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2 FAZENDO O CAMINHO AO CAMINHAR: ITINERÁRIOS DE UMA

2.2 O cotidiano como contexto ecológico: etnografando a escola

2.2.2 A etnografia como método de pesquisa no/do cotidiano escolar

Conforme defendido até então, a partir da concepção de pesquisa e dos procedimentos metodológicos adotados, a etnografia apresentou-se como o método que melhor respondia às pretensões do estudo das culturas no cotidiano escolar dos jovens na/da Educação de Jovens e

Adultos. Não necessariamente o estudo e descrição de um grupo exótico que vive em uma terra distante, mas de um grupo familiar, a exemplo de uma escola pública localizada na cidade em que reside o pesquisador, destarte, trata-se de uma etnografia que se dá no espaço urbano, tecida de forma colaborativa, desembocando em um texto escrito a “muitas mãos”, dando vez e voz às pessoas que habitam a escola e com as quais se dialoga, o que, consequentemente, possibilita enxergar as conexões entre os contextos micro e macro no processo de produção da vida nesse espaço (CLIFFORD, 2011).

Cabe, portanto, ao mergulhar no cotidiano estudado, buscar a compreensão dos modos de vida dessas pessoas e, nesse sentido, corroboro com a defesa de Saéz (2013, p.136) quando advoga em favor da antropologia moderna e da etnografia em espaços urbanos, ao afirmar que:

Na verdade, não é preciso viajar muito longe para encontrar essa iniciação ao saber antropológico; a diferença é o melhor distribuído dos atributos humanos, e a ascese não será menor numa favela, numa cadeia, num terreiro de candomblé, sempre que durante a sua pesquisa o etnógrafo viva nesses lugares. Isso nem sempre é possível, nem tentador, e o pesquisador buscará modos de graduar sua exposição a esse modo espinhoso de viver que os outros têm.

Semelhantemente, como carecem ser familiarizadas as culturas de povos longínquos, acredita-se que a etnografia em espaços urbanos possibilita compreender as formas de vida de grupos visivelmente “comuns”, mas que reclamam um olhar que busque desvelar o que têm a dizer para além do supostamente óbvio.

Com base nessa premissa, defende-se que a etnografia, como método de pesquisa em educação, toma assento nas investigações que buscam outra forma de dizer, buscam um código que possibilite levantar outras dúvidas acerca dos fenômenos tidos como educativos dentro e fora da escola, como diria Dauster (2007, p.32), numa postura de “apreensão de outras relações no exercício de pesquisa, em todos os sentidos, [...]”.

Godoy (1995, p.3) afirma que a etnografia em sua acepção mais ampla “abrange a descrição dos eventos que ocorrem na vida de um grupo [...] e a interpretação do significado desses eventos para a cultura do grupo”. Assim sendo, acredita-se que a etnografia atendeu às necessidades do estudo, dada sua preocupação em desnaturalizar e desinvisibilizar práticas cristalizadas pela/na cultura escolar, mas que, longe de serem naturais, são construções sociais e históricas, portanto simbólicas, ou seja, a etnografia ocupou-se de “mostrar que, entre outros fatores, as atitudes, os comportamentos e os gostos são socialmente construídos e nada têm de

naturais, pois pertencem ao campo da cultura e das relações sujeito/sujeito e sujeito/objeto.”

concretas foi o que possibilitou o questionamento e consequentemente a compreensão dos sentidos atribuídos pelos praticantes às suas práticas.

Ao longo de todo o trabalho, o desafio consistia em interpretar densamente as culturas, atentando para o todo da realidade escolar e focando naquilo que responderia às inquietações advindas da vivência no cotidiano da escola, posto que o revelar desse cotidiano requeria um pesquisador em movimento em direção à percepção da realidade em sua dinâmica, pensando o que se faz e como se faz, interrogando as práticas sociais e assim compreendendo seus significados. Práticas que, segundo Brandão (2002, p.157), necessitam ser percebidas como “sistemas amplos, complexos e profundos de feixes de relações interativas entre teias e tramas de símbolos e de significados”.

Se a escola é percebida sob as bases ecológicas e as práticas em sua amplitude, a apreensão desses sistemas ultrapassa o olhar esporádico; consiste em revisitar o cotidiano “desgastado” como afirma Brandão (2002), para só assim compreender como acionar “o acontecimento vivo e inesperado” que se desprende das camadas mais espessas da cultura escolar.

Pode-se afirmar que a pesquisa não se insere no campo das etnografias clássicas, aquelas ocupadas em buscar compreender os processos de vida de grupos/comunidades exóticas em que o pesquisador se isola nessas comunidades por longos períodos, a exemplo das experiências vividas por Malinowsky em seu trabalho de campo ao estudar os Trobiandeses (quatro anos); Wagner e sua ampla experiência entre os Daribi (entre idas e voltas por seis anos) e Geertz, em Java (dois anos), Bali (um ano e meio) e Marrocos (vários anos).

Diferentemente dessas etnografias, a imersão etnográfica a qual se propôs esta pesquisa se deu no espaço urbano, numa escola de Ensino Fundamental, que no horário noturno trabalhava com a Educação de Jovens e Adultos. Nada obstante a proximidade geográfica, o espaço de pesquisa e os “nativos” já “conhecidos”, essa aproximação não dispensou o cuidado com cada entrada no campo, pois “está lá” (MALINOWSKY, 1976), requeria um exercício diário de revisão de “antigas” certezas e um esforço intelectual, fruto do respeito aos interlocutores/informantes da pesquisa.

Consciente dos limites dessa imersão no campo, ratifico a fala de Saéz (2013, p.136), quando nos faz entender que “em geral, a pesquisa fora dos campos tradicionais, e sobretudo a pesquisa urbana, costuma ser uma pesquisa de imersão limitada, onde o pesquisador convive com seus nativos um certo número de horas ao dia, mas mantém para si algum espaço

próprio”, com a clareza de que a prática etnográfica traduz-se não somente na descrição, mas na interpretação dessas culturas (GEERTZ, 2013).

O que na verdade importa é que essa prática se apoie na necessária compreensão da maneira de viver do outro a partir do ponto de vista desse outro e de sua cultura, à vista de que compete ao etnógrafo o papel de estudar as práticas e saberes dos sujeitos e grupos sociais, tendo a observação e as conversações como primordiais na interação com o “outro”, numa atitude de quem humildemente ‘nada sabe’ e, como recém-chegado, está para aprender com aquele que ‘tudo sabe’ sobre sua vida e suas formas de construção no espaço investigado. Não como alguém que com sua cultura, seus “pré” conceitos estuda sobre, ao contrário, com a postura de quem estuda o/no/com o outro, tendo claro que o diálogo não é sobre o outro, mas

com ele. (GEERTZ, 2013).

O fato de “estar lá” e estudar a/na escola possibilitou a “descoberta” de um cotidiano escondido no seu “que fazer pedagógico”, o qual se produz e é produzido diuturnamente pelos praticantes desse lugar. Ciente de que “o trabalho de campo é o coração da pesquisa etnográfica, pois sem um contato intenso e prolongado com a cultura ou grupo em estudo será impossível ao pesquisador descobrir como seu sistema de significados culturais está organizado [...]” (GODOY, 1995, p.28), permaneci na escola assumindo uma perspectiva holística, no sentido de observar o máximo do que ali acontecia, procurando descrever o grupo pesquisado da forma mais ampla possível, atentando para os aspectos que incidiam diretamente sobre os fazeres desse grupo, buscando descobrir como construíam seu sistema de significados, como se desenvolvia e influenciava o comportamento de todo o grupo.