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CAPÍTULO III – Administração Política da Memória

3.2. Análises de uma Política de Memória

3.2.1. Entre Acordos e Políticas: a criação da CNV

Conforme foi rapidamente explicitado na introdução do trabalho, entende-se que as políticas de memória e esquecimento implementadas pelo Estado brasileiro nos governos civis que se alternam desde 1985 são consequências de pactos e conciliações estabelecidos com forças político-econômicas que estavam presentes antes e durante a própria ditadura empresarial-militar. Muitos desses acordos seguem valendo até os dias de hoje, auxiliando na governabilidade das coligações que assumem o poder do Estado (Coimbra, 2013).

O compromisso do Estado com forças político-econômicas conservadoras somente explicita a própria essencialidade de sua função como garantidor das condições de produção e reprodução das relações sociais dominantes. Além disso, no que diz respeito ao passado ditatorial, esta condição é decisiva para a sufocação de memórias de resistência e de luta, fortalecendo a história narrada pelos vencedores, a história “oficial” (Ferraz, 2014). Neste sentido, antes de analisar o texto final do relatório, é necessário compreender o contexto que marcou a criação da própria comissão. Para tanto, será traçado um breve antecedente histórico sobre o desenvolvimento de políticas de memória no decorrer dos distintos governos pós-85.

Talvez o principal exemplo de construção oficial de narrativa histórica seja a Lei 6.683 de agosto de 1979, a qual ficou conhecida como Lei de Anistia. O aspecto problemático e que expõe os compromissos nebulosos com as referidas forças conservadoras é o não questionamento e a não reinterpretação do texto da lei. A lei que segue em vigência nos dias de hoje foi instituída pelo próprio regime ditatorial e tem servido para anistiar não só os perseguidos pelo regime, mas também aqueles que aplicaram o terror de Estado.

Joana D’Arc Ferraz desenvolveu uma série de trabalhos sobre as memórias de luta e resistência na ditadura e o tema da anistia se faz presente em uma grande parte deles. A lei anistiou todos os que, de setembro de 1961 a agosto de 1979 – período posteriormente ampliado de 1946 até 1988 – cometeram crimes de motivação política e crimes eleitorais (Ferraz e Dantas, 2014). Também foram anistiados aqueles que tiveram seus direitos

políticos suspensos, servidores públicos, militares e dirigentes e representantes sindicais punidos com base nos atos institucionais e complementares do regime militar (Ferraz e Dantas, 2014).

No entanto, a interpretação do texto-lei dada pelo judiciário brasileiro até os dias de hoje parte da premissa de que o terrorismo de Estado deve ser tratado como crime conexo aos crimes políticos que serviram de base para as perseguições, torturas e assassinatos. Em outras palavras, foram anistiados tanto torturados, quanto torturadores. Com esta interpretação de conexidade entre os crimes, nenhum agente do Estado pode sequer ser processado, muito menos ser considerado culpado. Além disso, não foram contemplados com a anistia os condenados dos chamados crimes de sangue.

Em entrevista à revista Carta Maior, em março de 2014, o jurista Fábio Konder Comparato (2014) resumiu da seguinte forma o que pensa sobre a Lei de Anistia:

A lei de anistia de 1979 foi resultado de um pacto entre as Forças Armadas e os grupos que exerciam a soberania antes do golpe de Estado de 1964 – ou seja, os titulares do poder econômico privado e os agentes políticos conservadores – objetivando garantir a impunidade dos responsáveis pelos crimes de terrorismo de Estado durante o regime de exceção. (COMPARATO, 2014)54

O que se pretende sublinhar é que entram e saem governos desde a eleição presidencial de 1989 e a interpretação hegemônica da Lei de Anistia segue sendo a mesma da ditadura. Em 2010, a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), junto com outras entidades da sociedade civil e juristas, entrou com solicitação pela revisão da lei no Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, o STF decidiu pela não revisão, mantendo a interpretação de que os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura podem ser considerados como conexos às infrações políticas.

No entanto, não é isso o que pensam diversos juristas reconhecidos nacional e internacionalmente, como Hélio Bicudo (2005) e o já mencionado Comparato (2014). Para justificar sua posição, Bicudo (2005) explica o que são os crimes conexos: são aqueles que “[…] contemplam ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultado” (Bicudo, 2005, p.12). Continuando, o jurista afirma que “só pode haver conexidade se os vários autores buscam a mesma finalidade na prática do ato delituoso” (Bicudo, 2005, p.12). O

54 Entrevista concedida a Fábio de Sá e Silva, publicada em edição eletrônica da revista Carta Maior. A

entrevista foi publicada em 31 de março de 2014, com o título “Manutenção da lei da anistia gerará sanções ao Brasil”. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/Fabio-Konder- Comparato-Manutencao-da-lei-da-anistia-gerara-sancoes-ao-Brasil/40/30616>. Acessado em: 15/09/2015.

que não é o caso quando se compara terror do Estado como supostos “crimes” de militantes, uma vez que não há ligação entre os mesmos para uma mesma finalidade.

Quando se pensa em uma Lei de Anistia efetiva, quando os movimentos sociais pedem – desde o fim da década de 1970 – uma anistia ampla, geral e irrestrita, pensa-se em uma lei que promova uma reparação histórica. Isto é, uma lei que descriminalize todos os opositores do regime que foram considerados como criminosos à época. Uma lei que permita a sanção e a punição dos verdadeiros criminosos, aqueles que atentaram contra a vida e dignidade humana. Ao contrário desta concepção, a Lei de Anistia que ainda está em vigor no Brasil mantém a impossibilidade de processar os agentes que praticaram o terrorismo de Estado. Segue reforçando o discurso hegemônico e conciliatório de que os dois lados estavam errados, reproduzindo a teoria dos dois demônios tão utilizada na Argentina. Segue produzindo a ideia de que as ações do Estado ditatorial eram respostas equivalentes aos “crimes” cometidos por opositores do regime. Segue contando a história segundo os interesses dos vencedores55.

Outro exemplo de política de memória é a conduzida pela Lei 9.140 de 1995. Conforme resumiu Coimbra (2013), esta lei criou uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, concedeu atestados de óbito para os desaparecidos e instituiu uma reparação financeira para os familiares. No que se refere à reparação, esta lei somente se preocupou com a parte econômica. Não se investigou e publicitou os atos de terror, nem significou um reconhecimento por parte do Estado de seus crimes. Assim, de acordo com a análise da autora, a reparação econômica, que deveria ser apenas o fim de um processo de reparações, significou um autêntico “cala boca” (Coimbra, 2013). Tornou-se um mecanismo de esquecimento e silêncio.

Além disso, a lei somente declarou os desaparecidos como mortos. Na realidade, declarou “morte presumida”, “sem, no entanto, esclarecer onde, quando e como ocorreram tais crimes e quem os cometeu” (COIMBRA, 2013, p. 37). Outra perversidade recai sobre o ônus da prova e da não abertura dos arquivos da ditadura. A lei prevê que

55 As questões que envolvem o tema da anistia são diversas e amplas, podendo ser abordada em uma extensa

reflexão que não caberia nos propósitos deste trabalho. Para uma discussão profunda e crítica sobre as lutas pela anistia e sobre a lei promulgada em 1979, ver a tese de doutorado da intelectual e incansável lutadora Heloísa Amélia Greco, intitulada “Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia” (2003). GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia. Tese de Doutorado – UFMG. 559 p. Defendida em agosto de 2003.

cabe aos interessados apresentarem as provas de que houve prisão, tortura e/ou morte. As provas de que os mortos e desaparecidos estiveram sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por seus agentes devem ser apresentadas pelos próprios atingidos e por seus familiares. Ao mesmo tempo, os principais arquivos da ditadura continuaram trancados a sete chaves.

A problemática que envolve a abertura dos arquivos possui ainda outras implicações com a memória do período, conforme observa Ferraz (2007a) e Ferraz e Dantas (2014). Um dos últimos atos do governo Fernando Henrique Cardoso estabeleceu novas classificações para os arquivos da ditadura empresarial-militar, através do Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002. Os documentos reservados, que tinham prazo de cinco anos para se tornarem públicos passaram para dez anos; os confidenciais subiram de dez para vinte anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e os ultra-secretos podiam permanecer sigilosos para sempre. Para que não se pense que se tratam de medidas pontuais e de governos específicos, vale destacar que este decreto somente passou a vigorar 45 dias após sua publicação, ou seja, já no governo Lula.

Entre 2002 e 2015, outros instrumentos legislativos afetaram o tema dos arquivos e, consequentemente, das memórias da ditadura, como a Lei 11.111, de maio de 2005, e a Lei 12.527, de novembro de 2011. Entretanto, mais de meio século após o golpe de Estado, os principais arquivos da ditadura empresarial-militar permanecem fechados (Ferraz e Dantas, 2014). Dentre eles, estão os arquivos do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e da Polícia Militar Investigativa (P2). Tais documentos estão disponíveis apenas para o atingido ou o familiar devidamente autorizado, com exceção da P2, que nunca foi aberto a qualquer consulta. E mesmo assim, somente são liberadas as partes que se referem especificamente ao interessado. Isto é, os arquivos não estão abertos em sua totalidade nem para este grupo. Em suma, a sociedade segue sem acesso aos arquivos da ditadura.

Esta pequena amostra de políticas “públicas” de memória e esquecimento fornece uma noção sobre os posicionamentos que o Estado brasileiro vem adotando nos últimos 30 anos e sobre o ambiente no qual a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída. É neste contexto que se deve entender a criação da comissão: enquanto uma política de memória que é produto de uma complexa rede de acordos e compromissos

históricos. Não é por acaso que para Cecília Coimbra, “a Comissão Nacional da Verdade foi votada como aquilo que é o possível hoje” (COIMBRA, 2012, p. 41).

Para se entender melhor esta afirmação, há que se voltar um pouco no tempo. Em 1995, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, o CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo entraram com uma ação contra o Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA). Tratava-se de uma denúncia relativa ao massacre de Gomes Lund e de mais de 70 pessoas entre 1972 e 1974, no que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia56.

Mais de uma década depois, em outubro de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu um relatório de mérito sobre o caso, o qual já fazia recomendações ao Estado brasileiro e encaminhava a questão para ser julgada definitivamente pela Corte. A sentença final foi estabelecida somente no ano de 2010 e condenou o Estado brasileiro pelo assassinato e desaparecimento dos corpos destes militantes e camponeses57. A sentença ainda se expandiu para mais de 500 mortos e desaparecidos políticos durante o regime empresarial-militar.

Dentre outros pontos, a Corte Interamericana declarou o Estado brasileiro responsável pelas graves violações à dignidade humana daquele período e se posicionou contra a interpretação hegemônica em relação à Lei de Anistia. Determinou, desta forma, uma série de medidas de reparação que o Estado deveria tomar. O resumo de Ferraz e Dantas (2014) sobre a sentença é valioso para se compreender a sua amplitude.

A sentença da Corte determinou que as vítimas desse caso foram desaparecidas pelo Estado, que o Brasil violou o direito à Justiça, no que se refere à obrigação internacional de investigar, processar, sancionar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram da Guerrilha do Araguaia. A sentença também afirmou que a interpretação prevalecente da Lei de Anistia permitiu a total impunidade desses crimes por mais de 30 anos (...) no que se refere à negativa do Estado, por

56 A Guerrilha do Araguaia foi um movimento revolucionário e de resistência ao regime militar ocorrido em

regiões banhadas pelo rio Araguaia e organizado por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) entre os anos de 1966 e 1974.

57 Coincidência ou não, o fato é que o primeiro planejamento estruturado de políticas públicas com foco

específico no tema dos direitos humanos da história do país é de 1996, um ano depois da ação impetrada na OEA. Em 1996 foi lançado o I Programa Nacional de Direitos Humanos (I-PNDH). O II-PNDH foi lançado no ano de 2002 e o III, como se falará com detalhes mais a frente, terá duas versão, a primeira lançada em 2009, um ano depois do primeiro parecer emitido pela CIDH, o qual já indicava a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação de direitos humanos universais no caso Araguaia.

mais de três décadas, de garantir o direito à verdade aos familiares dos desaparecidos, a Corte Interamericana determinou que, em virtude do sofrimento causado aos mesmos, o Estado brasileiro é responsável por sua tortura psicológica e, entre outras coisas, determinou como medidas de reparação: a obrigação de investigar os fatos; a obrigação de realizar um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade; o desenvolvimento de iniciativas de busca e a continuidade na localização dos restos mortais dos desaparecidos; a sistematização e a publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia e as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar no Brasil. (FERRAZ e DANTAS, 2014, p. 133-134)

Assim, a criação da CNV foi uma tentativa de resposta do governo brasileiro às exigências emitidas na referida sentença. No entanto, é importante perceber que a proposta que deu origem à comissão foi, na verdade, uma versão piorada das orientações que já haviam sido apresentadas no bojo do III Programa Nacional de Direitos Humanos (III- PNDH), conforme afirma Coimbra (2013). Segundo a autora, esta primeira versão do plano, apresentada em dezembro de 2009, sofreu grandes pressões vindas das Forças Armadas, representadas por seus comandantes superiores e pelo ministro da Defesa, à época Nelson Jobim, que eram totalmente contrários à instalação de qualquer tipo de Comissão, por mais recuada que fosse.

Após negociações, o governo cedeu às pressões e estabeleceu mais um acordo com setores conservadores. Uma nova versão do III-PNDH foi apresentada em maio de 2010. Segundo Coimbra (2013), este programa continha também uma nova proposta de Comissão da Verdade, recuada e recheada de limitações. Nova coincidência (ou não): foi a segunda versão do III-PNDH que deu sustentação à Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, dando origem à CNV, que iniciou seus trabalhos em 2012.

Além de fornecer as diretrizes adotadas pela CNV, vale lembrar que o grupo de trabalho que construiu o projeto de lei que deu origem à Lei 12.528 também foi determinado pelo próprio III-PNDH. Esse grupo foi composto por membros da Casa Civil, do Ministério da Justiça, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e também do Ministério da Defesa. Para completar, apenas um representante da sociedade civil pôde fazer parte da criação do projeto de lei.

O resultado foi que, mesmo antes do início dos trabalhos, as críticas com relação às limitações da comissão já eram diversas. O próprio texto da Lei 12.528 já indicava problemas graves. Dentre os problemas, pode-se destacar a ausência de poder legal e jurídico dado à comissão, o que a impedia de responsabilizar oficialmente qualquer pessoa que fosse por ventura investigada e considerada envolvida com o terrorismo de

Estado. Também foi reservado o direito de tratar as investigações em caráter sigiloso. Além disso, a comissão contava apenas com 7 integrantes oficiais, não possuía orçamento próprio, tinha a limitação inicial de pouco mais de dois anos de trabalho –prazo ampliado no decorrer do trabalho – e teve seu foco desviado com a inclusão de um longo período para ser investigado. Ao invés de se dedicar exclusivamente ao período do regime empresarial-militar (1964 a 1985), teve que trabalhar com o período de 1946 a 1988.

Segundo o texto da lei, os objetivos da comissão eram:

I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º [graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946 a 1988];

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações. (Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011)

Em 10 dezembro de 2014, pouco mais de dois anos e meio após o início dos trabalhos, foi apresentado ao público o relatório final da CNV. O discurso da presidente Dilma Rousseff na cerimônia de entrega do relatório fornece uma oportunidade de análise sobre a dimensão das negociações que se colocam por trás das políticas de memória aqui referidas.

[...] Repito aqui o que disse quando do lançamento da Comissão da Verdade: nós reconquistamos a democracia a nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988 [...] (ROUSSEF, 2014, cerimônia de entrega do relatório final da CNV)58

58 O discurso da presidente Dilma Roussef está disponível na íntegra no endereço eletrônico do Palácio do

Planalto. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da- presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-entrega-do-relatorio-final-da-

Ou seja, em meio à cerimônia final de uma política de Estado que aparentemente tinha como objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011), a presidente da república fez questão de reiterar os acordos e compromissos que sustentaram o processo de transição.

Este breve resumo sobre políticas de memória diretamente relacionadas à ditadura empresarial-militar e a contextualização da criação da CNV permite especular sobre as reais intenções e produções concretas de tais políticas. Quando o Estado decide não revisar a interpretação da Lei de Anistia ou quando modifica as regras, mas não abre os arquivos da ditadura, está transparecendo determinadas opções políticas. Tais escolhas reaparecem quando este mesmo Estado estabelece um processo de “reconciliação nacional” baseado em ações aparentemente contraditórias. Em outras palavras, o Estado institui uma comissão da verdade com o objetivo de efetivar o “direito à memória e à verdade histórica”, mas, ao mesmo tempo, não altera acordos do passado, ou, nas palavras de Coimbra (2013), mantém compromissos com forças político-econômicas conservadoras, porque ainda presentes no cenário político brasileiro. Tudo isso tem um peso sobre a história e sobre as memórias. Consequentemente, como vimos no decorrer do capítulo, influi nos rumos do presente e do futuro.

Agora sim, tendo apresentado os objetivos da comissão e compreendido, mesmo que rapidamente, este contexto de implementação de políticas “públicas” em meio à acordos privados e nebulosos, podemos adentrar na análise do relatório final da CNV, em especial no eixo temático que diz respeito às violações perpetradas contra a classe trabalhadora.