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ELEMENTOS CARNAVALIZADOS – PRODUTOS MOTIVADOS PELA RELIGIÃO

No documento MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA (páginas 100-104)

CAPÍTULO I – NO TEMPO DE ALUÍSIO AZEVEDO – VIDA E OBRA

CAPÍTULO 4 – CHARGE, TEATRO E CARNAVAL

4.2 ELEMENTOS CARNAVALIZADOS – PRODUTOS MOTIVADOS PELA RELIGIÃO

Seguindo o mesmo raciocínio em relação ao jogo de palavras ou recurso parodístico poderíamos observar que nas charges brasileiras do século XIX, parece ser perceptível certa relação com elementos carnavalizados, supondo-as como um produto que traz uma alegre relatividade das verdades e autoridades no poder resultante dessa festa popular cômica de acordo com o que Bakhtin afirma a seguir:

Ao longo dos séculos de evolução, o carnaval da Idade Média, preparado pelos ritos cômicos anteriores, velhos de milhares de anos (incluindo, na Antiguidade, as saturnais), originou uma linguagem própria de grande riqueza, capaz de expressar as formas e símbolos do carnaval e de transmitir percepção carnavalesca do mundo, peculiar, porém complexa, do povo. Essa visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através das formas de expressão dinâmicas e mutáveis (proteicas), flutuantes e ativas. Por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas paródicas, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. (BAKHTIN, 2010, p. 10)

Essa “alegre relatividade” pode ser examinada nas charges, a partir do sistema de análise de Rabelais elaborado por Bakhtin, procurando reconhecer a existência de elementos barrocos ou mestiços presentes, como um produto popular que ousa, ao provocar o riso com caráter festivo, relacioná-lo ao carnaval. Como um riso que o chargista tenciona construir a

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partir de uma imagem negativa do representável, não mais no espaço (i)limitado do jornal, pois a existência de uma limitação dependerá de como e quanto será compartilhado entre os leitores ou ouvintes envolvidos em sua recepção. Acreditamos que a charge representa a “consagração da desigualdade” (BAKHTIN, 2010, p. 8) apresentada no carnaval, como festa religiosa e ritual que acontecia na Idade Média e que pode ser considerada “encenada” como um espetáculo teatral em um palco chamado jornal. Portanto, valendo-nos da teoria bakhtiniana, observamos que existe grande quantidade de elementos carnavalizados, inspirados no contexto social e literário, que foram sendo transmitidos ao longo dos séculos como interpretações “na forma concreto-sensorial das ações e imagens carnavalescas” (BAKHTIN, 2005, p. 134).

Ainda que o teórico vaticine que a carnavalização entrou em declínio a partir do século XVII, praticamente perdendo seu caráter sério-cômico cultural e popular, afirma que as características pertencentes ao carnaval estão presentes em vários gêneros artísticos, assim como acreditamos estarem presentes nas charges azevedianas. Bakhtin (2005) menciona que

É evidente que o carnaval, strictu sensu, e outros festejos de tipo carnavalesco (touradas, por exemplo), a linha da máscara, a comicidade do teatro de feira e outras formas de folclore carnavalesco continuam até hoje a exercer certa influência direta na literatura. (BAKHTIN, 2005, p.132)

Nas charges de Azevedo, compreendemos que estão presentes características peculiares do carnaval, assim como estão na literatura, pois:

O carnaval propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de forma concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. (BAKTHIN, 2005, p.122)

Consideramos o jornal como um lugar que permite, assim como o carnaval nas ruas e praças públicas, um “contato familiar entre homens”, com um menor distanciamento entre as camadas da sociedade, com certa liberdade para se expressar, através de traçados de personagens caricaturados em “um mundo ao inverso”, solicitando o leitor e o chargista como participantes ativos de um espetáculo humorístico que revoga

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Antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica (inclusive etária) entre os homens. (BAKHTIN, 2005, p. 123)

Então, as charges se apresentam como objeto de entretenimento popular que brinca festivamente com questões injuriosas, e que são irreverentes e desestabilizadoras do sistema hierárquico, demonstrando usar as técnicas específicas do carnaval, como por exemplo, imagens em pares (os duplos):

São muito típicos do pensamento carnavalesco as imagens pares, escolhidas de acordo com o contraste (alto-baixo, gordo-magro etc.) e pela semelhança (sósias-gêmeos) [...] Trata-se da manifestação específica da categoria carnavalesca da excentricidade, da violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada de seu curso habitual. (BAKHTIN, 2005, p. 126)

Ao apresentar o risível, a imagem sugere o contrário do representado. Se o sujeito for sério na ocupação de seu cargo público, ele é mostrado como indiferente a tudo o que acontece ao seu redor. Se é um religioso, então é mostrado sorrindo, dançando, bebendo, definitivamente não se incomodando com a condição de quem está próximo, do povo sofrido, do Cristo crucificado, faminto etc.

O jornal já era um espaço onde também se dava o carnaval, como um produto de sua ramificação, e que trazia em suas folhas, manuseadas pelo público, personagens fantasiados em praça pública ou entrando em casas. Resistiram ao tempo em bibliotecas ou em documentos digitalizados e, na época, estiveram em todos os lugares, desde as mãos dos garotos gazeteiros, do século XIX, anunciando aos gritos as manchetes, como estratégia de venda aos apressados transeuntes, das senhoras da sociedade, comerciantes e, por que não, nas dos representantes do clero? O jornal e suas notícias participavam em várias praças como pequenos palcos distribuídos pela cidade, promovendo entretenimento, educação e informação como um produto público e universal, como espaço em que “todos devem participar do contato familiar” (BAKHTIN, 2005, p. 128) promovido por ele.

Os periódicos podem ser os lugares públicos para a ação carnavalesca, lugares de encontro motivados pelo sério-cômico de suas charges, estampadas artisticamente nas páginas. O chargista, assim como afirma Bakhtin a respeito do escritor Dostoiévski, (BAKHTIN, 2005, p. 121), provavelmente não tenha consciência de que em sua arte estejam presentes elementos carnavalizados. Porém, segundo sua teoria, eles fazem parte da memória coletiva e social do artista que, por sua vez, dissemina em sua arte gráfica os gêneros próprios

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do carnaval, renascidos em novas apresentações, por vezes quase imperceptíveis em relação à mescla de linguagens culturais. Essa deformação criativa, essa encenação carnavalesca ambivalente e cômica, que serve de entretenimento e informação, convida ao riso e, possivelmente, à reflexão crítica, pois:

O riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo: para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem mundial. O riso abrange os dois polos da mudança, pertence ao processo propriamente dito da mudança, à própria crise. No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso do júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa concepção de mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco ambivalente. (BAKHTIN, 2005, p. 127)

Ainda em relação ao riso, examinemos mais uma questão: a natureza carnavalesca da paródia. Como já tivemos oportunidade de observar, a paródia é um elemento inseparável do duplo destronante ou do mundo às avessas, que na charge significaria a imagem real e pública da personalidade representada versus a imagem distorcida, como em um espelho deformante.

Temos também o teatro como forma carnavalesca, com base na cultura popular, encenada em praça pública como “ramificações tardias do tronco carnavalesco fundamental” (BAKHTIN, 2005, p. 131), notada em Rabelais, Cervantes, Molière e outros. Nas charges de Azevedo, observamos como, através da sensibilidade e criatividade artísticas, ele trazia “ao palco”, segundo sua concepção, o que estava por trás, nos bastidores, usando o espaço do jornal destinado à charge em O Mequetrefe para levar o “escondido”, o “oculto”, ao conhecimento público na charge que situa a encenação em formato impresso. Fazia-o, evidenciando, de forma violenta, os atos dos representantes da Igreja, por exemplo. Não eram imagens necessariamente desfiguradas, tampouco poderíamos afirmar que provocavam o riso, a partir de exageros anatômicos faciais, tornando a representação grotesca. Azevedo colocava- os em cena, tal como uma representação teatral, para serem observados em suas supostas ações. Representando tudo de forma que o público conseguisse entender sobre quem e do quê se tratava a imagem. Dessa forma, a charge teria condições de atingir seu objetivo, desestabilizar a imagem pública conhecida.

Depois de uma breve passagem pelo jornal O Fígaro, no qual Azevedo estreia como caricaturista assim que chega ao Rio de Janeiro, migra para O Mequetrefe, em sua primeira edição n. 94 (19.03.1877), colaborando com charges, crônicas, poesias e outros conteúdos. A primeira imagem caricatural que reproduzimos é As Três Edades! (Fig. 59, p. 112). A análise dessa imagem permite observar todos os elementos criticados, representados pelo autor, em

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cenas distribuídas pela folha, significando uma desvalorização sequencial, gradual, empobrecendo a nação com o passar dos anos.

Apresentaremos a seguir quatro charges de Azevedo, trazendo dados descritivos com inserções da teoria bakhtiniana, procurando destacar os elementos carnavalizados, segundo a metodologia de análise da pesquisa, acrescentando que:

Para entender corretamente o problema de carnavalização, deve-se deixar de lado a interpretação simplista do carnaval segundo o espírito da mascarada dos tempos modernos e ainda mais a concepção boêmia banal do fenômeno. O carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados. Essa cosmovisão, que liberta do medo, aproxima ao máximo o mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona de contato familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e sua alegre relatividade, opõe-se somente à seriedade oficial e unilateral e sombria, gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social. (BAKHTIN, 2005, p. 161)

De acordo com tais palavras de Bakhtin, iremos trabalhar com a charge de Azevedo nas próximas páginas.

No documento MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA (páginas 100-104)