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5 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS: A FAVOR DE QUÊ? CONTRA QUÊ? A

6.4 O alicerce do caminho percorrido

Depois de detalhar o contexto de pesquisa, a intervenção e o percurso metodológico, neste tópico, iremos apresentar as bases metodológicas deste trabalho. Como se trata de um estudo que envolve a realização de uma intervenção, destacamos a diferenciação entre intervenção e pesquisa, pois de acordo com Silva e Oliveira (2000), a intervenção pode ser definida como “ações deliberadas no sentido de, ou criar novas, ou conformar, ou acomodar relações entre grupos sociais, culturais, entre pessoas e o ambiente em que vivem”. Já a pesquisa científica pode ser caracterizada como sendo “um estudo que busca inquirir em profundidade realidades físicas, naturais, sociais, culturais, psicológicas, orientado por questão” (p. 2). Destacamos que a pesquisa foi realizada no seio da intervenção, e a partir das ações desenvolvidas buscamos observar os processos educativos desencadeados.

Optamos pela realização de uma intervenção, sendo esta caracterizada por um conjunto de atividades desenvolvidas em um espaço de tempo determinado, a fim de desencadear questionamentos, diálogos, processos educativos, voltados à educação das relações étnico-raciais, pois consideramos que a prática da intervenção pode desencadear “modificações que poderão resultar em novas situações, relações, comportamentos, condições de vida, presumidamente melhorando-os, transformando-os, reformando-os, adaptando-os” (SILVA; OLIVEIRA, 2000, p. 2).

A escolha de realizar uma intervenção pautou-se na inciativa de desenvolver um trabalho que estimulasse os diálogos sobre as situações ocorridas no espaço do projeto em

que foi possível perceber a presença de posturas e falas que expressaram o racismo e as discriminações, buscando fortalecer o espaço do VADL-MQF como espaço de pesquisa e ação. As estratégias de pesquisa concentraram-se no seio da intervenção, de maneira que as atividades do VADL-MQF pudessem ocorrer normalmente, em parceria com as atividades de intervenção.

Apresentamos como objetivos da intervenção: modificar comportamentos relacionados ao pertencimento e relações étnico-raciais; levantar necessidades de ação junto aos/às participantes a partir de experiências destes com o tema e desenvolver atividades para educar as relações étnico-raciais a partir de uma intervenção com Africanidades.

A pesquisa foi realizada a partir de um estudo qualitativo descritivo, de inspiração Fenomenológica. Esse tipo de investigação é baseado na descrição, análise e interpretação dos dados da investigação, a fim de compreendê-los de forma contextualizada, pois nas pesquisas de abordagem qualitativa não há interesse em generalizar os dados, uma vez que estes se referem a um contexto particular (NEGRINE, 1999).

Para compreender determinada realidade, é preciso buscar as impressões daqueles que vivenciam as experiências que envolvem o tema de estudo, e por isso optamos pela abordagem qualitativa, que favorece esta perspectiva de trabalho. Compreendemos que:

Os investigadores qualitativos em educação estão continuamente a questionar os sujeitos de investigação, com o objetivo de perceber aquilo que

eles experimentam, o modo como eles interpretam as suas experiências e o modo como eles próprios estruturam o mundo social em que vivem. [...] O processo de condução de investigação qualitativa reflete uma espécie de diálogo entre os investigadores e os respectivos sujeitos, dado estes não serem abordados por aqueles de uma forma neutra. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 51)

A escolha metodológica é influenciada também pelas escolhas de posicionamento político que fazemos diante do mundo, pois “pesquisar é parte importante de nossos afazeres, conectado com nossos trabalhos de ensino, extensão e militância” (OLIVEIRA; SOUSA, 2014, p.7). Neste estudo, é pertinente o uso da pesquisa participante, pois nesta modalidade de pesquisa “a investigação, a educação e a ação social convertem-se em momentos metodológicos de um único processo dirigido à transformação social” (BRANDÃO; BORGES, 2007, p. 55).

A pesquisa participante deve ser compreendida como um repertório múltiplo e diferenciado de experiências de criação coletiva de conhecimentos destinados a superar a oposição sujeito/objeto no interior de processos que geram saberes e na sequência das ações que aspiram gerar transformações a partir também desses conhecimentos. Experiências que sonham substituir o antigo monótono eixo: pesquisador/ pesquisado, conhecedor/ conhecido, cientista/cientificado, pela aventura perigosa, mas historicamente urgente e inevitável, da criação de redes, teias e tramas formadas por diferentes categorias entre iguais/diferentes sabedores solidários do que de fato importa saber (p. 12).

E é por assim entender a pesquisa junto a grupos, no caso de nosso estudo, junto a crianças e adolescentes, que expressamos nossa fé nos homens e mulheres, meninos e meninas, jovens, todos sabedores de um saber próprio, um saber que está em interação com outros, distintos ou semelhantes, mas que ao conectarem-se no diálogo entre saberes, entre subjetividades, formam uma grande rede de aprendizado, de produção de conhecimento, em que uns aprendem com os outros, criando, reconhecendo, respeitando, valorizando.

Buscamos, com a realização de uma pesquisa participante, ser coerentes com nossa postura de pesquisadores comprometidos com nosso semelhante, com nossos colaboradores/as, enfim, com o mundo, e consequentemente, com a transformação. E é por assim sonhar, e por acreditar nesse sonho possível, que buscamos a transformação deste mundo em que estamos, a fim de que aos poucos este se torne: “um mundo de vida social onde caibam todos e todas: todo o meu eu, todos nós e todos os outros. Mulheres e homens livres, justos, incluídos, igualados em suas diferenças, ativos, críticos, criativos e criativamente participantes” (BRANDÃO, STRECK, 2006, p. 14).

A iniciativa da pesquisa surgiu devido à prévia inserção da pesquisadora no contexto de pesquisa, sendo já recorrente sua participação e envolvimento nas atividades, bem como vale destacar que os/as participantes do projeto se posicionam diante das escolhas das atividades, assim como opinam após as mesmas, dando aos educadores e/ou pesquisadores envolvidos como se fosse uma devolutiva, que geralmente se desenvolve a partir das perguntas na roda de conversa final: “Como foi o dia? O que aprenderam com as atividades de hoje? Alguém tem algum comentário sobre as atividades do dia?”. Estes questionamentos e diálogos auxiliam no andamento da pesquisa, bem como desvelam outros pontos de vista e possibilidades de trabalho a partir da fala de participantes e educadores/as sobre as experiências vivenciadas em grupo.

Como já dito anteriormente, a intervenção foi realizada na parceria dos Projetos VADL/MQF, e como procedimentos de coleta de dados foram utilizados a observação participante com registros em diários de campo e as rodas de conversa, gravadas

em áudio e posteriormente transcritas. A intervenção em Africanidades foi realizada também com o intuito de despertar e estimular diálogos acerca do tema, sendo o bojo em que se realizou a pesquisa dentro do VADL-MQF.

A escolha pela utilização de diários de campo para registro das observações deve-se ao entendimento de que este registro “ajuda o investigador a acompanhar o desenvolvimento do projeto, a visualizar como é que o plano de investigação foi afetado pelos dados recolhidos, e a tornar-se consciente de como ele ou ela foram influenciados pelos dados” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 151). Os diários de campo produzidos pela pesquisadora foram organizados a partir da perspectiva dos autores citados anteriormente, sendo divididos em duas partes: uma descritiva e outra reflexiva. Na parte descritiva, foram apresentadas as informações que compõem a descrição dos acontecimentos, do ambiente, dos/as participantes, a fim de apresentar de forma mais detalhada possível a forma como as atividades aconteceram, onde aconteceram, com quem. A parte reflexiva apresenta os chamados comentários do observador (C.O.), em que são registrados os comentários da pesquisadora sobre os acontecimentos, expressando reflexões, percepções, impressões e até mesmo formas de entender situações que não se deram de maneira explícita no decorrer das atividades. Além disso, nos dias em que foram realizadas rodas de conversa, as respectivas transcrições foram anexadas ao corpo dos diários de campo.

Os diários de campo são instrumentos de coleta de dados adequados para a realização deste estudo, pois além de experienciar o fenômeno, temos o momento de escrita do diário de campo para sistematizar esta experiência, trazendo de maneira detalhada o que vimos bem como o que percebemos, sendo já um momento de reflexão sobre os dados.

Optamos pela realização de rodas de conversa, pois estas são uma forma privilegiada para que os/as participantes possam expressar suas impressões, opiniões e vivências acerca dos temas propostos e situações que vão surgindo com as falas e relatos daqueles que participam das rodas. Nesse sentido, consideramos que as rodas de conversas são “uma oportunidade de aprendizagem e de exploração de argumentos, sem a exigência de elaborações conclusivas” (SILVA; BERNARDES, 2007, p. 54), pois não se pretende com elas chegar a alguma conclusão definitiva, mas sim possibilitar questionamentos, reflexões e falas que possibilitem aos/às participantes ensinar e aprender, educar e educar-se na relação com o outro, com diferentes opiniões e pontos de vista.

A roda de conversa é uma possibilidade que permite ao pesquisador/a aproximar-se como sujeito de pesquisa, pois participa da conversa desencadeada e, ao mesmo tempo, realiza intervenções a fim de suscitar questionamentos e impressões para estimular o

diálogo dos/as outros/as participantes sobre o assunto em pauta, podendo ser uma forma de partilhar experiências, desenvolvendo reflexões sobre as práticas educativas dos/as participantes. Ao transcrever as rodas de conversa, para além do registro escrito das falas dos/as participantes exatamente como estas foram ditas, é possível perceber e registrar expressões e silêncios, o que só pode ser feito a partir da realização destes momentos de forma atenta e comprometida por parte do/a pesquisador/a que desenvolve o estudo.

As rodas de conversa são um espaço de abertura para o diálogo, e este é um elemento chave para a realização desta pesquisa. De acordo com Freire (2005) é preciso que haja diálogo, pois este é uma exigência existencial, é o encontro dos homens e mulheres, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando na relação eu-tu. Entretanto, salienta que não há diálogo se não houver humildade, amor profundo ao mundo e aos homens e mulheres, fé nos homens e mulheres, crer neles, pois para o autor, o diálogo se faz numa relação horizontal pautada na confiança mútua.

Por isso foi coerente estabelecer com os participantes da pesquisa relações pautadas na confiança, no respeito e na amorosidade. Sobre a fé nos homens e mulheres, no Outro, Dussel (2009) destaca que para reconhecer como válida a cultura do Outro, é necessária uma relação de alteridade, pois para o autor “aceitar como verdadeiro o que diz o Outro significa um ato prático, um ato de fé no Outro que pretende dizer algo verdadeiro” (DUSSEL, 2009, p. 365). Esta mesma alteridade de que fala Dussel é importante nesta pesquisa para reconhecer na fala do Outro, nos gestos do Outro, conhecimentos, saberes e culturas válidos e que merecem ser respeitados. É no diálogo entre diferentes que encontramos a possibilidade de aprendizagem e crescimento, dialogando para conhecer, conhecendo para respeitar.

O diálogo com o diferente exige dos/as pesquisadores/as uma postura de compromisso ético, pois de acordo com Araújo-Olivera (2014), para fazer pesquisa adotando uma postura ético-política, é necessário inserir-se no grupo com quem se pretende pesquisar, estabelecendo relações de confiança, ouvindo o Outro, estando aberto a ele, o que influencia nas escolhas metodológicas. Segundo a autora, “os percursos das pesquisas vão se construindo no vaivém de diálogos e reflexões gerados na proximidade, no face a face com o Outro, ombro a ombro na comunidade de trabalho, na convivência, na partilha do fazer junto com o Outro” (p. 61).

Para Araújo-Olivera (2014), o diálogo é mais do que uma abordagem metodológica, um caminho, uma mediação; é paradigma epistemológico, é a maneira para buscar a humanização de homens e mulheres e de suas relações. Segundo a autora, “exercer o

diálogo como direito e afirmação da diferença, num contexto que pretende negar essas diferenças ou que as diferenças são utilizadas para inferiorizar e melhor explorar ao diferente, põe em questão o sistema de poder que sustenta a desigualdade” (p. 63).

Os pilares que embasam a perspectiva da pesquisa participante nos fortalecem no sentido de uma ação dialógica na pesquisa, pois esta é um “instrumento dialógico de aprendizado partilhado [...], possui organicamente uma vocação educativa e, como tal, politicamente formadora” (BRANDÃO, 2006, p. 46). Entendemos que o diálogo na prática de pesquisa visando à transformação do mundo é um instrumento de aprendizagem, é educativo, é momento de abertura para o aprendizado com outrem, a fim de partilhar para seguir em busca de uma transformação emancipatória, que possa trazer à tona, colocar em destaque diferentes pontos de vista, mas, principalmente, o daqueles que são nossos colaboradores de pesquisa, que experienciam realidades injustas, excludentes, desiguais.

É nesta perspectiva que adotamos o diálogo nesta pesquisa de Doutorado, colocando-o como direito de afirmação das diferenças para questionar os mitos que sustentam a desigualdade. Nesta forma de diálogo, é que “há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação” (FREIRE, 2005, p. 192). Para que o diálogo ocorra, é preciso que exista a escuta do outro, de sua fala, de seus gestos, de suas diferenças, e para que haja escuta, é preciso aceitar e respeitar as diferenças. No diálogo, é preciso falar com as pessoas e não a elas, pois falando a elas como se fôssemos portadores da verdade, não estamos nos abrindo para a escuta, estamos falando de maneira impositiva, sem nos considerarmos sujeitos da escuta da fala do outro.

Para Brandão (2014), a razão de ser da ciência não é mais somente criar saberes e conhecimentos, mas sim na interação entre saberes, no diálogo entre pessoas. Para o autor, um avanço nas pesquisas depende que esta se configure como práxis, buscando um pensar dialógico e crítico a respeito de uma realidade que se empenha em transformar. Para o autor:

Todo nosso trabalho em pesquisar o que quer que seja deve desaguar em uma das muitas dimensões de uma ação social e, entre elas, de uma educação vivida e pensada como uma experiência socialmente perene e pessoalmente permanente na vida de cada um de seus sujeitos: pessoas e povos (2014, p. 14).

Brandão (2014) fala sobre a circulação do conhecimento entre as pessoas e grupos de pessoas para que este possa desaguar na educação, como forma de sabedoria para que deixe de ser privilégio apenas de alguns e passe a integrar um projeto de mudança. Nesta

pesquisa, buscamos um projeto de mudança, que possa trazer à tona as compreensões sobre as culturas africana e afro-brasileira, sobre as discriminações vividas, sentidas e praticadas, para que possam dialogar sobre sentidos, caminhos e construções que colaborem para um novo projeto de sociedade, em que sejam fortalecidas as diferentes identidades dos povos latino- americanos, identificando seu modo de ser e estar no mundo, desconstruindo, construindo, modificando e reconstruindo a partir de suas experiências vividas seu próprio modo de estar sendo no mundo.