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CAPÍTULO I O Golpe de 64: Lutas de Classes e Dependência

1.1. O Acirramento das Lutas de Classes

1.1.3. O Conturbado Início dos Anos 60

Entre 1961 e 1964, o Brasil enfrentaria um momento de grave agitação social e de crise política e econômica. Todas as contradições acumuladas no decorrer do desenvolvimento capitalista desde a década de 1930 explodiram nesse período, tanto nas disputas eminentemente institucionais (no parlamento, nas instâncias militares, no meio religioso, etc.), quanto nas ruas. Era o acirramento das lutas de classes que, nesse momento de crise, expunha de forma mais clara seus atores e seus polos antagonistas.

No campo político-institucional houve sucessivas tentativas de se estabelecer governos pautados em diferentes alianças de classes ou frações de classes. A primeira delas

se deu com Jânio Quadros, que assumiu a presidência em janeiro de 1961 e renunciou ao cargo sete meses depois.

É importante ressaltar que, no campo econômico, as condições herdadas dos governos anteriores, sobretudo do governo JK, eram realmente drásticas.

O capitalismo brasileiro alcançou um grande ascenso durante o governo Kubitschek, graças, em boa parte, a consideráveis aportes de capital estrangeiro e a maciços investimentos estatais. Segue-se, em 1961-1962, um período de descenso próprio dos sistemas capitalistas (GORENDER, 2014, p. 135).

A situação inflacionária havia alcançado níveis alarmantes, os mecanismos monetários se mostravam ineficientes e a dívida externa pesava fortemente. Todo esse processo deteriorava ainda mais as condições de vida e colaborava para o aumento das insatisfações populares e para uma crescente organização da classe trabalhadora

Para piorar, no plano econômico, o governo de Jânio Quadros foi responsável pela implementação de uma política cambial que deixou pequenas e médias empresas nacionais expostas aos interesses de grandes grupos econômicos. A liberação cambial aboliu a Instrução 113, criando assim um único mercado de importações e exportações, onde o câmbio era fixado livremente.

Segundo Marini (2013), essa política cambial tinha dois objetivos paralelos: permitir uma maior liberalização da economia, estimulando a extinção de setores considerados antieconômicos e favorecendo a concentração de capitas; e ceder às pressões estrangeiras por uma maior remuneração de seus capitais. Os capitais internacionais que ingressaram no país na década anterior, agora sem contar com a Instrução 113, passavam a exigir taxas de lucro superiores.

Theotônio (2000) e Marini (2013) compartilham da avaliação de que, neste momento, a burguesia passa a se sentir pressionada de duas formas distintas: por fatores externos, com o capital estrangeiro que exigia maior remuneração para seus investimentos, o que, consequentemente, diminuía as taxas de lucro da indústria; e por fatores internos, com o esgotamento do mercado interno. Note-se que este último somente poderia ser encarado de maneira séria tocando na questão da propriedade privada, por meio de um extenso processo de reforma agrária e de uma profunda redistribuição de renda e de riqueza.

Sendo assim, Marini (2013) afirma que, no início da década de 1960, a burguesia se encontra em um dilema que povoará os debates até o golpe militar: (a) apoiar

uma política externa independente e a reforma agrária para se afastar da dependência ao capital externo e ao mesmo tempo criar um mercado interno forte, ou (b) aceitar conscientemente as ações imperialistas de economias centrais e se associar definitivamente ao capital estrangeiro, posicionando-se como sócio minoritário na estrutura do capitalismo mundial.

É nesse contexto em que, com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, período em que o vice-presidente João Goulart se encontrava na China em compromissos oficiais, que ocorre a segunda das três tentativas de golpe de Estado mencionadas aqui. Notadamente ligado ao projeto de cunho mais nacionalista da primeira metade dos anos 50 e à lideranças sindicais, o nome de Goulart não era bem visto pela maior parte das classes dominantes brasileiras, assim como pela cúpula das Forças Armadas.

No mesmo sentido, também havia a rejeição capitalista estrangeira que influenciava a conspiração golpista. Além dos interesses econômicos diretos já citados, cabe notar que o mundo vivia o auge da bipolaridade da Guerra Fria. Tratava-se da disputa no cenário geopolítico internacional entre o imperialismo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos, e a alternativa apresentada pelo socialismo real na antiga União Soviética.

Desde as décadas de 1940 e 1950, com a Revolução Cultural Chinesa e a Revolução Cubana, respectivamente, o espectro comunista passou a pairar de maneira mais contundente também sobre os países do denominado Terceiro Mundo. O fato é que aos Estados Unidos não interessava uma nova China na América Latina, apesar de João Goulart não representar em hipótese alguma uma intenção de revolução socialista – conforme será demonstrado na próxima seção. O fato é que, conforme salienta Edmar Morel (1965), os Estados Unidos, direta e indiretamente, em grande medida através do seu embaixador no Brasil, Lincon Gordon, contribuiu para a rejeição de Goulart.

Por outro lado, uma ampla frente se estruturou em favor da legalidade e contra o golpe que estava em curso. Uma grande resistência às conspirações golpistas fora organizada desde o Palácio Piratini no Rio Grande do Sul, chegando até a adesão do III Exército à rede da legalidade comandada por Leonel Brizola, da qual participaram sindicatos, organizações políticas de esquerda, movimentos sociais diversos, etc.

O SON-RJ esteve presente nesta luta pela manutenção da democracia. Baseando-se em documentos da época e em entrevistas, Pessanha (2014), grande estudiosa

da história dos operários navais do Rio de Janeiro, corrobora a participação ativa destes trabalhadores no movimento pela legalidade, destacando o que ficou conhecido como greve de “15 dias pela legalidade”. Conforme declarou o senhor Ivan,

Os operários navais participaram disso. Foram criados os grupos dos 11 por todo o país. [...] Eles não queriam deixar João Goulart tomar posse e depois defendiam o parlamentarismo, que acabou derrubado por este mesmo movimento. Naquela época quase que estourou uma guerra civil aqui [...] (DUARTE, 2014, e. c. nº1)

Em resumo, parte da sociedade civil, em grande medida da classe trabalhadora, se organizou no sentido de barrar o golpe que estava em curso. Soma-se a isto que, neste contexto, considerando o dilema que se colocava para o desenvolvimento capitalista brasileiro, uma parte da burguesia industrial decide apoiar João Goulart em prol de um modelo econômico independente (Marini, 2013). Mesmo sabendo da aberta ligação de Jango com setores da esquerda e do movimento sindical, o fato é que essa fração da burguesia industrial contava que o presidente seria capaz de conter as futuras pressões e reivindicações de tais setores, conforme apontam as análises de diversos autores (Marini, 2013; Gorender, 2014; Toledo, 2014).

O resultado concreto é que as intenções golpistas foram mais uma vez postergadas. No entanto, a saída para o impasse colocado em agosto de 1961, isto é, para a tentativa de golpe de Estado, foi a alteração do regime presidencialista para o parlamentarista.

A partir daí, apesar do aparente esfriamento dos ânimos, o que se deu na verdade foi o aprofundamento da crise entre os anos de 62 e 64. Nas palavras de Morel (1965, p. 12), “de setembro de 1962 a abril de 1964 outra coisa não se fez no Brasil senão conspirar-se contra o presidente João Goulart”. E, de fato, tais conspirações não se restringiam às articulações internas. Ao contrário, e talvez de forma ainda mais evidente do que em outros momentos da história nacional, as conspirações golpistas possuíam uma manifesta ligação com interesses do capitalismo internacional, em especial dos Estados Unidos.