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“É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, Ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos

transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.”

(Larrosa Bondía)

É com as palavras de Larrosa Bondía que iniciamos o capítulo final desta Tese, momento em que iremos retomar os principais pontos deste estudo, bem como trazer nossas considerações sobre a experiência desta pesquisa.

Primeiramente, iremos destacar a intervenção como um dos pontos centrais deste estudo, pois a pesquisa foi realizada no seio de uma intervenção com Africanidades. Consideramos que, uma intervenção é ação no mundo dotada de sentidos e experiências, pois intervir significa vir entre, estar entre pessoas, em comunicação. Nesta experiência de intervenção, cabe destacar a experiência da pesquisadora, que se inseriu no grupo de participantes e educadores com determinados objetivos a fim de realizar uma intervenção junto a esse grupo. Para realizar a intervenção de maneira a vir entre o grupo, foi necessário que houvesse uma postura de aproximação dotada de sentidos, de maneira a falar com os participantes e não a eles, pois somente com uma postura de horizontalidade seria possível estabelecer o diálogo para então poder falar sobre relações étnico-raciais.

Este falar sobre deu-se em conversas entre educadores e participantes, pensando o nosso conversar em um sentido de versar com, pois nessas conversas, ao mesmo tempo em que derramamos nossas compreensões sobre outrem, também recebo compreensões, informações, experiências. Conversar sobre relações raciais é dizer o que nos toca e ouvir o que toca outrem, sendo tocados pelas compreensões derramadas. A partir desta perspectiva, destacamos a importância da relação entre o falar e o ouvir, ações dotadas de intencionalidades, que despertam no convívio e no contato das conversas o desejo em melhor conhecer outrem e mundo que nos cerca. Somente conversando, falando sobre relações raciais é que podemos questionar a realidade, as posturas e falas discriminatórias, para juntos construirmos outras possibilidades para enxergar e agir frente ao racismo e às discriminações. Se não houver conversas, o racismo velado ganha forças e a nossa capacidade de argumentação e resistência se encolhe frente à imposição.

Outro ponto central deste estudo são as práticas de resistência e de imposição envolvidas na educação das relações étnico-raciais, pois se resistimos, resistimos a algo, e se sabemos da existência da imposição, fortalecemos nossos argumentos e engajamentos para lutar contra as injustiças. As práticas de resistência dos povos latinoamericanos expressam as lutas travadas para desconstruir a imposição do eurocentrismo. Dessa forma, consideramos que as práticas de resistência historicamente educam nas e para as relações étnico-raciais, o que se reflete nos dados de nossa pesquisa, pois quando os participantes resistem, estão nos mostrando os reflexos da imposição do eurocentrismo e ao mesmo tempo nos apontando caminhos por onde seguir na luta pela desconstrução das práticas de imposição. Sendo assim, consideramos que a educação das relações étnico-raciais é um processo de resistência, perpassado de anos de lutas e conquistas, mas que ainda necessita de novos olhares e iniciativas, e é no diálogo sobre a imposição, questionando a interiorização que podemos avançar na des/construção de posturas e práticas.

Neste estudo, trabalhamos com a intervenção no sentido de desconstruir imagens negativas e equivocadas, construindo outras possbilidades de ser e estar ao mundo com outrem, buscando outras maneiras de enxergar os acontecimentos, as práticas, as pessoas. Esse processo de desconstruir/construir, como via de mão dupla, está implicado na educação das relações étnico-raciais, pois implica a abertura para conhecer, reconhecendo de maneira respeitosa, conhecendo a história para poder conhecer nossa própria humanidade, aproximando-nos de outrem. Consideramos que, por meio destas práticas é possível alcançar uma das finalidades que estão presentes com a realização de uma pesquisa, que é descobrir o que estava encoberto. Por muito tempo foi encoberta a existência e relevância dos povos e culturas negros/as, mas as ações voltadas para a desconstrução das visões eurocentradas tem alcançado importantes avanços na educação das relações étnico-raciais.

Este estudo teve como objetivo: Identificar e compreender os processos educativos decorrentes de uma intervenção com Africanidades para educação das relações étnico-raciais na parceria dos projetos VADL-MQF. Consideramos que, a partir das atividades realizadas e dos dados construídos nesse processo, foram desencadeados processos educativos relacionados à educação das relações étnico-raciais. Neste ponto, vale lembrar os questionamentos colocados por Silva (2014) sobre a inserção em práticas sociais para observação de processos educativos, afinal, “enquanto nos formamos professores, educadores, pesquisadores, nos perguntamos e buscamos responder: Estamos nos formando para quê? Educando com que fim? Para que realizamos esta ou aquela pesquisa?” (p. 26). É nesse sentido que iremos tecer estas considerações, buscando reafirmar nossos posicionamentos a

partir da experiência de pesquisar com as pessoas e não sobre elas, construindo conhecimentos de maneira respeitosa a partir do diálogo e da convivência.

Pensando no questionamento: “Para que realizamos esta ou aquela pesquisa?”, podemos encontrar respostas que estão inscritas na própria trajetória de vida, no processo de tornar-se pessoa e, posteriormente, tornar-se pesquisador/a. Entendemos que ao fazer uma pesquisa estamos partindo de uma intencionalidade, de um modo de ver o mundo, que influencia nossas escolhas e caminhos, e que, a partir da experiência vivida junto ao grupo de participantes/colaboradores/as da pesquisa, estamos a cada encontro questionando, ampliando, ressignificando, reposicionando nosso ponto de partida (OLIVEIRA et al. 2014). Consideramos que ao longo da pesquisa, nossos posicionamentos foram se modificando, se refazendo, ampliando. Um dos posicionamentos que encontrou fortalecimento foi a militância e o engajamento na luta pelo combate ao racismo, discriminações e desigualdades, pois o que observamos, vivenciamos e ouvimos junto aos/às participantes desta pesquisa só nos move a continuar nesta luta, renovando não só o engajamento, mas também a esperança e a fé nas mulheres e homens.

Consideramos que o embasamento teórico, a busca por referenciais e o estudo da literatura pertinente à educação das relações étnico-raciais trouxeram contribuições para o desenvolvimento da intervenção com Africanidades de maneira coerente e comprometida, pois somente o estudo poderia nos trazer o conhecimento necessário para buscar uma prática politizada e não romantizada das ações a serem desenvolvidas. Dessa forma, entendemos que a educação das relações étnico-raciais não pode se dar sem o necessário estudo e problematização para que não se incorra em equívocos históricos, erros e distorções.

Ao abordar diferentes temas e assuntos relacionados à diversidade étnica e racial, trouxemos para o diálogo falas dos/as participantes que refletem as ideias racistas e preconceituosas reproduzidas e perpetuadas por uma sociedade racista, sexista e homofóbica. Com essas falas, pudemos dialogar sobre a diversidade, apresentando outras culturas, conhecimentos e formas de ser no mundo, a fim de desconstruir imagens negativas e preconceitos já apresentados pelos/as participantes. Assim, possibilitamos espaços para que os/as participantes desta pesquisa pudessem conhecer e se reconhecer, a partir de novas ideias e informações sobre a cultura africana e afro-brasileira, sobre o continente africano, sobre a escravização de indígenas e negros/as, sobre o racismo e o preconceito, construindo outros conhecimentos a partir da convivência e do diálogo.

Esses diálogos foram enriquecedores para o convívio pautado no respeito às diferenças, pois ao se colocarem disponíveis para conhecer o diferente, o novo, os/as

participantes estão se abrindo para o reconhecimento da influência de diferentes culturas na formação da sociedade. Ao trazer conhecimentos, referências, convidados/as e personagens negros/as para a experiência dos/as participantes, estamos possibilitando que novas histórias comecem a ser contadas e valorizadas, pois consideramos que negros/as, indígenas, brancos/as, enfim, todos/as devem ser contemplados e valorizados nas práticas educativas.

Compreender a história, a cultura, as origens e trajetórias de diferentes povos é importante não somente para crianças e adolescentes, mas para toda a sociedade brasileira, pois ao questionar os mitos que ainda sustentam a superioridade de uns sobre outros, podemos construir estratégias e firmar ideais de justiça que nos ajudem a caminhar na construção de um país justo, em que a diversidade e a diferença sejam valorizadas e respeitadas, trabalhando a partir de imagens e experiências positivas que sejam capazes de fortalecer a autoestima de crianças, jovens e adultos, conhecendo nossa história e reconhecendo a influência da diversidade de conhecimentos em nossa formação.

Consideramos que, para educar as relações étnico-raciais no Brasil, é preciso superar o discurso de colonialidade presente na realidade brasileira, pois este está implicado no padrão de poder hoje hegemônico e que define as hierarquias a partir de uma suposta superioridade de uns sobre outros para justificar a dominação e exploração (QUIJANO, 2005). Consideramos que a partir de uma intervenção com Africanidades, pudemos trabalhar com temas, assuntos e conhecimentos a partir de uma perspectiva que não nega que estamos imersos em uma sociedade racista, mas que reconhecer a presença desta realidade, traz a problematização para que possamos sair de nosso lugar de conforto e passemos a questionar discursos e práticas discriminatórios.

Consideramos ainda, que não basta tratar da diversidade apenas trazendo informações que comprovem a influência cultural de povos africanos em nosso país, é preciso mais que isso, pois a realidade brasileira abriga de maneira cruel o mito da democracia racial que fortalece a negação do racismo nas práticas cotidianas. E é por isso que não podemos educar as relações étnico-raciais começando por negar o racismo presente em nossa sociedade, pois o silenciamento diante das práticas racistas é também uma forma de manter as ideias de diferença como sinônimo de desigualdade, quando na verdade precisamos reconhecer e valorizar as diferenças para alcançar relações justas e respeitosas.

Se aprendemos a ser racistas pelas práticas e vivências em nossa sociedade, podemos também aprender a combater o racismo, a identificar formas de discriminação que se fazem presentes e contribuem para a realidade de inferiorização dos/as negros/as na sociedade brasileira, sendo para isso essencial educar as relações étnico-raciais a partir de

visões de mundo e posturas que contribuam para que se construam relações pautadas no respeito às diferenças. Quando dizemos relações pautadas no respeito às diferenças estamos querendo dizer que é preciso reconhecer em outrem e nas outras culturas aquilo que é também parte de nós, de nossa história. Para isso, consideramos que é preciso questionar a hierarquização posta até então e, criar a unidade na diversidade (FREIRE, 2012), trabalhando não só as diferenças entre os indivíduos, mas também as semelhanças, para reconhecer na humanidade de outrem, também a minha humanidade.

E é por reconhecer a pluralidade de pontos de vista, visões de mundo e possibilidades de conhecimento, que entendemos que o trabalho com a educação das relações étnico-raciais não se pauta na criação de outra hierarquia colocando a cultura africana e afro- brasileira como dominante, mas o que precisamos é saber que durante muito tempo o conhecimento dessas culturas nos foi negado, impossibilitando o reconhecimento de sua existência e influência em nosso cotidiano, o que reforça a necessidade urgente para que sejam questionadas teorias eurocentradas, buscando o que Santos (2009) denomina de epistemologias do Sul, ou seja, ampliando o espaço de produção de conhecimentos e de modos de pensar, dando espaço para outras formas de ver que não estejam embasadas em critérios de superioridade e inferioridade, mas que busquem um diálogo que seja fecundo e respeitoso.

As falas dos/as participantes, as experiências e os processos educativos desencadeados durante esta pesquisa apontam no sentido de um caminho possível, de uma luta necessária e constante. Não temos a ilusão de que com a realização deste estudo as práticas racistas tenham sido erradicadas, pois o ideário da sociedade racista se mantém alicerçado no mito da democracia racial, o que demanda o olhar cuidadoso e atento, a intervenção respeitosa, pois se tratam de percepções que os indivíduos constroem ao longo da vida, nas interações nas instituições de que fazem parte (escola, família), e que não podem ser desconstruídos com a mesma violência com que foram interiorizados. Consideramos que, ao mesmo tempo em que identificamos falas e posturas preconceituosas, pudemos observar posicionamentos respeitosos que mostraram que outros pontos de vista têm ganhado espaço e reconhecimento no que diz respeito à convivência em grupo, o que enriquece o diálogo e possibilita a problematização da experiência de ser ao mundo com outrem.

Consideramos que o potencial emancipatório das ações desenvolvidas se confirma pela presença dos processos educativos desencadeados, que se expressam nas relações de ensinar e aprender entre todos/as os/as envolvidos/as na pesquisa. Como processos educativos podemos destacar que a intervenção com Africanidades possibilitou: aprender e

ensinar: dialogando a partir das diferenças, vendo a mim mesmo e a outrem de maneira respeitosa, reconhecendo que não sabemos todas as coisas, mas que podemos conhecer a partir de uma postura de curiosidade epistemológica, conhecendo outros pontos de vista por meio da escuta e do diálogo, respeitando as diferentes opiniões e divergências de posicionamentos, reconhecendo em outrem a minha própria humanidade. Estes são alguns dos processos educativos desencadeados e que foi possível destacar a partir de nosso ponto de vista, que reconhecemos ser apenas um dos possíveis e existentes. Consideramos que, a partir dos processos educativos desencadeados foi possível construir uma nova compreensão sobre a relação com outrem e a diversidade, sendo possível a partir da escuta e do diálogo compreender que sempre temos algo a aprender, a conhecer, a entender.

Consideramos que a intervenção com Africanidades realizada demonstrou um potencial emancipatório no que diz respeito à educação das relações étnico-raciais junto ao grupo de colaboradores/as, pois é no reconhecimento da alteridade que podemos nos tornar mais humanos, estabelecendo relações respeitosas, fazendo da curiosidade epistemológica em relação ao mundo e a outrem, alimento para a busca do “bem viver”, como uma nova existência social possível, liberada de dominação/exploração/violência, perpassada pela “des/colonialidade” do poder (QUIJANO, 2013). Somente através da alteridade é que podemos compreender que o “bem viver” só pode ser construído nas relações, e educando as relações étnico-raciais embasados pela convivência e pelo respeito é possível desconstruir concepções eurocentradas voltadas à dominação de outrem, buscando justiça combatendo as discriminações. Isso implica que sejamos seres dotados de tal sensibilidade que nos permita reconhecer como parte integrante do mundo, como ser ao mundo, tocando e sendo tocado, o que nesta perspectiva implica nos reconhecermos como parte também da natureza, o que reforça nossa humanidade.

Consideramos que nos tornar mais humanos pode ser parte de um processo que reconheça, como apresentam os referenciais da cultura africana, uma possibilidade de emancipação e superação para construção de um mundo pautado pelos ideais de uma vida digna. Retomamos assim, as palavras de Castiano (2015), sobre o que constitui um sábio africano, e que possamos ter nessa forma de ver uma esperança para a construção de outras relações que considerem acima de tudo nossa humanidade, sendo suleados pela ética, pela justiça, pela solidariedade, pela tenacidade, pela paz e pelo engajamento.

A realização de uma pesquisa a partir de uma intervenção com Africanidades no contexto de um projeto de lazer mostra-se como um despertar de olhares para a amplitude dos espaços educativos, e neste caso, especialmente, um projeto de lazer que se realiza a partir

de compromisso ético e epistemológico com crianças de classes populares e com a luta contra as injustiças, o preconceito, o racismo. Estamos nos formando enquanto pessoas em todas as experiências de que participamos ao longo da vida, e por isso, esta pesquisa voltou os olhares para a educação das relações étnico-raciais em um projeto de lazer, mostrando que as relações têm se fortalecido e rompido de acordo com as posturas que assumimos com outrem ao mundo, sendo influenciadas pelo contexto, mas podendo ser construídas e reconstruídas no convívio respeitoso e através de uma educação dialógica e problematizadora.

O trabalho realizado com esta pesquisa pode ser considerado como uma pequena parte de uma luta que está se construindo, formando, afirmando a cada dia, pois esta é um processo marcado por avanços e limites. Consideramos que não se encerra com uma pesquisa, mas é também aprendizagem ao longo da vida, e que possa ser aprendizagem também para os colaboradores que fizeram parte deste trabalho. Uma semente foi plantada, com muito carinho, cuidado e respeito. Se ela dará frutos? Não sabemos. O importante é deixarmos pelo caminho as sementes e sempre que possível refazer o caminho para arar e adubar a terra. Que o diálogo e o respeito sejam os alimentos para que essa semente cresça, floresça e dê frutos, essa é a nossa esperança.