores, cansaços e infortúnios enquanto observador participante; e nem explicita o mecanismo pelo qual se chega a descobrir novidades”.

Para além da escola, perambulei pelas ruas do bairro a observar o entorno da escola, as pessoas e suas práticas; conversei com alguns moradores, intencionando uma aproximação que possibilitasse garimpar nos relatos suas impressões quanto à comunidade e à escola.

A busca motivou a participação em festas da comunidade junto à escola, passeios com professores e alunos em momentos de lazer, festas organizadas nas casas dos professores e até mesmo a experiência de ir ao campo no transporte público e sentir de perto esse momento na vida das pessoas. Falando de forma metafórica, diria que as observações serviram de âncora e plataforma. Como âncora, fincando-me no solo do cenário pesquisado, trazendo segurança para partir daí, projetar-me em um voo mais alto e, como “plataforma”, avistar os fatos necessários à compreensão do fenômeno estudado.