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ALGUNS PROCEDIMENTOS DRAMATÚRGICOS DO SÉCULO XIX PRESENTES NAS

No documento MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA (páginas 104-112)

CAPÍTULO I – NO TEMPO DE ALUÍSIO AZEVEDO – VIDA E OBRA

CAPÍTULO 4 – CHARGE, TEATRO E CARNAVAL

4.3 ALGUNS PROCEDIMENTOS DRAMATÚRGICOS DO SÉCULO XIX PRESENTES NAS

No jornal e no livro, no romance “culto” e no cordel, nos folguedos populares e nos antigos-novos cultos religiosos, reencontrar o antigo e o outro, reimaginado, reorganizado, ao léu de uma memória repetitiva e fragmentada, uma nova maneira de reutilizar, reinventar, resignificar discursos e práticas. Um potencial imaginativo, misto de permanência e invenção, que sempre provoca e renova meu espanto. A perplexidade Cultural. (MEYER, 2001, p. 14)

Em nossas reflexões a respeito da charge acabamos sendo levados a imaginá-la como um possível produto inspirado também na comédia de costumes por se aproveitar de técnicas para encenar situações que podem vir a contribuir ou não com o aprendizado, em forma de entretenimento.

Alguns autores como Prado (1999), Meyer (2001), Souza (2002), Machado (2004), Rabetti (2007) e Guinsburg (2009) foram consultados a fim de engendrarmos algumas questões possíveis para serem discutidas relacionando a técnica da caricatura com a cênica. Assim, prosseguiremos.

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Souza (2002), por exemplo, revela em seu trabalho o panorama de tensões entre literatos cariocas em meados do século XIX, desejosos em produzir apenas dramaturgia séria, moralizadora dos costumes sociais que representasse quanto a sociedade no Brasil era civilizada a caminho do progresso da nação enquanto que o gênero teatral “popular” como a revista, vinha a comprometer o objetivo almejado.

As tensões não ocorriam apenas entre literatos, autores, atores, empresários e críticos do teatro, pois de acordo com as críticas publicadas em jornais da época envolviam também a Igreja, a polícia, os representantes da coroa e o povo que, particularmente, preferia o entremez para rir às peças sisudas realistas protestando contra o preço dos ingressos, pateando durante as peças das quais desgostava ou ainda, abandonando o espetáculo de forma desrespeitosa para com todos no palco, dentre outros.

Discorrer sobre o teatro parece-nos revelar igualmente os elementos de formação cultural brasileira na participação de seus diferentes sujeitos sociais no que diz respeito às charges nos jornais como “obras para formar o povo, construir a nação, buscar respostas às mazelas nacionais.” (SOUZA, 2002, p. 17).

Tal como aconteceu com o teatro, a charge era produto proveniente das grandes capitais europeias, modelos a serem seguidos tendo Molière para o teatro e Daumier para a charge, garantindo, de certa forma, maior aceitação do público. Literatura, teatro e charge parecem conviver também pacificamente nas páginas dos jornais da época em mesmo ambiente em forma de romance-folhetim, crítica e imagem.

Talvez, alguns procedimentos dramatúrgicos possam ser visualizados na produção da charge de Azevedo tal como ocorre no teatro, pois ambos são apresentados e apreciados como forma de entretenimento em lugar público ampliado, no caso da imprensa em que o espectro do riso ou da comicidade ganha, através do desenho, maior compartilhamento em seus vários exemplares e edições. Assim, no teatro e no jornal são utilizados procedimentos, recortes, como um trabalho de bricolagem compostos por unidades de composição presentes na confecção ou apresentação cênica como as legendas que substituem o narrador ou o apontador objetivando auxiliar os atores durante a encenação, caso a memória falhasse.

Para a construção de personagens Azevedo aproveitava-se, aparentemente, da distribuição do espaço retangular da folha em cenas colocadas lado a lado, representando fatos de certa forma isolados no tempo e no espaço para compor sua crítica. Na charge As três Edades (Fig. 59, p. 112), por exemplo, vemos o Brasil em três momentos de sua história, em 1500, 1822 e 1877 em explícita decadência em série, como mencionamos anteriormente.

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Esse encontro entre o teatro e a charge é corroborada pela citação de Machado (2004) quando menciona que:

A ligação de caricaturistas com o teatro era bastante estreita e não [era] raro encontrar homens do traço que também se aventuravam pelos palcos, seja como autores, atores, cenógrafos ou figurinistas, [tais como] Raul Pederneiras, K Lixto e J. Carlos [...] toda representação visual é uma projeção imaginária do sujeito sobre um objeto [...] nada escapa, portanto, ao processo de elaboração simbólica e de atribuição de significados, mesmo as imagens que perseguem a “verdade”, ou a reprodução “fiel” da realidade, como a fotografia. (MACHADO, 2004, p. 88)

Em consulta ao léxico do teatro brasileiro disponível no dicionário organizado por Guinsburg (2009) identificamos termos técnicos da área cênica que, de certa forma, podem estar relacionados na apresentação da charge como manifestação artística resultante de intercâmbios passíveis de promover diálogos entre autores e leitores/telespectadores.

Prado menciona que “entre 1760 e 1795, datas aproximadas, são construídos teatros na Bahia, no Rio de Janeiro, no Recife (Pernambuco), em São Paulo e Porto Alegre (Rio Grande do Sul). Com lotação em torno de 400 lugares, esses edifícios foram logo conhecidos como Casa da Ópera”. (PRADO, 1999, p. 23) Como teatro decente, denominação de lugar em que peças de qualidade poderiam ser apresentadas, foram assistidos “todos os gêneros teatrais vigentes no século XIX: tragédia, ópera, comédia, drama, melodrama, entremez64, mágica (féerie francesa), farsa, vaudeville, burleta, espetáculos de circo e de revista”. (PRADO, 1999, p. 32)

Assim, o riso no teatro é promovido por uma linguagem jocosa inspirada nas peças de Molière que garantia trabalhar com certa dubiedade de sentidos promovendo uma leitura crítica, recorrendo à comicidade ou à presença de seus traços capaz de agradar ao público cansado das longas e cansativas peças trágicas. Souza (2002) em sua pesquisa sobre a história do teatro no Rio de Janeiro e sobre as críticas tecidas traz dados desde os primeiros registros do teatro brasileiro: “Assim por meio do artifício do riso, [o] espectador era levado a identificar-se e a pensar nas mazelas de uma sociedade que, apesar de pintada como grave e sóbria pela dramaturgia realista, tinha forte lado de frivolidade e hipocrisia. (SOUZA, 2002, p. 238)

O teatro como expressão artística mantém como menciona Guinsburg (2009):

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Intrínseca relação com a memória, conservadora de sensações e de conhecimentos, os quais, ao serem evocados, são atualizados e recriados no presente. É com a memória que fincamos nosso pertencimento a um grupo social, ora lembrando, ora esquecendo as experiências individuais e coletivas. O teatro, assim como a história, tem trazido à tona o que a oficialidade, por vezes, faz questão de apagar: narrar o inenarrável, sendo fiel aos anônimos cujas histórias tecem a imaginação e o universo de nossas marcas simbólicas. (GUINSBURG, 2009, p. 9)

Todos os verbetes consultados no Dicionário do Teatro Brasileiro organizado por Guinsburg (2009) a seguir parecem interessantes de serem apresentados para o leitor de nossa pesquisa como maneira de demonstrar como caminha nosso raciocínio ao traçar paralelos entre o teatro e a charge. São eles:

Adaptação: corresponde à escrita a partir de outros textos como literários, cartas, memórias, crônicas dentre outros. Há registros de adaptações de romances de Aluísio Azevedo para os palcos fluminenses, assim como a filmagem de O Cortiço (1977) produzida por Francisco Ramalho Junior um dos principais profissionais do cinema brasileiro em outras adaptações.

Alegoria: tem como atribuída sua origem na peça de teatro medieval com finalidade moral e instrumento pedagógico. Presenciamos em charges várias apresentações alegóricas, da República, do povo brasileiro, da mulher dentre outros, fartamente exploradas por Artur Azevedo, irmão de Aluísio, em “teatro de revista, miscelânea do documental, do fantástico e do maravilhoso que domina os palcos cariocas nas duas últimas décadas do século XIX” (GUINSBURG, 2009, p. 20).

A-propósito: tipo de “peça geralmente curta, de espírito cômico e paródico, escrita em função de algum acontecimento recente de grande repercussão, como um extraordinário sucesso teatral ou literário, um fato político fora do comum, um escândalo social, um incidente burlesco e coisa do gênero.” (GUINSBURG, 2009, p. 37).

Arremedilho: forma embrionária de vários gêneros cômicos, consistindo na imitação jocosa de personagens do meio social. É considerada a forma mais antiga de teatro difundido a partir de uma forma mais complexa, os autos, que apresentavam personagens em cenas dramáticas. Nesse caso faz uso de deformações que têm como intenção a comicidade,

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ridicularizando personagens conhecidos do público ao promover a associação imediata, imitando ao associar o gesto e a conduta do representado.

Boneco: recurso cênico da confecção de figuras- personagens utilizadas em encenação teatral e manipuladas por fios, hastes, varas, dentre outros. Interessante relembrar que fazia parte do processo criativo de Aluísio Azevedo a confecção de bonecos de dois tipos: em cores para os personagens dos quais gostava e, sem cores e mal contornados, praticamente esboços, para os antagonistas. O artigo a seguir de seu irmão Artur menciona que Aluísio sempre mantinha esses bonecos em cima de sua mesa ao escrever seus romances.

A grande vocação de Aluísio era a pintura, e quantos o conhecem sabem que elle desenha com muita habilidade. Contrariado no legítimo desejo de estudar aquella arte, o seu talento desviou-se do curso normal e procurou as letras. Aluizio escreveu o que não podia pintar os capítulos dos seus livros seriam quadros se lhe mettessem na mão o pincel com que elle sonhava; d´ahi o vigor da suas paizagens, o colorido intenso das suas descripções, o contorno dos seus personagens que elle desenha, pinta e recorta em papelão quando os imagina, collocando-os diante de si na mesa de trabalho.” (AZEVEDO, n. 4023 de 07.10. 1895 IN: O Paiz, Rio de Janeiro)

Burleta: Azevedo produziu algumas peças desse gênero assim como seu irmão. Ela é um tipo de peça cômica musicada e dançada inspirada em comédias de costumes, outro gênero cênico bastante apreciado pelo público frequentador dos teatros do Rio de Janeiro do século XIX substituído, com o passar dos anos, pela comédia musical. Em algumas de suas imagens, acreditamos presenciar movimento nas imagens como ritmos de música e dança presentes como na cena a seguir:

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Fig. 57 - O Brasil à deriva: uma orgia de piratas de Aluísio Azevedo. Fonte: Vide Índice de Figuras.

Carnaval: considerado produto resultante de manifestações religiosas representantes do nascimento de Cristo e período de martírio que o leva à crucificação. O carnaval representa “o momento de passagem entre a alegria e a dor, entre o nascimento e a morte” quando é permitido agir fora das “leis de convivência e regras de comportamento”.

Ao longo dos séculos, esse caráter geral foi se afirmando de maneiras específicas em cada cultura e, assumiu, em algumas delas, aspectos francamente teatrais, ou que aproximam sua celebração de formas teatrais reconhecíveis, como as desenvolvidas ao longo da Idade Média, com seus milagres e moralidades. (GUINSBURG, 2009, p. 80)

No Brasil o teatro nasce e assume uma apresentação dessa ordem em que a história do carnaval carioca está diretamente ligada a do teatro.

Comédia: “a comédia é o chão e a raiz do teatro brasileiro. O gênero cômico é o de mais longa e densa história em nosso palco, e o tema, por si só, poderia inspirar reflexões alentadas de filósofos e historiadores [...] A primeira comédia escrita por autor brasileiro

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representada em nosso território foi o texto de estreia de Martins Pena65” (GUINSBURG, 2009, p. 95) em 1838 com o título O Juiz de Paz da Roça66 e foi nesse cenário que o irmão de Aluísio, Artur Azevedo mais se destacou. A menção aqui ao irmão do autor que ora pesquisamos deve-se ao fato de que o próprio Aluísio por várias vezes trabalhou na confecção do ambiente cenográfico, escreveu em parceria, traduziu e adaptou algumas obras como as já citadas no capítulo I quando trouxemos para a leitura suas informações biográficas.

Interessante que o teatro foi um gênero primeiramente usado por representantes da igreja, como anteriormente mencionado, fazendo uso mesmo da comédia quando em “Vila Rica, Ouro Preto em 1733, para festejar o translado do Sacramento Eucarístico para outro endereço foram encenadas três comédias espanholas: El Secreto a Vozes, El Príncipe Prodigioso e El Amo Criado, a primeira de autoria de Calderón de la Barca e última de Rojas Zorilla”. (PRADO, 1999, p. 22).

Entremez: era comumente apresentado entre o 2º. e o 3º. ato, ao público do teatro, como forma de entretenimento e pausa para o riso em longas encenações dramáticas. Os entremezes eram provenientes da Espanha ou de Portugal constantemente apresentados no período do teatro colonial, sem se distinguirem muito das comédias e farsas. Um de seus primeiros registros é de 1790, em Cuiabá com a encenação de Le Bourgeois Gentilhomme de Molière, adaptado pelos irmãos Azevedo. Aliás, sabe-se que Dom Frei João da Cruz em Minas Gerais em 1745 proibiu esse gênero de apresentação com pena de excomunhão para quem a praticasse. Prado menciona:

Tudo começando e acabando em não mais do que meia hora, não havia lugar para digressões ou elaborações. A ação usava e abusava das convenções da farsa popular: quanto a personagens, tipos caricaturais, burlescos, não raro repetitivos; quanto a enredo, disfarces, quiprocós, pancadaria em cena. (PRADO, 1999, p. 56)

Vimos novamente a menção a Martins Pena que foi se “assenhorando da técnica e dos truques do ofício [...] Seu teatro revela um pendor quase jornalístico pelos fatos do dia” (PRADO, 1999, p. 57) como uma comédia, em um único ato complementar ao espetáculo

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Dramaturgo brasileiro precursor da comédia no Brasil nasceu em 1815 e faleceu em 1848.

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A peça em questão Martins Pena traz para representação, dentre outros assuntos, a cena do julgamento final em festa.

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principal, ousamos comparar o entremez do teatro com a charge publicada em jornais da época como sua “versão” impressa.

Farsa: muitas vezes relacionada ao teatro popular o gênero farsa também nos remete ao gênero das peças satíricas gregas que traz à cena elementos da vida cotidiana com finalidade moralista muito explorada por Molière que conseguia trazer ao palco a representação da hipocrisia na sociedade de sua época. No Brasil temos Martins Pena como um dos primeiros dramaturgos a fazer uso desse gênero.

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No documento MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA (páginas 104-112)