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PERCURSO JORNALÍSTICO DO AUTOR

No documento MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA (páginas 39-47)

CAPÍTULO I – NO TEMPO DE ALUÍSIO AZEVEDO – VIDA E OBRA

1.3 PERCURSO JORNALÍSTICO DO AUTOR

A pesquisa nos conduziu a caminhos que buscaram compreender o papel cumprido pelas obras literárias e charges de Azevedo quando publicadas em jornais. Considerando o importante espaço que tiveram, entendemos que o texto literário e o jornalístico se constituem como representações marcadas por mestiçagens culturais, possíveis de serem notadas desde as primeiras publicações jornalísticas no Brasil até os dias de hoje. Medel afirma que “no processo de desenvolvimento histórico e de institucionalização de ambas as séries discursivas encontram-se coincidências muito interessantes e interações mútuas”. (MEDEL, 2002, p. 15). Azevedo, refletindo sobre ambientes com presença de culturas, costumes e sujeitos sociais diferentes, criou personagens representando europeus e brasileiros separados por preconceitos, como combustíveis de momentos de tensão. Hetero e homossexuais convivendo em espaços diminutos, aflorando e sendo deflorados. Escravo e senhor em situações de explorações inadmissíveis, injustas, porém apoiadas por leis em vigor. Aspectos de culturas diversas em expressão num mesmo espaço, como em O Cortiço: fado e capoeira, banjo e berimbau, vinho e cerveja, religião e pecado, pecadores e penitências ditadas e repetidas em

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ladainhas, fortuna e infortúnios. Todos esses elementos que parecem ser tão diferentes culturalmente estão reunidos nessa obra em especial, escancarando como conviviam no cortiço diversos segmentos sociais do século XIX, apresentados em “praça pública”, como no carnaval defendido na teoria de Bakhtin, que aproxima as pessoas de um contato familiar em sua apresentação grosseira ou cômica mesmo na “consagração da desigualdade” (BAKHTIN, 2010, p. 8) existente em lugares como esse.

Sabemos que suas produções receberam severas críticas dos representantes do poder. Sua coragem ao publicar, por escrito ou através de imagem, as disparidades sociais resultaram em inimigos políticos que, por sua vez, se tornavam muitas vezes tema a ser explorado em suas produções. Como por exemplo, o cônego Diogo, antagonista do romance O Mulato inspirado a partir de querelas trocadas entre os jornais A Civilização (clerical) e O Pensador (anticlerical) em que Azevedo colaborou vindo a responder por processo criminal movido pelo Padre Francisco José Batista. Dados como esses serviram como inspiração também para criar o personagem principal Raimundo, O Mulato, filho bastardo com negra escrava, representando tema exaustivamente discutido na sociedade sobre o regime escravocrata e os filhos da escravidão. Nessa obra, o protagonista Raimundo volta para o Brasil dotado de boas maneiras, com ares aristocráticos, bem apessoado, cheio de qualidades, mas não atende aos padrões da sociedade maranhense que conhecem sua origem mestiça e, no desenrolar do romance, vem a ser assassinado a partir de plano arquitetado pelo próprio cônego Diogo que soube em confissão sobre o romance que estava nascendo entre o filho de escrava com Ana Rosa, moça branca da sociedade. Pode-se imaginar quanto esse romance foi criticado na época atribuindo aos representantes do clero, articulações criminosas, vícios, injustiça, dentre outros. Assim, suas obras podem ser investigadas como fonte documental histórica no que diz respeito a comportamentos e contexto social.

A literatura parece ter sempre sido apresentada como instrumento para discussões sobre o papel que seu gênero de linguagem cumpre socialmente, ao oferecer novos paradigmas, modelos para a sociedade. Emma Bovary, por exemplo, foi um escândalo literário, mas apenas trazia textualmente um pouco da hipocrisia presente na sociedade francesa. Assim, a literatura parece convidar para refletir sobre dicotomias e controvérsias, dentre tantas outras possibilidades, daquela forma que Émile Zola ambicionava, sendo uma fonte de experiência para a sociedade, que se via como em um espelho e refletia sobre sua conduta. Vemos a charge da mesma maneira.

É preciso lembrar que, durante muito tempo, o contato da população com a literatura era restrito e que poucos tinham o privilégio de ler algo. Tratamos do final do século XIX, um

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período com altos índices de analfabetismo no Brasil, onde aproximadamente 75% da população não tinham o domínio da leitura de textos. Portanto, esse dado vem corroborar a ideia de que a versatilidade promovida pela caricatura ou charge pudesse auxiliar na divulgação das notícias naquela época. Pinheiro (2009) comenta sobre como as primeiras crônicas escritas em nosso país surgiram já com esse caráter risível e caricatural:

A partir dos primeiros poetas-cronistas proliferaram figuras como Gregório de Matos, como protojornalistas caminhantes do cotidiano, os primeiros especializados em descrever, através de amplificações, enumerações, hipérboles e listas díspares, com um léxico superabundante e miscigenante, as mazelas políticas, os encontros e desencontros eróticos daqueles tempos; através da política do riso, espécies de charges escriturais, expunham caricaturalmente as situações e os tipos (médicos, clérigos, freiras, corcundas) do dia a dia das províncias. (PINHEIRO, 2009, p. 23)

Com a invenção da máquina litográfica, as caricaturas e charges ganharam mais espaço nos jornais impressos no mundo todo. Desta forma, os meios técnicos para publicação e divulgação existentes em cada época e em cada lugar do mundo puderam contribuir ou servir como estopim para mudanças sociais em relação aos papéis cumpridos por cada camada da sociedade.

Assim, a imprensa e os meios técnicos “promovem um território de invenção de que participa a fruição coletiva, mesmo num veículo que busca a padronização” (PINHEIRO, 2009, p. 25) como um lugar através do qual é possível, de forma muitas vezes original e autoral, representar acontecimentos coletivos de forma ritmada e seriada, seja diária ou semanal, contribuindo com o estabelecimento de hábitos de leitura que contribuem nos processos culturais.

Acreditamos importante destacar que a imprensa do século XIX se expressava fortemente através de suas páginas humorísticas. Os personagens políticos eram livremente representados, e mesmo ridicularizados, resultado esse de uma liberdade concedida desde o reinado de D. João VI, sendo mantida, posteriormente, por D. Pedro I e II. Essa liberdade muda somente com a criação do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda, como forma de controle surgido do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas em 1939 quando se exercia censura prévia em relação a todas as notícias. É claro que vários foram os casos de autores presos, respondendo a processos ou, até mesmo, invasões e quebra de oficinas litográficas, resultando, inclusive, em algumas mortes, mas, de fato, os autores foram mais hábeis que seus censores.

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A charge na imprensa representava uma forma de contestação e de manifestação de opinião em espaço privilegiado, representando ilustrativamente crises do sistema Monárquico que poderiam ser resolvidas com outro regime, a República, como proposta revolucionária pautada em ideias advindas da Europa. Surgia então, após tanto tempo de ideias propagadas por crenças na vontade divina, tempos novos de liberalismo21.

Assim, concluímos que os artistas gráficos desse período foram ganhando espaço nos jornais da época e, de anônimos, se tornaram figuras conhecidas como críticos, escritores, jornalistas e/ou caricaturistas. Nomes como os de Angelo Agostini, Rafael Bordalo Pinheiro, Luigi Borgamainerio, Joseph Mill, Augusto Off, Pereira Neto e Antonio Alves do Valle de Souza Pinto, mais conhecido simplesmente por Valle, eram seguidos por leitores assíduos em jornais como O Mosquito, O Fígaro, a Revista Illustrada, A Semana Illustrada, O Mequetrefe, dentre outros, que “exerciam forte impacto sobre eles [os leitores] e nenhum acontecimento importante escapava à caneta dos jornalistas nem à pena dos desenhistas” (MÉRIAN, 1988, p. 105).

A literatura, a caricatura ou charge e o jornalismo mantêm relação próxima entre elas. Muitos foram os escritores literários que trabalharam como jornalistas e ficaram conhecidos pelo grande público, tais como: Machado de Assis, Lima Barreto ou, ainda, as gerações atuais como João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cury, Luis Fernando Veríssimo, Zuenir Ventura, dentre outros. O texto literário, a caricatura e a charge no jornal incorporam pontos de vista diversos, complementares às opiniões, saberes, discursos, acontecimentos históricos, sociais e antropológicos que representam o coletivo e, sobretudo, apresentam marcas de hibridismo e mestiçagens culturais que vêm sendo notadas desde as primeiras publicações jornalísticas no Brasil até os dias de hoje.

Trazemos nas páginas seguintes algumas das charges de Azevedo, de forma a ilustrar de que maneira ele apresentava seus pontos de vista:

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Liberalismo – movimento genericamente conhecido pelo conceito de progresso e emancipação do homem, baseando-se principalmente na crença do valor do indivíduo e de sua liberdade contrastando com o conservadorismo católico e com o regime monárquico, resultando, assim, em vários conflitos ocorridos em Pernambuco e no Pará, entre 1872-1875.

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Fig. 20– Câmara, Estado e Igreja de Aluísio Azevedo. Fonte: Vide Índice de Figuras.

Em Câmara, Estado e Igreja (Fig. 20) vemos o Brasil representado pelo cavalo, o imperador, representado com uma espécie de aura, está concentrado em sua leitura, indiferente ao que acontece, enquanto que um representante da Câmara, como uma anciã de saias, aponta ou ordena o caminho a seguir.

Em A Sagrada Família (Fig. 21) Azevedo faz uma apresentação irreverente da família imperial com o General Duque de Caxias como o boi de presépio. Na legenda, como um rodapé da imagem, observamos o título da charge e a menção Paródia de Rubens. Ilustramos ainda com uma obra de Peter Paul Rubens (1577-1640), praticamente homônima, A Sagrada Família com Santa Elizabeth (Fig. 24), para que nosso leitor possa observá-la, porém acreditamos que a representação mais próxima é a do pintor Rafaello Sanzio (1483- 1520), conforme imagens a seguir (Fig. 22 e 23), não desejando, evidentemente, contestar a inscrição de Azevedo. Apenas porque nos causou certo estranhamento, ainda que não tenhamos encontrado qualquer crítica ao fato.

Na versão caricatural da imagem (Fig. 21) vemos a presença do clássico bíblico: elementos como o Paraíso, Jesus Menino, Maria sua mãe, o cordeiro representado por imagens caricatas de D. Pedro II, Bispo de Olinda, General Duque de Caxias, enfim,

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personalidades conhecidas do poder político, envolvidos com a questão religiosa no Brasil (relações entre Estado-Igreja) já mencionada anteriormente.

Fig. 21 – A Sagrada Família de Aluísio Azevedo. Fonte: Vide Índice de Figuras.

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Fig. 22 – A Sagrada Família (entre 1504-1505). Fig. 23 - A Sagrada Família com Cordeiro (1507).

Fig. 24 – A Sagrada Família de Peter Paul Rubens – 1630.

Fontes: Vide Índice de Figuras.

Debochar do clássico, caricaturalmente, é uma forma de criticar valores da época, traçando paralelos e analogias entre diferentes culturas e contextos sociais. Assim, a charge permite que sintamos, a partir dessas apropriações ou adaptações, um conteúdo ainda mais crítico. Segundo Glissant (2011):

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Em relação às raças, é previsível pensar nas misturas que resultam da relação entre ambas, mas em relação à cultura, o resultado é imprevisível e rico. Está sempre em movimento e mostra uma grande instabilidade estrutural das coisas. (GLISSANT, 2011)22

Fig. 25 – Antes do Crisol e Depois ou À chegada e Alguns Anos Depois de Aluísio Azevedo. Fonte: Vide Índice de Figuras.

Essa é a primeira charge (Fig. 25) que Aluísio publica em O Fígaro tendo como tema a crítica feita a Rafael Bordalo Pinheiro, jornalista e chargista português, contratado pelo jornal caricatural O Mosquito. Na ocasião, o Barão do Lavradio protestava contra as imagens de Bordalo dizendo que o Brasil recebia de braços abertos os portugueses aqui chegados de jaquetão de brique de 30 botões, mas não tolerava os janotas que ainda por cima o insultavam. Segundo Lima (1963), “Bordalo se mete numa jaqueta com aquele número de botões enormes dourados e assim passeou no sábado seguinte, pela Rua do Ouvidor, escandalizando” (LIMA, 1963, p. 1681-82).

O que Azevedo faz é criticar a interferência dos portugueses em nosso país, recebidos de chinelas, mal vestidos e pobres, provenientes de baixas classes sociais em sua pátria, mas que após explorar a mão de obra indígena e as riquezas minerais de nosso país, como no processo fabril, saem em filas como barões. O processo de industrialização no Brasil seria uma realidade posterior ao século XIX, mas no continente europeu, já havia se iniciado no século XVIII. Considerando que a Europa era o modelo seguido por suas ideias progressistas, não estranhamos o fato de Azevedo criar uma charge em que a ideia de

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fabricação em série esteja presente. Mencionamos que várias edições de periódicos, assim como livros estrangeiros eram traduzidos para o português, assim como as charges internacionais, como a que ilustramos a seguir de Gillray (Fig. 26), que mostra Napoleão em frente a um grande forno assando bandejas de novos reis como bonequinhos de pão de mel conhecidos como gingerbread.

Fig. 26 – Napoleon the Gingerbread Baker Creating New Kings de Gillray (aprox. 1800). Fonte: Vide Índice de Figuras.

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