• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I O Golpe de 64: Lutas de Classes e Dependência

1.2. A Condição Dependente-associada

1.2.1. Do Desenvolvimentismo à Teoria da Dependência

A conjuntura mundial no período entre as grandes guerras, em especial logo após 1945, ficou marcada por mudanças importantes na correlação de forças geopolíticas e econômicas. No campo geopolítico, a União Soviética saiu da guerra ocupando um vasto território e com um poderio militar impressionante. E apesar de ter consolidado o bloco socialista por meio de alianças firmadas de maneira improvisada e sem sustentação social suficientemente forte, como afirma Theotônio dos Santos (2000), o fato é que a URSS liderava o polo de contestação ao sistema capitalista. Por outro lado, a guerra fria era

implantada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, sobretudo pelo primeiro, que buscava consolidar sua hegemonia política, econômica e cultural sobre o ocidente e enfraquecer os Estados socialistas.

Soma-se a este contexto a crise do colonialismo que começara antes da Primeira Guerra Mundial e se acentuava com o término da Segunda. Foi nesse cenário de reconfiguração dos ambientes político e socioeconômico, assim como dos atores mundiais, que emergiram diversos Estados nacionais soberanos. Foi o caso das declarações de independência de nações com relevância estratégica do ponto de vista geopolítico, como a Síria, a Turquia, a Pérsia (Irã) e o Egito (Dos Santos, 2000). A China e a Índia também se constituíram como nações independentes em 1945 e 1947, respectivamente, depois de muitos anos de domínios coloniais ou semicoloniais. Os movimentos de libertação de cunho nacionalistas se espalharam pelo mundo colonial, incentivando ações na África, na Ásia e no Oriente Médio.

Apesar de já se configurar como uma zona de relativa independência política desde o século XIX, os Estados latino-americanos também se veem influenciados pela brecha no cenário mundial. A maior influência na região era a intenção de independência econômica perante as potências imperialistas, o que Miriam Limoeiro Cardoso (1977), em seu estudo sobre a ideologia do desenvolvimento chama de “libertação econômica”. As potências capitalistas ainda mantinham a região sob ingerências diretas – Inglaterra, até a década de 1920, e Estados Unidos, sobretudo, a partir do fim da Segunda Guerra.

No campo econômico, deve-se notar que o capitalismo acabara de passar por uma grave crise, que estourou no que ficou conhecido como a “Grande Depressão”. Partindo das análises de Eric Hobsbawn, Cláudio Gurgel (2003) resume três saídas que se apresentaram de forma concreta para a crise: o projeto anti-capitalista, representado pela Nova Política Econômica (NEP) e pelo papel centralizador do Estado soviético; o projeto capitalista de corte fascista, marcado pelo controle econômico exercido pelo Estado em aliança com o grande capital industrial, representado sobretudo pela Alemanha e pela Itália; e o projeto capitalista que pode ser genericamente denominado de keynesiano-fordista.

Neste ambiente, foi a terceira opção que saiu vencedora no mundo capitalista. Pode-se dizer de forma profundamente resumida, mas que atende aos objetivos da presente argumentação, que esta saída passava por duas grandes reformas, levadas a cabo pelos

países capitalistas centrais. Enquanto uma estava centrada no âmbito do Estado e suas atribuições econômicas e de controle da classe trabalhadora, a outra reforma se referia ao sistema produtivo. Era o início do ciclo de expansão capitalista chamada por alguns analistas de “A Era de Ouro” ou os “30 anos dourados”.

Pode-se dizer que foi na reestruturação em questão que certos imperativos clássicos da economia política perderam seu caráter de intocabilidade, como a Lei de Say (a oferta cria sua própria demanda) e a “mão invisível do mercado”, formulada por Smith. Negando o que os velhos axiomas liberais apregoavam, parte fundamental da saída para crise passou pelo fortalecimento do Estado e de suas funções de intervenção e regulação econômica. O Estado passa a ter forte presença no mercado, “regulando o emprego e o consumo, constituindo-se em grande investidor, comprador e empregador, papel reforçado pela ação social quando se fazia presente o ideário socialdemocrata” (GURGEL, 2003, p. 100).

No que se refere à reestruturação produtiva, muito mais do que as novidades no campo da oferta (produção em massa), as alterações trazidas pelo modelo fordista de produção miravam a demanda. O grande objetivo era perseguir uma constante expansão dos mercados, garantindo o consumo de massa necessário para dar vazão ao aumento da produção. É isso o que explica a intensificação das pressões vindas do centro capitalista – Estados Unidos, Mercado Comum Europeu e Japão – pela abertura definitiva dos mercados do Terceiro Mundo para seus capitais.

De forma sintética, havia a clareza da impossibilidade da produção criar sua própria demanda. Era necessário organizar as condições que garantissem o escoamento da produção em massa. Sobre o fordismo, o pensador sardo Antonio Gramsci é didático:

[...] Pode-se dizer, de modo genérico, que o americanismo e o fordismo resultam da necessidade imanente de chegar à organização de uma economia programática e que os diversos problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que marcam precisamente a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática [...] (GRAMSCI, 2001, p. 241).

David Harvey (1993), por sua vez, resume da seguinte maneira a saída da crise:

O Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e no processo de produção. (HARVEY, 1993, 125).

Foi nesse contexto que acabou por vigorar ao redor do mundo capitalista periférico, de forma mais ou menos intensa, o ideário de que a modernidade deveria ser

encarada necessariamente como um fenômeno universal e que estaria ligada à própria ideia de desenvolvimento capitalista, via industrialização e integração ao próspero sistema fordista do pós-guerra. Tal arcabouço teórico ficou conhecido genericamente como Teoria do Desenvolvimento, sendo definido por Theotônio dos Santos da seguinte forma:

A característica principal dessa literatura era a concepção de desenvolvimento como a adoção de normas de comportamento, atitudes e valores identificados com a racionalidade econômica moderna, caracterizada pela busca da máxima produtividade, a geração de poupança e a criação de investimentos que levassem à acumulação permanente da riqueza dos indivíduos e, em consequência, de cada sociedade nacional (DOS SANTOS, 2000, p. 16).

Pode-se dizer que o grande objetivo das teorias desenvolvimentistas era identificar as dificuldades concretas que impediam a implantação da modernidade em sua plenitude. Fazia parte de seus intentos a definição de ferramentas e técnicas de intervenção necessárias para a superação dos obstáculos e aproximação de cada sociedade existente daquela idealizada. O desenvolvimento passou a ser considerado como um modelo social, político e econômico, o qual apenas se constituiria se observadas as condições ideias necessárias.

Com este norte, vigora durante o pós-guerra um ideal de modernidade que poderia ser alcançado através de uma “receita”, tendo suporte de instituições internacionais estabelecidas em Bretton Woods (1945), como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Este modelo único de desenvolvimento seria o mesmo dos países centrais, cujo exemplo deveria ser seguido pelos países não-desenvolvidos. Uma espécie de fórmula para o sucesso.

Há que se observar que a teoria do desenvolvimento traz consigo uma questão central: o subdesenvolvimento. A condição de subdesenvolvimento é vista ao mesmo tempo como ausência de desenvolvimento e etapa necessária e anterior à modernização (Dos Santos, 2000). A superação desse atraso inerente à realidade de países subdesenvolvidos passaria exclusivamente pela superação de seus obstáculos internos que os impediriam de alcançar a modernidade, como as condições políticas, culturais, de educação, de infraestrutura, dentre outras. No entanto, o desenvolvimento somente seria viável a partir da adoção de certos procedimentos econômicos, políticos e sociais capazes de mobilizar recursos nacionais de formas mais racionais e coordenadas a partir de uma base ideológica.

A realidade brasileira entre as décadas de 1930 e 1960 parece confirmar esta ideia. Como se pôde perceber nas seções anteriores, os distintos projetos desenvolvimentistas colocados em prática desde a Era Vargas até o golpe militar coincidiam em um aspecto central: a industrialização seria a chave para uma espécie de “libertação econômica e política”, assim como para a prosperidade social. Independente das notadas diferenças entre os projetos em questão, como a “substituição de importações” iniciada na Era Vargas, a plena abertura aos capitais externos no período JK ou o reformismo que marcou o governo Goulart, o fato é que a condição do subdesenvolvimento nacional seria ultrapassada com um correto arranjo de forças no sentido do aprofundamento das relações capitalistas no plano interno.

No entanto, a partir da década de 1950, essa visão começa a ser questionada de forma consistente no interior do Terceiro Mundo em razão, sobretudo, da “incapacidade do capitalismo de reproduzir experiências bem-sucedidas de desenvolvimento em suas ex- colônias, que em sua maioria, iniciavam o processo de sua independência a partir da Segunda Guerra Mundial” (DOS SANTOS, 2000, p. 21). O fato é que os obstáculos ressaltados pela visão desenvolvimentista se mostravam insuperáveis dentro da realidade objetiva dos países taxados como subdesenvolvidos, situação que consolidava cada vez mais uma visão determinista da miséria, da incapacidade e da desigualdade.

Ainda de acordo com Dos Santos (2000), a tese desenvolvimentista remete a um raciocínio linear e evolutivo, nada mais sendo do que uma ideologia de dominação. Consiste em uma ideia ilusória de que um país periférico, seguindo os moldes de desenvolvimento dos países centrais, teria a oportunidade de crescer e se tornar, no futuro, um país do primeiro mundo. Ocorre que o desenvolvimento nos marcos do capitalismo é acompanhado pelo acirramento das assimetrias existentes nas estruturas internas dos países “subdesenvolvidos”, uma vez que o processo de acumulação beneficia as elites periféricas, ao mesmo tempo em que acentua o grau de desigualdades. Sobre o ideário desenvolvimentista no terceiro mundo, Harvey (1993) o classifica como um

[...] processo de modernização que prometia desenvolvimento, emancipação das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos (por exemplo, no campo da saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional. (HARVEY, 1993, p. 133)

Foi neste contexto e com base em inspirações teóricas que marcaram as discussões cepalinas (CEPAL), que surgiu em meados da década de 1960 uma linha de estudos sobre o desenvolvimento que ficou conhecida Teoria da Dependência. Neste ambiente de Guerra Fria e de grandes transformações na forma de operação capitalista e na própria divisão internacional do trabalho, a teoria da dependência emerge a partir dos questionamentos de pensadores latino-americanos que tentavam entender quais eram os limites que levavam ao subdesenvolvimento na região.