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CAPÍTULO I O Golpe de 64: Lutas de Classes e Dependência

1.1. O Acirramento das Lutas de Classes

1.1.2. Alterações no Projeto de Industrialização

De acordo com Mendonça (1986), as alterações das políticas brasileiras no governo Kubitscheck foram profundas e ocorreram de forma muito rápida. Houve, especialmente, uma ruptura drástica com o modelo de política econômica instalado até então. Neste cenário, a autora destacou dois níveis primordiais de transformações: a redefinição do setor industrial a ser beneficiado pelo Estado e as novas formas de financiamento da industrialização em curso.

Enquanto o modelo anterior privilegiava o setor da indústria pesada, o ramo industrial que passou a ser beneficiado pelas diretrizes de acumulação aplicadas no governo JK foi o de bens de consumo duráveis. Para esse setor se dirigiam, a partir deste momento, “direta ou indiretamente, todos os estímulos econômicos do governo, revelando a opção pelo favorecimento da produção de automóveis, eletrodomésticos e similares” (MENDONÇA, 1986, p. 53). A autora ressalta ainda que fatores econômicos e políticos possibilitaram esta mudança.

Do ponto de vista econômico, a concentração de renda oriunda do modelo de desenvolvimento anterior e as alterações subsequentes na demanda interna foram fundamentais para as transformações implantadas. Como afirma Mendonça (1986), o fornecimento a baixo preço dos insumos produzidos pelas empresas estatais, a produção para um mercado nacional praticamente cativo e a compressão salarial garantiram um expressivo crescimento do diferencial entre a produtividade e os salários (aumento da extração do mais valor).

O equilíbrio de forças empreendido pelo projeto varguista garantira também uma política tributária ortodoxa que favorecia a concentração de capitais, beneficiando a burguesia industrial que se firmava como parceiro do poder. Ao mesmo tempo, as transformações da demanda interna também contribuíam. A concentração populacional crescente nos centros urbanos, apesar dos níveis salarias serem baixos, aumentavam sobremaneira a massa consumidora de bens duráveis.

A conjuntura internacional também foi preponderante. Segundo Mendonça (1986), com o andamento e conclusões dos planos de reconstrução do pós-guerra, os centros capitalistas passaram a olhar novamente para a periferia do mundo, buscando oportunidades para a exportação de seus capitais acumulados. A questão passa neste ponto pela reformulação que ocorrera na própria dinâmica capitalista mundial após a grande crise iniciada ainda na década de 1920. Este ponto será retomado mais adiante, mas cabe notar agora que o capital acumulado no centro capitalista necessitava ser escoado.

A partir daí já se pode perceber as transformações relativas às fontes de investimento empregadas nas diretrizes capitalistas da vez. Quanto a isto, uma breve análise sobre o Programa de Metas instituído pelo governo Kubitschek, concebido para o período de 1956 a 1960, parece ser fundamental. De acordo com Rezende (2009), diferente das experiências de planejamento anteriores, as trinta metas que faziam parte do programa não estavam pautadas apenas em ações do Estado, mas sim em parceiras, concessões e financiamentos para a iniciativa privada. Segundo o autor, cerca de 55% das atribuições do programa estavam nas mãos de sociedades de economia mista (administração indireta) ou diretamente sob responsabilidade de empresas privadas, as quais poderiam solicitar subsídios ao BNDE e ao Banco do Brasil.

Além do estímulo à iniciativa privada, o Programa de Metas se pautou em grande medida na abertura ao capital estrangeiro. Como destacam diversos autores em suas análises (Mendonça, 1986; Cardoso, 1977; Marini, 2013; Gorender, 2014), em 1956, logo no início do governo JK, foi implementada uma iniciativa estatal importante, que tinha o intuito de alterar claramente o equilíbrio de forças entre os grupos dominantes. A Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC),

sem alterar o sistema de câmbio vigente, facilitava excepcionalmente a entrada de capitais estrangeiros, na medida em que permitia que as máquinas e os equipamentos introduzidos no país por empresas estrangeiras não tivessem

cobertura cambial, exigência que era mantida para as empresas nacionais (MARINI, 2013, p.80).

O objetivo era, portanto, atrair e viabilizar a entrada de capitais estrangeiros no mercado brasileiro. E, de fato, a partir da influência dessa norma e de outras leis e medidas complementares, o país realmente se abriu ao capital estrangeiro de uma forma que nunca havia feito antes. Somente “entre os anos de 1955 e 1961, o montante total de capitais estrangeiros que entraram no país sob a forma de financiamentos ou investimento direto foi de cerca de 2,3 bilhões de dólares” (MARINI, 2013, p.81).

Mendonça (1986) ressalta ainda que, no que diz respeito ao recolhimento de recursos internos, o governo, como de costume, recorreu a medidas cambiais ou fiscais conservadoras, preservando as classes proprietárias e seus volumosos lucros. A inflação, elevada por meio da emissão desenfreada de papel moeda, foi o recurso escolhido para obter as reservas que necessitava o Estado, enquanto banqueiro e investidor. Obviamente, os impactos negativos recaiam mais uma vez sobre a classe trabalhadora.

Neste processo de mudança de rumos da industrialização brasileira, logrou-se um crescimento impressionante da estrutura industrial, com especial destaque para os setores automobilístico, da construção naval e da mecânica pesada, em sua maioria, sob o controle de capitais internacionais (Mendonça, 1986). O avanço técnico da grande indústria de siderurgia também propiciava novos padrões em produções baseadas em aço, como apontou Elina Pessanha (2014). É neste momento que o setor naval passa a se desenvolver de forma notável.

Segundo um balanço histórico realizado pelo próprio Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (SINAVAL), o Estado articulou uma série de benefícios para as empresas do setor. Destacam-se: a Lei do Fundo de Marinha Mercante (FMM), que funciona como fundo de recursos para estas empresas; a criação do Grupo Executivo da Indústria de Construção Naval (Geicon), para traçar estratégias específicas de alavancagem do setor naval; e a criação da Comissão de Marinha Mercante (CMM), que se transformaria na Superintendência Nacional de Marinha Mercante (Sunamam) em 1969 (SINAVAL, s/d).

Ocorre que o denominado “tripé econômico” estrutural deste modelo de acumulação apresentava um desequilíbrio fundamental. Enquanto o capital privado nacional ficava responsável predominantemente pelo setor de produção de bens de

consumo e o capital estatal respondia pelo setor de bens de produção, o capital estrangeiro tinha portas abertas para se consolidar no setor de bens de consumo duráveis, área mais lucrativa da indústria.

Como afirma Theotônio dos Santos (2000):

Na prática, o capital internacional poderia trazer do exterior maquinaria, um sistema de produção, uma tecnologia que o capital nacional não tinha. Mas raramente se dispunha a trazer os recursos para seu funcionamento na economia local. Pelo contrário, ele buscava apoiar-se na poupança interna dos países onde investia com o objetivo de financiar sua instalação. Ele necessitava, por exemplo, de uma ampla infraestrutura energética, rodoviária, de comunicações etc., que caberia aos países hospedeiros viabilizar. (DOS SANTOS, 2000, p. 86)

O desequilíbrio deste pretenso tripé estava no claro privilégio ao capital estrangeiro. No entanto, de acordo com Mendonça (1986), é necessário reparar que, ao contrário do que possa parecer, esta profunda tendência de internacionalização da economia brasileira não feriu de imediato os interesses do capital privado nacional. Pelo contrário, o desenvolvimento do setor de produção de bens duráveis (capital estrangeiro) levou a reboque, pelo menos por um tempo, os setores de bens de produção e de bens de consumo (capitais estatal e privado nacional, respectivamente). Mais uma vez as contradições inerentes ao projeto capitalista brasileiro se sustentavam sobre uma corda bamba.

No campo político-ideológico, o que permitiu que este novo modelo de desenvolvimento pudesse ser lançado sem afetar de imediato o pacto de dominação via consenso (Gorender, 2014), foi o que Mendonça (1986) chamou de “fetichização” do Estado promovida pelo próprio populismo, tornando maleáveis os níveis de tolerância dos trabalhadores. Neste contexto, o crescimento industrial acelerado, apesar de se valer fundamentalmente da desvalorização do trabalho perante o capital, possibilitava, ao menos imediatamente, um aumento na massa total de empregos, o que tinha o potencial de parecer compensar minimamente a desvalorização dos salários.

Como demonstram as entrevistas, o SON-RJ exerceu influência importante no apoio ao governo Kubitscheck. O senhor Jayme destacou, por exemplo, que os operários navais chegaram a organizar um grande ato em apoio ao presidente, quando este esteve na Refinaria Duque de Caxias (REDUC). Impossibilitados de entrar no local, os trabalhadores alugaram um navio e chegaram à refinaria pela Baía de Guanabara e, mesmo do alto mar, exibiram faixas e cartazes em apoio ao teor nacionalista enfatizado por JK (NAVAS, 2015, e. i. nº 1).

Contudo, além das aparentes vantagens imediatas, algo mais contribuía para que os trabalhadores adotassem tal postura. Há que se lembrar daquilo que Mendonça (1986) classificou como o mais relevante elemento utilizado para a neutralização das tensões político-sociais e para o adiamento de uma crise que estava eminente: a larga articulação da ideologia nacional-desenvolvimentista. Apesar das mudanças claramente notadas a partir de 1955 no projeto de acumulação brasileiro, os discursos que sustentavam tanto o projeto varguista quanto o juscelinista, estavam centrados em uma base nacionalista comum.

Segundo Mendonça (1986), o elemento nacional compunha a matriz ideológica que dominava o país e os discursos políticos da época. Ocorre que esta base nacionalista era multifacetada e se desdobrava em diferentes estratégias de execução. Se por um lado havia um tipo de nacionalismo radical, defendido abertamente pelo PCB e por outros setores de esquerda, que rejeitava a utilização de capital estrangeiro no processo de industrialização interna; por outro, havia o que a autora chamou de nacionalismo neoliberal, ou seja, totalmente a favor da entrada de capitais estrangeiros na economia nacional sem a menor regulação, projeto notadamente defendido pela União Democrática Nacional (UDN).

A chegada de Kubitscheck ao poder em 1956 significou, na verdade, a vitória de uma corrente pretensamente intermediária e conciliatória, a nacional- desenvolvimentista. Tratava-se de um discurso que defendia a necessidade do capital estrangeiro para o desenvolvimento nacional, mas se propunha a submetê-lo a uma espécie de controle estatal. Assim, permitia uma manobra conciliatória ampla no meio social, arrebanhado apoio desde a burguesia industrial até a classe trabalhadora, que acabavam atraídos pelas possibilidades imediatistas de melhoria de vida a partir dos investimentos reais.

Baseado nas considerações de Theotônio dos Santos (2000), pode-se dizer que, apesar das inspirações teóricas que influenciaram os primeiros passos da Teoria da Dependência (como se verá no próximo capítulo), a maior parte dos estudos realizados no âmbito da CEPAL fortaleceram o discurso nacional-desenvolvimentista. A comissão funcionou como núcleo de pensamento que tentava orientar o investimento internacional no sentido da industrialização da região latino-americana como projeto para superação das condições de subdesenvolvimento. De forma conceitual e prática, a CEPAL buscava

colocar “o capital internacional como elemento de apoio essencial ao desenvolvimento econômico e industrial de nossos países. O capital internacional aparecia como um complemento à poupança interna necessária à industrialização” (DOS SANTOS, 2000, p. 85).

No entanto, como demonstra Mendonça (1986), a prática desta corrente ideológica, materializada no governo de JK, mostrou-se mais apoiada no desenvolvimentismo do que no nacionalismo. E a aliança dessa articulação ideológica à intensa industrialização na década de 1950 permitiu o encobrimento de uma condição central do tipo de desenvolvimento capitalista brasileiro: a dependência ao capital e às tecnologias estrangeiras somente aumentavam. "Afinal, nada mais ideológico do que um discurso nacionalista em meio à plena abertura da economia ao capital estrangeiro" (MENDONÇA,1986, p. 68).

Em resumo, esta complexa junção de fatores – que, como ficará claro mais adiante, vai desde a reestruturação produtiva do sistema capitalista mundial até o acirramento das lutas de classes e as conformações político-econômico-ideológicas no bloco dominante interno – gerou grandes implicações para a realidade política, social e econômica do país. Apesar dos consideráveis resultados econômicos e de infraestrutura logrados pelo Programa de Metas, a direta importância adquirida pelo capital estrangeiro na economia e na política alterou o projeto de acumulação capitalista brasileiro, afetando definitivamente as relações de classes no país e acirrando ainda mais as lutas entre elas (Mendonça, 1986; Dos Santos, 2000; Marini, 2013; Gorender, 2014).