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Alterações no capitalismo mundial e a inserção da periferia: a preocupação com os

Parte I – Influências teóricas no âmbito do pensamento econômico latino-americano

Capitulo 1 – O estruturalismo Latino-americano

1.3 Celso Furtado e o subdesenvolvimento latino-americano

1.3.5. Alterações no capitalismo mundial e a inserção da periferia: a preocupação com os

Um aspecto importante que ganhou bastante destaque no pensamento de Furtado, sobretudo desde meados da década de 1960, foram as transformações na economia internacional no contexto da Guerra Fria – onde os mercados passam a ser representados pelas transações internas às grandes empresas, com predomínio do oligopólio –, enfoque que permitiu ao autor refinar ainda mais suas análises sobre a polaridade desenvolvimento- subdesenvolvimento e a inserção externa da periferia.

A preocupação com uma nova ordem internacional em gestação e as consequências disso para o desenvolvimento periférico já preocupa Furtado em Subdesenvolvimento e estagnação. Como afirma o autor,

Se, para os Estados Unidos, o problema fundamental nesta segunda metade do século XX, é o de sua “segurança”, isto é, o da forma de organização mundial que prevalecerá como decorrência da revolução tecnológica em curso, a qual pretendem seja compatível com a preservação do American way of life no seu território e com a defesa dos interesses econômicos americanos fora desse território, do ponto de vista latino-americano o problema crucial é o do ‘desenvolvimento’, vale dizer: o de abrir-se um caminho de acesso aos frutos dessa revolução tecnológica. (1966, p. 38)

Se, como propõe o autor, a questão da “segurança” norte-americana inclui a manutenção do status quo social na América Latina, sua preocupação recai sobre a maneira como os EUA enxergam aquilo que é crucial para região: seu desenvolvimento. A resposta encontrada é clara:

Este ponto é o de que cabe às empresas privadas norte-americanas um papel básico no desenvolvimento latino-americano e que a execução da política de ‘ajuda’ dos Estados Unidos deve ser principalmente por intermédio dessas empresas. (...) Acordos de garantia vem sendo assinados com governos latino- americanos, que atuam em determinado país, e passam a gozar de situação privilegiada relativamente a idênticas empresas que operam no território dos Estados Unidos. (Idem, ibidem, pp. 42-3 – grifos nossos)

Este ponto também foi abordado em Teoria e Política do Desenvolvimento

Econômico, quando o autor reconhece que nas últimas etapas do processo de industrialização

por substituição de importações “a grande empresa internacional” desempenha o papel de elemento dinamizador nas economias - o que, no entanto, veio acompanhado de um

estreitamento dos laços de dependência entre a periferia e o centro, pois estas empresas impõem altos padrões de consumo (com impactos nocivos sobre a distribuição de renda), e suas operações exigem vultosas importações (inputs para a produção), elevados pagamento de

royalties, e de dividendos, de patentes, o que eleva o endividamento externo.

Com efeito, por um lado, temos uma redução relativa dos fluxos reais (declínio do sistema tradicional de divisão internacional do trabalho), por outro uma apropriação crescente por empresas sediadas nos centros dominantes dos frutos dos aumentos de produtividade nos subsistemas dependentes. Como o segundo processo exige a criação de um fluxo real no sentido periferia-centro, será difícil conciliá-lo com o lento crescimento ou declínio relativo da capacidade de pagamentos internacionais dos países subdesenvolvidos. Enquanto se realizava a substituição de importações, esse desequilíbrio potencial pode ser absorvido, se bem que com fortes pressões sobre as balanças de pagamentos dos subsistemas dependentes. Esgotadas essas possibilidades, tende a abrir-se uma fase de forte endividamento externo dos países subdesenvolvidos. (Furtado, 1967, p. 264)

No entanto, é no livro O mito de desenvolvimento (1974) que Furtado dará um melhor tratamento a estas questões e é onde nos basearemos sobre esta questão.

No início deste ensaio o autor lança a provocação de que o desenvolvimento é um mito e levanta uma questão: quais as opções que se apresentam aos países que sofrem a deformação do subdesenvolvimento em meio às tendências do capitalismo ao longo dos anos 1970, com destaque para o papel crescente dos oligopólios?

O autor começa resgatando a velha tese cepalina de que o subdesenvolvimento nada tem a ver com a idade de uma sociedade – é, antes, fruto das transformações ocorridas no âmbito do sistema mundial, tendo inicialmente se consolidado na Inglaterra e ficando concentrada neste país até que outros países reagissem em fins do século XIX no sentido de consolidarem seus “Sistemas Econômicos Nacionais” (SEN) formando, assim, o “clube das economias desenvolvidas” do século XX. A participação do Estado nacional neste processo foi crucial, dado que norteava o processo de acumulação, guiando a aliança de grupos sociais em torno de um projeto nacional. No caso da periferia, o processo de industrialização não se orientou para formar um SEN, mas sim para complementar o sistema econômico internacional.

Nessas economias, os incrementos de produtividade resultam fundamentalmente de expansão das exportações e não do processo de acumulação e dos avanços tecnológicos que acompanhavam no centro do sistema essa acumulação. (Furtado, 1974, p. 22)

A linha divisória entre o desenvolvimento e subdesenvolvimento, neste caso, passa a ser a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento da produtividade.

Os países desenvolvidos utilizaram o aumento da produtividade para a criação de um SEN com grande proteção às atividades (industriais e agrícolas) e, igualmente importante, este processo de acumulação de capital propiciou uma melhora na distribuição de renda (pois permitiu avanço simultâneo entre salários reais e do consumo da massa). Já nos países subdesenvolvidos, o aumento de produtividade (o excedente geral) assumia a forma de incremento das importações (de bens de consumo duráveis), de modo que tais sociedades se inseriram na civilização industrial reproduzindo miniaturas dos sistemas industriais centrais. A modernização da periferia deu-se via assimilação dos padrões de consumo dos países centrais, que implantaram dezenas de empresas subsidiárias na periferia.

...[a] industrialização fundada na chamada “substituição de importações” (...) tende a reproduzir em miniatura sistemas industriais apoiados em um processo muito mais amplo de acumulação de capital. Na prática, essa miniaturização assume a forma de instalação no país em questão de uma série de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, o que reforça a tendência para reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média. Daí resulta a conhecida síndrome de tendência à concentração da renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos. (Idem, ibidem, pp. 24-5)

Neste caso, a acumulação de capital favorece e é favorecida por uma distribuição menos igualitária da renda – este é o legado trazido pela industrialização aos países periféricos. O autor mostra que o “mimetismo cultural” é a pior forma da dependência do subdesenvolvimento (é a dependência cultural que estimula e aprofunda a dependência econômica externa).

A industrialização na periferia foi conduzida pelas empresas dos países centrais e corresponde a uma terceira fase da evolução do capitalismo. Nesta nova fase, o capitalismo assume algumas características próprias e a principal delas é que o sistema passa a prescindir “de um Estado, nacional ou multinacional, com a pretensão de estabelecer critérios de

interesse geral disciplinadores do conjunto das atividades econômicas” (Idem, ibidem, p. 33

– ênfase no original).

Assim, nesta nova etapa, há uma transformação das funções dos Estados e a emergência de uma nova organização política, que se iniciou com um processo de integração das economias centrais (tendo sua expressão na formação de blocos como o GATT e o Mercado Comum Europeu). Esta transformação política do sistema é um desdobramento do conflito bélico mundial (II Guerra Mundial) e sua unidade de comando se deve à reconstrução da Europa e Japão, ao processo de descolonização e, como veremos adiante, à aceitação do

padrão-dólar – tudo ocorrendo sob liderança política e econômica dos EUA, como um “guardião do sistema capitalista”:

...a tutela política norte-americana foi um resultado ‘natural’ do último conflito mundial. (...) Estabelecida a preeminência política norte-americana, criaram-se condições para que se dessem profundas modificações estruturais no sistema. (...) É possível que a tutela política norte-americana foi facilmente aceita pelo fato de que, no plano econômico, ela não se ligou a um projeto definido em termos de interesses norte-americanos: foi apresentada como um instrumento de defesa da ‘civilização ocidental’, o que, para fins práticos, confundia-se em grande medida com a defesa do sistema capitalista. (Furtado, 1974, pp. 34-6)

Um segundo traço desta fase do capitalismo é que a empresa oligopólica se constituiu num poderoso instrumento de expansão econômica – e sua grande força deriva, além das economias de escala, fundamentalmente de seu poder de organizar mercados (administrar preços, assegurar autofinanciamento e ter poder de planejar a longo prazo). Como tais organizações atuam internacionalmente, suas decisões independem das decisões dos governos de seus países. Na verdade, como mostra o autor, há uma subordinação dos Estados às tais corporações, na medida em que elas i) controlam a inovação (o principal instrumento da expansão internacional), ii) são responsáveis por grande parte das transações internacionais, e iii) têm autonomia frente à ação de qualquer governo.

O traço mais característico do capitalismo na sua fase evolutiva atual está em que ele prescinde de um Estado, nacional ou multinacional, com a pretensão de estabelecer critérios de interesse geral disciplinadores do conjunto das atividades econômicas (...) Mas, como tanto a estabilidade quanto a expansão dessas economias dependem fundamentalmente das transações internacionais e estas estão sob o controle das grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tenderam a ser relações de poder. (Furtado, 1974, p. 33)

Esta tutela trouxe impactos aos EUA, com destaque para o aumento considerável de seu déficit comercial, o qual permitiu, por um lado, o ajuntamento de uma massa de liquidez que facilitou um rápido desenvolvimento do mercado financeiro internacional e, por outro, uma mudança no sistema monetário internacional, baseado unicamente no dólar, e não mais no ouro – prova cabal, segundo o autor, da preeminência dos EUA para o conjunto do sistema capitalista. “O fato de que a emissão do dólar seja privilegio do governo dos Estados Unidos

constitui prova irrefutável de que esse país exerce com exclusividade a tutela do conjunto do sistema capitalista” (Furtado, 1974, p. 39).

Uma vez unificados, os países centrais conseguiram crescer mais que os periféricos, aumentando o fosso que já separava o centro da periferia do sistema. Dado que a relação entre centro e periferia se formou em operações internas das grandes empresas, a rentabilidade

delas na periferia tende a ser maior que a das matrizes e o fator fundamental apontado por Furtado é a mão-de-obra barata da periferia (baixo custo em relação ao valor do produto final vendido no mercado internacional) – este é o instrumento garantidor de competitividade internacional.

“...a grande empresa, ao organizar um sistema produtivo que se estende do centro à periferia, consegue, na realidade, incorporar à economia do centro os recursos de mão-de-obra barata da periferia. Com efeito, uma grande empresa que orienta seus investimentos para a periferia está em condições de aumentar sua capacidade competitiva graças à utilização de uma mão-de-obra mais barata em termos dos produtos que lança no mercado” (Idem, ibidem, p. 51).

Na periferia, o processo de miniaturização do sistema industrial dos países centrais representou facilidades às empresas dos países centrais. Quando as empresas internacionais se deslocam para a periferia, com este “projeto de desenvolvimento nacional”, há um enraizamento da dependência no sistema produtivo. O problema é que tais empresas não modificam a situação subdesenvolvida (ao contrário, aproveitando-se dos baixos salários, tende a rebaixá-los ainda mais). Logo, a condição subdesenvolvida tende a se agravar ou, no mínimo, a se perpetuar, pois a abertura externa não contribuiu para uma redução da taxa de exploração. Daí um sentido mais amplo (ou preciso) ao subdesenvolvimento, como sendo a

conexão entre um processo interno de exploração e um processo externo de dependência.

Furtado é claro: enquanto perdurar esta situação, quanto maior for o crescimento econômico, maiores serão os desequilíbrios no sentido de desigualdades sociais. Se os Estados periféricos não inverterem a tendência das grandes empresas de rebaixar os salários na região, o próprio processo de industrialização nestes países contribuirá para aumentar o fosso que os separa do centro do sistema.

Se as grandes empresas continuam a pagar na periferia salários correspondentes ao “preço de oferta” da força de trabalho, o próprio processo de industrialização dos países periféricos contribuirá para aumentar o fosso que os separa dos centros do sistema. (...) Como o grau de acumulação alcançado na economia não permite generalizar essa taxa de salário, o fundo do problema do subdesenvolvimento não se modificaria. Para alcançar esse fundo, seria necessário que os recursos retidos no país periférico pudessem ser utilizados em um processo cumulativo, visando a modificar a estrutura do sistema econômico para uma crescente homogeneização. A questão última está na orientação do processo de acumulação, e essa orientação continuaria nas mãos das grandes empresas. Assumir essa orientação, vale dizer, estabelecer prioridades em função dos objetivos sociais coerentes e compatíveis com o esforço de acumulação seria a única forma de liberar a economia da tutela das grandes empresas. (Idem, ibidem, pp. 77-8)

Assim, diante destas transformações, a periferia tende a ter um papel crescente na evolução do sistema mundial. Em primeiro lugar, pelo próprio deslocamento das empresas transnacionais (pois estas encontrarão na exploração da mão-de-obra barata um ponto de apoio para se firmarem no conjunto do sistema). Em segundo lugar, os países centrais tendem a se tornarem cada vez mais dependentes de recursos naturais (não reprodutíveis), e esta demanda tende a ser crescente na medida em que aumenta o fosso que separa o centro da periferia (o que pode ter graves consequências ambientais). Se o padrão de consumo do centro de generalizasse no planeta, não haveria recursos renováveis suficientes, e isto, na opinião de Furtado, poderia levar a civilização a um inexorável colapso. Assim, a ideia de desenvolvimento econômico (isto é, de que os povos pobres poderão algum dia desfrutar das formas de vida dos povos ricos) é simplesmente irrealizável, é um “mito”. Esta é uma clara resposta à análise de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto sobre a possibilidade de a região se desenvolver via integração internacional – ponto tratado no próximo capítulo.