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2 FAZENDO O CAMINHO AO CAMINHAR: ITINERÁRIOS DE UMA

2.1 A difícil arte de ser professora e estranhar a escola

2.1.2 Estranhando estranhar

A necessidade de estranhar um ambiente familiar trouxe certa inquietação a princípio. Uma escola noturna da rede pública municipal, localizada na zona urbano-periférica da cidade de Arapiraca, agreste de Alagoas, a qual fica a poucos quilômetros de onde resido. Como fazer o movimento de “desenraizar-me” de um espaço e de práticas que já faziam parte de meu cotidiano? (SAÉZ, 2013). Como olhar para algo tão peculiar e enxergar o que realmente

precisava ser visto? Confesso que “estranhei estranhar”. Viver a situação de “estar lá”, tendo a responsabilidade do distanciamento, para só assim enxergar as forças que moviam as pessoas e quais sentidos atribuíam às suas práticas.

É fato que o olhar habitual acaba vendo apenas o visível, aquilo a que o pesquisador me predispôs a ver. Desafiada a reinventar-me, busquei uma nova forma de olhar, desenvolvendo a atitude de estranhamento frente à produção da vida escolar. Atitude que conforme Laplantine (2004) requer do pesquisador a capacidade de não apenas ver, mas de “olhar” - o olhar etnográfico-, ou seja, olhar para além da captura da imagem que se dá no plano imediato do ver, o olhar que demora e intensifica o ver. O “olhar treinado”, que possibilitaria o encontro com as práticas culturais em processo na escola tendo em vista o estranhamento necessário, vivendo, assim, a “atitude etnográfica”, que segundo Laplantine (2004, p.15), consiste em:

[...] nos espantar com aquilo que nos é mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade em que nascemos) e tornar mais familiar àquilo que nos parecia inicialmente estranho e estrangeiro (os comportamentos, as crenças, os costumes das sociedades que não são as nossas, mas nas quais poderíamos ter nascido) é por excelência a da etnografia ou, como se diz ainda, a experiência ‘do campo’. É uma atividade decididamente perceptiva, fundada no despertar do olhar e na surpresa que provoca a visão.

O autor concorda que estranhar o familiar e familiarizar-se com o estranho é verdadeiramente uma “experiência estranha” e confesso que espantar-me com o familiar a ponto de torná-lo estranho e desenvolver o “olhar etnográfico” não foram tarefas tão tranquilas, mas se constituíam atitudes intrinsecamente relacionadas à etnografia “fundada no despertar do olhar e na surpresa” de todo aquele que se propõe a esse tipo de pesquisa.

A partir das leituras e da permanência no campo, o itinerário foi sendo desenhado, abrindo veredas, abrigando-me à sombra do cotidiano, ouvindo, vendo, caçando e catando os indícios em meio a um cenário aparentemente sem grandes surpresas, mas que aos poucos se mostrava repleto de mistérios e descobertas. A atividade perceptiva provocava a visão e buscava nas microrrelações as “surpresas”.

A entrada no campo deu-se em agosto de 2013 com base no desenho inicial da investigação que delineava o problema de pesquisa, no encaminhamento metodológico e nas bases conceituais que sustentariam o estudo. É possível afirmar que essa entrada se deu acompanhada de momentos de tensão, incertezas, tentativas, acertos e erros ao longo do processo de construção da trajetória rumo à etnografia na/da escola. Alguns desses momentos foram registrados no “diário íntimo” (WEBER, 2009) que produzi, e evidenciam as tensões e

incertezas dessa entrada. Um desses tensionamentos se fez justamente na aproximação com o campo, conforme relatado no excerto de meu Diário Íntimo (DI):

Lendo o livro de Roy Wagner “A invenção da cultura”, comecei a pensar acerca dos dilemas de sua entrada e de seu trabalho de campo. O choque cultural vivido dessa aproximação e as tantas técnicas hostis utilizadas pelos nativos para que o mesmo se mantivesse afastado, demonstrava o incômodo e estranhamento do povo com a chegada daquele “forasteiro”. Os dilemas de sua entrada no campo e de seu trabalho para cima e para baixo fazendo perguntas, observando tudo e insistindo em fazer entrevistas, o levavam a questionar o porquê de procurar saber sobre as histórias de outro povos, suas ideias e modos de vida. Isto me fez refletir se pelo fato de ser um homem solteiro, construir sua casa próxima aos solteiros da tribo e chegar procurando alguém que pudesse cozinhar para ele, trouxe espanto mas também o aproximou dos Daribi, questionava: Como farei para ser aceita pelo grupo? Como, efetivamente penetrarei no cotidiano da escola e assim estudar as culturas dos jovens estudantes na/da EJA? Que característica pessoais e/ou profissionais serão fundamentais para aproximação com o grupo? Vivo a sensação de estar andando em círculos e não estar chegando a lugar nenhum.

O fragmento do diário ratifica algumas das incertezas iniciais advindas da imersão no cotidiano escolar na/da EJA e os questionamentos que levaram a pensar em estratégias que ajudassem a “trabalhar com o povo” como dissera Boff (1984), assumindo os riscos e tendo cuidado com essa aproximação. Nesse sentido, tive o cuidado de me refugiar teoricamente nas leituras que ajudariam a delinear o percurso metodológico e assim perceber a necessidade de reinventar algumas técnicas de coleta tendo em vista as necessidades apresentadas pelo desenho da pesquisa que aos poucos se tornava mais claro.

Dado o fato de na formação inicial em Pedagogia não ter tido contato com as bases conceituais da Antropologia, a compreensão de que a pesquisa se tratava um estudo etnográfico levou algum tempo, pois isto só aconteceu a partir do refinamento do olhar acerca dessa abordagem de pesquisa. Compreensão advinda após as leituras disponibilizadas na Disciplina “Etnografia e Educação”, ministrada pelo Professor Dr. Amurabi Oliveira, no Programa de Pós Graduação em Educação da UFAL, no primeiro semestre de 2014.

Algumas questões fizeram parte desse momento de retomada da formação inicial, a exemplo de: a) Como etnografar a escola? b) Como estranhar um lugar onde tudo ‘parece’ familiar? c) Como estranhar as rotinas e rituais sociais através das imediatices do cotidiano? e) Como tornar exótico o que parece familiar e aparentemente desprovido de significado? f) De que ferramentas lançar mão tendo em vista a pesquisa com os jovens estudantes na/da EJA? Questões que me inquietavam e perpetuavam os dilemas da estada no campo, conforme demonstrado a seguir, o excerto do Diário Íntimo (DI):

A estada no campo tem se estruturado de modo meio incerto, dado o fato de não ter a metodologia de pesquisa totalmente delineada. Fazer etnografia na educação, traz certa tensão e, às vezes, percebo-me insegura quanto à utilidade dos materiais que estão sendo coletados. Vivo caçando-me, procurando-me na pesquisa.

Tento “ver coisas” no cotidiano da escola, “estando lá”, onde a cultura da escola se processa de forma dinâmica. Estou lá, ouvindo, olhando, conversando com as pessoas. Estou fazendo a coleta, a princípio nos documentos oficiais, nesse caso, nas pastas com as fichas de documentação da vida escolar dos estudantes das turmas pesquisadas, buscando algum registro acerca da vida escolar desses estudantes. Busco nos pareceres descritivos, nas listas de notas, em qualquer escrito, as informações por menor e mais insignificantes que pareçam; são relíquias, pois estou à procura das pistas, dos indícios de quem são as pessoas jovens em processo de escolarização na EJA. Acredito que nas pastas dos alunos, existem pistas acerca de quem são as “pessoas que habitam nos alunos”, a partir de suas trajetórias escolares registradas pelos professores nesses pareceres descritivos.

O relato acima apresenta a primeira atividade de coleta na escola e mostra uma professora/pesquisadora inventando um jeito de caminhar na pesquisa etnográfica e no exercício do estranhamento. Do contrário, não poderia enxergar o porquê das práticas e quais seus sentidos para os praticantes. A “complexidade do desenraizamento” (SAÉZ, 2013), necessário à atitude de estranhamento mandatória do fazer etnográfico, apresentava-se como um dos maiores desafios.

Acerca do ofício do etnólogo, Da Matta (1978), assim como outros antropólogos, leva- nos a pensar na dupla tarefa de “transformar o exótico em familiar” e inversamente “o familiar em exótico”. Sendo que a primeira transformação “conduz ao encontro daquilo que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no envelope bizarro”, aquilo que seu universo cultural desconhece, ou que difere de seu sistema de valores. Já para a segunda transformação afirma que “o etnólogo deve aprender a estranhar alguma regra social familiar e descobrir o exótico que está petrificado dentro de nós pela reificação e mecanismos de legitimação” (DA MATTA, 1978, p.5-6), é a transformação que conduz o pesquisador ao encontro com o outro e ao estranhamento. O autor chama a atenção para a dinâmica de estranhar o familiar, comparando esse movimento a uma viagem em vários sentidos, provocação a todos que enveredam pelo campo do conhecido/desconhecido.

A dupla tarefa intrínseca ao processo de estranhamento provocou movimentos em várias direções. Primeiro, no sentido de perceber que, como intelectual/pesquisador é preciso caminhar ao encontro daquilo que parece “bizarro” e, ao contrário disto, num segundo movimento, tirando a “capa de membro de uma classe e de um grupo social específico” (Idem, p. 6), para poder estranhar o aparentemente familiar, cristalizado pelos diversos mecanismos de legitimação das práticas escolares. Movimentos que me conduziram ao encontro do outro, informante-interlocutor-sujeito sociocultural e parceiro na pesquisa.

Na pesquisa etnográfica, o estranhamento é construído com base numa “leitura do social através do cotidiano” como propôs Machado Pais em uma conversa sobre culturas,

pesquisas, currículos e cotidianos. Leitura que, segundo o autor, dá-se a partir de “[...] uma metodologia de inquirição que [...] toma como relevante o aparentemente irrelevante; [...] como significante o aparentemente insignificante; [...] como objeto de reflexão aquilo que se passa quando nada parece passar.” (CARVALHO; SILVA; DELBONI, 2013, p.364). E, nesse pensar, acredita-se que é no espaço aparentemente irrelevante/insignificante no/do cotidiano escolar dos jovens estudantes na/da EJA onde residem as culturas que se entrecruzam e produzem novas formas de ser e estar nesse espaço.

Aos poucos foi possível compreender que a etnografia no campo educacional apresenta grandes possibilidades de “aproximação” com o cotidiano escolar e conduz a um “encontro” profundo com sua dinâmica e seus sujeitos. No entanto, esse encontro exige do pesquisador uma ampliação de seu cabedal teórico, o qual deve ser articulado com a pluralidade de dados que emergirá das análises oriundas da coleta. (OLIVEIRA, A. 2013b).

A compreensão de que como professora/pesquisadora na/da escola precisaria sentir a instituição e seus sujeitos, só assim conseguiria interpretar os pedaços de pessoas e de imagens e assim poderia descrever densamente os acontecimentos, mesmo quando, algumas vezes vivia a sensação de marginalidade, solidão e saudade de casa, atravessando os caminhos da empatia e da humildade que possibilitariam estudar na/a escola. Não obstante, os questionamentos e as incertezas continuavam a fazer parte do processo de formação, conforme mostra o excerto do DI:

Desenvolver as atividades da pesquisa etnográfica tem sido um dos meus grandes dilemas. Às vezes sinto-me solitária, com saudades de casa, meio sem saber o rumo; pensando como vou trabalhar com o que ainda estou “tentando ver” no cotidiano da escola. Por outro lado, o exercício do estranhamento de uma realidade com a qual já estou familiarizada, tem sido uma grande provocação. Nesse sentido, tenho tentado observar as práticas cotidianas buscando esse exercício, para só então proceder à interpretação dos registros, fazendo descrições densas e preocupada com o que as observações desses acontecimentos escondem. O que verdadeiramente sustenta tais práticas, discursos, normas, enfim o que esse cotidiano tem a dizer? Assim, prossigo tentando “desnaturalizar o óbvio” como dissera Dayrell (2009) e nesse movimento de estranhamento e desnaturalização das práticas culturais cotidianas no contexto escolar, busco para além da mera constatação e descrição, a compreensão dessas práticas, o porquê de sua existência e o fato de serem como são.

O excerto traz o registro das inquietações ainda vividas no campo, mas também o nível de amadurecimento na/com a pesquisa etnográfica a partir das reflexões teóricas e da “domesticação do olhar”, conforme nos diz Oliveira (2006). Logo, há clareza de que é nas práticas cotidianas “estranhadas” que se desnaturaliza o óbvio, o corriqueiro.

Concordo com Roberto Oliveira (2006, p.25), quando defende que o “olhar e o ouvir disciplinados” se constituem os “atos cognitivos preliminares” de qualquer trabalho de

pesquisa etnográfica. Assim sendo, o ato de “olhar e ouvir disciplinados” produzidos pelo amadurecimento das reflexões teóricas conduziu-me ao “olhar etnográfico [...] devidamente sensibilizado pela teoria disponível” (Idem, p.19), no qual foi possível ver com mais clareza aquilo que outrora não conseguiria.

Nesse caminhar, questionava se o que estava observando refletia o que as pessoas queriam mostrar ou se, ao contrário, continuava a ver somente o que a priori pressupunha existir, bem como o “ouvir todo especial”, como ato complementar ao ver.

Com o passar do tempo e com base no processo de “encontro” com a etnografia, o estranhamento inicial perdeu força, o ato de observar os acontecimentos e de ouvir as pessoas se tornara parte inerente à estada no campo. As situações de conversa nos vários espaços da escola possibilitaram a peregrinação, às vezes trôpega, no caminho do conhecimento em construção. Desse modo, desenhou-se a pesquisa e seu percurso metodológico.