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CAPÍTULO I O Golpe de 64: Lutas de Classes e Dependência

1.2. A Condição Dependente-associada

1.2.3. Industrialização Dependente

Cabem, neste momento, algumas reflexões adicionais. Como vimos, a industrialização era colocada pelas teorias desenvolvimentistas como chave para a superação do subdesenvolvimento latino-americano. No entanto, as promessas de “libertação econômica” e de prosperidade geral não foram alcançadas na realidade objetiva. Vimos também que a teoria da dependência surgiu justamente da constatação da impossibilidade concreta de realização de tais promessas, em virtude da estrutura da própria

divisão internacional do trabalho e de condições internas específicas aos países dependentes que permitem tal conformação. Mas o que dizer do processo de industrialização ocorrido em países dependentes, como por exemplo no Brasil? Como caracterizá-la? Mais especificamente, qual foi o impacto da industrialização para as condições estruturais de dependência e de superexploração?

Para responder tais perguntas, é importante, em primeiro lugar, reforçar que somente houve espaço para o deslocamento do eixo de acumulação em países da América Latina (de exportadores de bens primários à industrialização) quando a economia capitalista mundial entrou em sua grave crise que marcou o período entre as duas grandes guerras. Será a partir desse momento que as economias exportadoras dependentes, particularmente as latino-americanas, darão início à construção de uma moderna estrutura industrial na região, o que ocorreu entre as décadas de 1920 e 1950.

Do ponto de vista do ciclo do capital nestas economias, devido à queda da oferta externa de bens manufaturados de consumo, ocorreu um deslocamento na demanda pelos mesmos (Marini, 2008). Tratava-se de uma impossibilidade concreta dos países capitalistas centrais absorverem toda a demanda por bens de consumo vindas de países dependentes, o que abria espaço para a indústria nacional se desenvolver. A apreciação superficial deste movimento sugere uma espécie de correção do ciclo do capital nas economias dependentes, isto é, parece alterar o foco exportador da América Latina para a criação de um mercado interno, corrigindo a separação entre produção e circulação.

No entanto, segundo Marini (2008), tal interpretação – que serviu de base para uma série de correntes de pensamento marcadamente desenvolvimentistas na região, como algumas desenvolvidas no interior da CEPAL ou do ISEB – está fundada em um equívoco. O deslocamento da produção para uma demanda interna não significava um processo de criação de mercado nacional tal qual ocorrera nos países dominantes. Marini observa que

De hecho, las similitudes aparentes de la economía industrial dependiente con la economía industrial clásica encubrían profundas diferencias, que el desarrollo capitalista acentuaria en lugar de atenuar. La reorientación hacia el interior de la demanda generada por la plusvalía no acumulada implicaba ya un mecanismo específico de creación del mercado interno radicalmente distinto del que operara en la economía clásica, y que tendría graves repercusiones en la forma que asumiría la economia industrial dependiente [...] La industrialización latino- americana no crea, por tanto, como en las economías clásicas, su propia demanda, sino que nace para atender una demanda preexistente, y se estructurará en función de los requerimentos de mercado procedentes de los países avanzados.. (MARINI, 2008, p. 137-140)

Inicialmente, o processo de industrialização não contava com a participação dos trabalhadores, de forma que a débil indústria que vinha se formando o fazia em função do que Marini (2008) chamou de alta esfera de circulação, isto é, para atender a demanda das classes proprietárias locais. Antes do processo de industrialização nacional ter sido impulsionado, esta demanda por bens manufaturados de consumo era majoritariamente atendida pelo mercado externo (via importações), situação que podia se alterar conjunturalmente em ciclos de crise no capitalismo mundial. Ocorre que o período entre as décadas de 1910 e 1940 foi marcado por uma profunda crise do sistema e por duas guerras mundiais. Este momento foi decisivo para impulsionar a indústria nas economias dependentes, mas, diferente do que ocorrera nas economias capitalistas centrais, a produção interna nasceu para atender uma demanda pré-existente (das elites locais) e não por uma demanda que viria a ser desenvolvida pela própria produção de bens industrializados.

Nesta conjuntura específica, a indústria em crescimento nos países periféricos não teve razões para buscar por mercados, operando em condições dadas, onde a demanda era notadamente superior à oferta. Desta maneira, o nível de preços não precisou ser alterado, mantendo os trabalhadores fora da esfera de circulação dos bens manufaturados. Segundo Marini (2008), mesmo quando a oferta e a demanda chegam a se equilibrar, a burguesia industrial não terá que buscar mercados de imediato, podendo operar nos preços de produção e de mercado. Valendo-se do exército de reserva que crescia muito em função da crise do setor agroexportador (crise internacional, queda das exportações), a burguesia rebaixará fortemente os salários, aproveitando-se da grande representatividade que os mesmos tinham na formação dos preços.

A conclusão de Marini é esclarecedora: “dedicada a la producción de bienes que no entran, o entran muy escasamente, en la composición del consumo popular, la producción industrial latinoamericana es independiente de las condiciones de salario propias de los trabajadores” (MARINI, 2008, p. 141). Inclusive quando os mecanismos para superação do equilíbrio entre oferta e demanda se estagnam, a saída em economias dependentes não chega a ser integração dos trabalhadores ao consumo de massa. O que se observou nestas circunstâncias do desenvolvimento industrial dependente foi a tentativa pelo aumento de produtividade, esforço neutralizado pela ampliação do consumo das camadas médias. Consumo possibilitado a partir da “plusvalía no acumulada [...] en

consecuencia, de la compresión del nivel salarial de los trabajadores” (MARINI, 2008, p. 142). A industrialização significou, neste sentido, o aprofundamento da exploração da força de trabalho e não o contrário. Especificamente sobre o caso brasileiro, Marini (2013) destaca que

A aceleração da acumulação de capital que daí se deriva [do desenvolvimento capitalista dependente fundado na superexploração] implicou a crescente concentração de riqueza nas mãos dos proprietários dos meios de produção e a pauperização absoluta das grandes massas. Em relação ao funcionamento do sistema, isso se traduziu no crescimento constante da capacidade de produção frente ao enfraquecimento correlato da capacidade de consumo do povo trabalhador e, portanto, do mercado interno (MARINI, 2013, p. 164-165).

Entretanto, este processo não bastava. Para garantir a industrialização em curso, um novo perfil de importações passa a compor a balança comercial dependente. Sobe necessariamente o volume de importações de matérias primas, de produtos semiacabados e de equipamentos tecnológicos. No entanto, a burguesia industrial nascente, apesar de todos os incentivos protecionistas implementados pelo Estado, não é capaz de arcar com todo o processo. É então que entra em cena o que Marini (2008) chamou de novo anel da espiral (“el nuevo anillo de la espiral”): a importação de capitais estrangeiros.

As facilidades encontradas por economias dependentes para importar capitais têm relação direta com a nova organização do capitalismo mundial no pós-guerra, com os acordos firmados em Bretton Woods e sob hegemonia estadunidense. Recém saído da crise, havia no mundo capitalista uma abundância de capitais concentradas em multinacionais imperialistas que necessitavam ser escoadas, isto é, necessitavam de mercados. É neste sentido que a preferência de orientação destas massas de recursos para o setor industrial de economias dependentes, particularmente as sul-americanas, não deve ser visto como mera coincidência. Trata-se da busca pelas atrativas taxas de lucro oferecidas pela indústria dependente em crescimento, fundada na superexploração da força de trabalho, e da necessidade de escoar o capital fixo acumulado, isto é, a necessidade de exportar máquinas e equipamentos já obsoletos (Marini, 2008).

La industrialización latinoamericana corresponde así a uma nueva división internacional del trabajo, en cuyo marco se transfieren a los países dependientes etapas inferiores de la producción industrial (obsérvese que la siderurgia, que era un signo distintivo de la economía industrial clásica, se ha generalizado a tal punto que países como Brasil ya exportan acero), reservándose a los centros imperialistas las etapas más avanzadas (como la producción de computadoras y la industria electrónica pesada em general, la explotación de nuevas fuentes de energía, como la de origen nuclear, etc.) y el monopolio de la tecnología correspondiente. (MARINI, 2008, p. 145)

Percebe-se, então, que o fenômeno de industrialização ocorrido nos países dependentes latino-americanos fazia parte de um reordenamento do mercado capitalista mundial, de acordo com a reestruturação da divisão internacional do trabalho vivida na primeira metade do século XX. Como diz Marini (2008), o progresso técnico-produtivo observado nestes países está mais relacionado com a dinâmica concreta da acumulação de capital em escala mundial do que com suas preferências, e se dá nos marcos da dependência. Isso significa reiterar a impossibilidade estrutural de orientação da produção industrial para o consumo de massa (popular), devendo seguir se desenvolvendo em função da alta esfera de circulação e das camadas médias.

Ora, o resultado deste processo é que os trabalhadores seguem majoritariamente excluídos do momento da realização do capital, o que permite que o progresso técnico eleve o ritmo do trabalhador, mas siga extraindo parte do valor necessário para a reprodução de sua força de trabalho. Em outras palavras, eleva-se a produtividade, mas se mantém a tendência de remuneração do trabalho abaixo de seu valor real – eleva-se a massa de valor e não a taxa de mais-valia (Marini, 2008). E é nesse sentido que a teoria marxista da dependência afirma que o desenvolvimento industrial e tecnológico em países como o Brasil se deram a partir do aprofundamento da superexploração da força de trabalho.

El abismo existente allí entre el nivel de vida de los trabajadores y el de los sectores que alimentan la esfera alta de la circulación hace inevitable que produtos como automóviles, aparatos electrodomésticos, etc., se destinen necesariamente a esta última. En esta medida, y toda vez que no representan bienes que intervienen en el consumo de los trabajadores, el aumento de productividad inducido por la técnica em esas ramas de producción no ha podido traducirse en mayores ganancias mediante la elevación de la cuota de plusvalía, sino tan sólo mediante el aumento de la masa de valor realizado. La difusión del progreso técnico en la economía dependiente marchará, pues, de la mano con una mayor explotación del trabajador, precisamente porque la acumulación sigue dependiendo em lo fundamental más del aumento de la masa de valor —y por ende de plusvalía— que de la cuota de plusvalía. (MARINI, 2008, p. 146-147)

Em resumo, o processo de industrialização observado em economias dependentes não pode ser analisado como se tivesse partido do nada. A industrialização dependente partiu da forma específica de acumulação e circulação assumida por um tipo de produção capitalista essencialmente exportadora e que respondia às necessidades dos centros dominantes e da nova hierarquia do mercado mundial, baseada na estruturação da divisão internacional do trabalho do pós-guerra (pós-crise). É nestes termos, portanto, que se pode afirmar que a notável industrialização observada no Brasil entre as décadas de 1920 e 1960 não apenas não alterou as condições do subdesenvolvimento, como às aprofundou.

A reprodução da situação de dependência a partir do processo de industrialização modificou sua forma, mas não sua substância. Suas bases continuaram fundadas na superexploração da força de trabalho.

Este estudo realizado sobre a situação de dependência e de suas fundações na superexploração da força de trabalho focou no processo estrutural que permitiu a passagem do Brasil de sua condição produtiva essencialmente exportadora para a industrialização, sem alterar o cenário de superexploração. As discussões sobre o tema não foram estendidas até os dias de hoje, pois fugiriam muito do objetivo aqui proposto de explicitar as condições sistêmicas estruturais que que foram fundamentais para as movimentações golpistas de 64. É preciso sublinhar, contudo, que a dependência-associada se manteve e segue vigorando, independente de mudanças de cunho político e das conjunturas locais e mundiais do sistema capitalista, assim como das alterações nos movimentos de enfretamento ao mesmo. É evidente que as formas de operação dos mecanismos de dependência e de superexploração em locais periféricos (e nos países centrais) se alteraram, implicando na necessidade de novos estudos que dessem conta de entender o cenário atual. No entanto, apesar das modificações, o essencial (a superexploração da força de trabalho) se mantém substancialmente intocado, a despeito da nova morfologia social, econômica e política que marca a etapa de exploração neoliberal23.

23 Para se inteirar sobre o debate atual acerca da dependência e da superexploração, ver a tese de

doutoramento de Carlos Eduardo Martins, “Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina” (2003). Além de Martins, há muitos outros autores que se dedicam ao tema nos dias de hoje, como Marcelo Carcanholo, Marisa Amaral, Monica Bruckmann e o próprio Teothônio dos Santos. Ver mais em Dos Santos (2008), Amaral e Carcanholo (2009), Bruckmann (2011), Carcanholo (2013), etc.