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CAPÍTULO I O Golpe de 64: Lutas de Classes e Dependência

1.2. A Condição Dependente-associada

1.2.2. Dependência e Superexploração da Força de Trabalho

Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, André Gunder Frank, dentre outros autores, participaram da construção da corrente de pensamento que ficou conhecida como teoria marxista da dependência. Partindo do legado teórico e metodológico marxiano e marxista, assim como dos estudos sobre o imperialismo21, esses autores buscaram compreender a forma particular adotada pelo capitalismo dependente, em especial o latino-americano.

Para isso, estes autores partiram do pressuposto de que a especificidade do desenvolvimento capitalista dependente está no fato de que um todo-complexo (como o sistema capitalista de produção) é composto por partes distintas que se combinam entre si. Em outras palavras, assim como ocorre em qualquer economia capitalista, as economias dependentes se caracterizam essencialmente como produtoras e acumuladoras de capital que se nutre a partir da exploração do trabalho (trabalho alienado). Contudo, tais economias não reproduzem o processo idêntico ao encontrado nos países centrais, mas o fazem a partir

21 O conceito clássico de imperialismo foi trabalhado, sob distintas óticas, por diversos autores, como John

Hobson, Rudolf Hilferding, Nikolai Bukharin, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin. Para nossos fins, não é necessário definir com precisão o seu significado. Cabe apenas assinalar que o interesse pelo tema tem relação com as transformações ocorridas no sistema capitalista entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. O período ficou marcado pela passagem da etapa do capitalismo concorrencial para sua era monopolista, como consequência das crises cíclicas, sobretudo a partir dos anos de 1870. Data desse momento as junções de grandes capitais industriais e bancários, formando o que ficou conhecido como capital financeiro. Este processo provocou alterações quantitativas e qualitativas tanto na estrutura produtiva mundial, quanto nas interações de cunho político. As relações entre Estados e conglomerados financeiros de proporções nunca antes vistas alteravam as relações de dominação coloniais e tornavam ainda mais complexo o equilíbrio entre as nações mais poderosas. As Guerras Mundiais, sobretudo a primeira, tem relação direta com o aprofundamento dessas contradições. Como afirmou Lenin (2011), o capitalismo mundial se transformava e entrava em uma etapa superior, o imperialismo.

de um ciclo específico, um ciclo de acumulação que tem como base a superexploração da força de trabalho.

É nos marcos da necessidade contínua de maior exploração do trabalhador brasileiro, ou seja, maior extração de mais-valia, que entendemos que a questão da dependência se coloca como ponto central no debate sobre o golpe e a ditadura. Por esta razão, realizaremos nesta seção uma discussão teórica sobre as estruturas e bases da dependência, a partir da perspectiva marxista. Cabe ressaltar, ainda, que não há a necessidade de demonstrar aqui a teoria em todos os seus níveis de detalhes, mas apenas apresentar suas linhas gerais de funcionamento, o que nos permitirá compreender o que é e como opera a superexploração da força de trabalho na dinâmica capitalista brasileira22.

De acordo com os estudos de Marini, mais particularmente sua obra “Dialética da Dependência” (2008), a inserção definitiva dos países latino-americanos na divisão internacional do trabalho ocorre no decorrer do século XIX, com a criação da grande indústria nos países capitalistas centrais. Com base nas estruturas de comércio constituídas ainda no período colonial, é no século XIX que países sul-americanos que recém conquistaram a independência política formal conformarão suas produções ao redor dos interesses do centro capitalista, sobretudo da Inglaterra. Trata-se do direcionamento da produção da região para a exportação de bens primários, em especial alimentos e matérias primas, em troca de bens manufaturados e dívidas (quando a balança comercial permitia).

André Gunder Frank (1967), por exemplo, chega a afirmar que o caráter capitalista das economias latino americanas pode ser notado desde o período colonial. Sua afirmação tem como base justamente a forma como opera o regime de produção nas colônias latino-americanas e como o mesmo se insere na estrutura econômica mundial. Theotônio dos Santos (2008), por sua vez, caracteriza os regimes de produção das colônias

22 É importante sublinhar também que a Teoria da Dependência não se resume apenas aos escritos aqui

investigados. Uma série de estudiosos se dedicaram à categorização dos autores dependentistas de acordo com suas bases teórico-metodológicas. O próprio André Gunder Frank (apud Dos Santos, 2000) realizou esta tarefa, destacando diversos autores que de alguma forma se inseriram nos debates sobre a dependência, como Dos Santos, Marini, Bambirra, Frank, Quijano, Braun, Faletto, Cardoso e outros. Dentre este quadro, Frank identificou pelo menos quatro bases de debate: a estruturalista, a reformista não-marxista, a marxista e a neomarxista. Theotônio dos Santos (2000), por sua vez, fez uma revisão sobre grande parte das categorizações dos autores dependentistas, as quais chegam a incluir nomes oriundos do próprio pensamento cepalino, como Paul Baran, Celso Furtado (em suas obras maduras), e até mesmo um dos últimos trabalhos de Raúl Prebisch. Ver mais em Dos Santos (2000).

exportadoras (tipicidade que exclui, por exemplo, os Estados Unidos e a Austrália) como regime de transição de formas incompletas de feudalismo ou escravismo para o capitalismo. Para o autor, era algo semelhante ao que se passava na Europa desde os séculos XV e XVI, isto é, uma fase de transição para a generalização das relações capitalistas de produção, caracterizada como etapa mercantil-manufatureira.

Partindo da concepção de totalidade marxista, o que os autores dependentistas estão reparando é que não seria possível ou, pelo menos, seria extremamente dificultado o desenvolvimento da grande indústria capitalista nos países centrais caso não pudessem contar com as exportações das ex-colônias. E é neste sentido que se configurou o que Marini chamou de dependência: “una relación de subordinación entre naciones formalmente independientes, en cuyo marco las relaciones de producción de las naciones subordinadas son modificadas o recreadas para asegurar la reproducción ampliada de la dependência” (MARINI, 2008, p. 111).

A análise histórica, que parte do modo de produção colonial, de perfil exportador e fornecedor de alimentos e matérias primas a baixíssimo custo para a nascente industrialização europeia, demonstra ainda outro aspecto central da dependência. As condições de subdesenvolvimento que marcam as sociedades latino-americanas desde os processos de independência formal não devem ser vistas como mero atraso, tal como sugerem as teorias desenvolvimentistas. Ao contrário, o subdesenvolvimento não significa etapa anterior ao desenvolvimento ou um regime de produção pré-capitalista que ainda não chegou ao capitalismo “pleno” ou “real”. Trata-se, em verdade, de uma consequência própria da expansão do sistema do capital, uma forma particular de seu desenvolvimento, o capitalismo dependente.

Como percebe Theotônio dos Santos (2008), a dependência se apresenta na própria estrutura capitalista de divisão internacional do trabalho, que permite e favorece o desenvolvimento industrial de certos países, mas limita o mesmo processo em outros, os quais estão submetidos ao condicionamento de suas formas internas de crescimento. Por outro lado e ao mesmo tempo, se a dependência condiciona a estrutura interna – ciclo de acumulação interno –, esta última também interfere na dependência de acordo com suas possibilidades concretas estruturais.

É nesta base de raciocínio que o autor percebe a impossibilidade da dependência ser entendida como uma dominação puramente externa. Neste sentido, é necessária uma condição de compromisso entre as classes dominantes nacionais e as classes dominantes em nível mundial (Dos Santos, 2008). Em outras palavras, para além dos conflitos que marcam as relações entre as variadas frações das burguesias que operam interna e externamente, o que fica, fundamentalmente, são seus interesses comuns.

Partindo desta apresentação geral, pode-se entender como funciona a manutenção e a reprodução das condições de dependência A inserção definitiva e derradeira da América Latina na estrutura capitalista mundial se dá pela necessidade da economia industrial nascente nos países centrais em deslocar seu eixo de acumulação da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa (Marini, 2008). Segundo Sérgio Lessa (2013, p.139), as “necessidades de reprodução do capital” demandavam um “patamar superior de articulação entre as mais-valias absoluta e relativa”, o que contribuirá decisivamente para o desenvolvimento do imperialismo. Tal articulação, entretanto, exigirá que os países periféricos atendam às imposições dos países centrais. E o que permitirá que as produções de tipo dependente cumpram este papel será fundamentalmente uma maior exploração de seus trabalhadores. É isso o que esclarece a afirmação de que o desenvolvimento dependente reproduz e amplia a própria condição de dependência.

A passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista (1870-71) e o início do Imperialismo a ela associado, impuseram à produção de mercadorias no Brasil novas exigências que se condensavam na necessidade de ampliação da exploração dos trabalhadores. Foi preciso não apenas modernizar as relações de produção para possibilitar uma maior extração da mais-valia, como ainda foi necessário multiplicar a escala da produção. (LESSA, 2014, p. 15)

Segundo Marini (2008), o que ocorre é que a dialética da dependência segue a lógica desigual e combinada de expansão do capitalismo, caracterizando-se pela troca desigual de valor, ou seja, pela transferência “gratuita” de excedentes produzidos pelas economias subordinadas para as economias centrais. Trata-se de uma apropriação estrutural de valor – da periferia para o centro – que possui características particulares. A operação realizada pelas economias dependentes que permite e compensa essa troca desigual se dá no nível da produção interna, pelo recurso da superexploração da força trabalho. Nas palavras do autor:

el problema que plantea el intercambio desigual para América Latina no es precisamente el de contrarrestar la transferência de valor que implica, sino más bien el de compensar una pérdida de plusvalía, y que, incapaz de impedirla en el

plano delas relaciones de mercado, la reacción de la economía dependiente es compensarla en el de la producción interna (MARINI, 2008, p. 124) .

Marini (2008) identifica três mecanismos que configuram um modo de produção fundado na maior exploração do trabalhador, são eles: a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada e a expropriação de parte do trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho. Os leitores mais atentos dirão, com razão, que nenhum desses mecanismos é novo para o capitalismo, pois encontram-se em maior ou menor grau em qualquer ambiente marcado por relações capitalistas de produção. No entanto, o argumento de Marini (2008) é que a combinação destes três mecanismos culmina em um tipo de desvalorização do trabalho que não se encontra de maneira generalizada no interior das economias capitalistas centrais, mas que compõe a forma típica da exploração capital- trabalho em economias dependentes, como a brasileira.

Nas palavras do autor, “que fique claro um ponto: o aumento do tempo de trabalho excedente sempre significa maior exploração da força de trabalho. Neste sentido, os trabalhadores das economias centrais se encontram submetidos a uma intensificação constante de sua exploração” (MARINI, 2013, p. 173). Nesse sentido, o que caracteriza precisamente a superexploração é que a força de trabalho de localidades dependentes é remunerada a um preço inferior ao seu valor real. Logo, a combinação dos três mecanismos promove, nessas economias dependentes, um formato de exploração distinto do que ocorre na relação capital-trabalho em economias centrais.

A superexploração da força de trabalho é, portanto, a característica particular de um tipo de produção capitalista desfavorecida (dependente) que se consolida no sentido de compensar no nível interno de produção a natureza desigual de suas trocas no mercado mundial, situação estruturalmente promovida pela própria divisão internacional do trabalho. Ao escrever sobre a dialética do capitalismo brasileiro, Marini (2013) afirma: “o desenvolvimento capitalista brasileiro se caracterizou pelas elevadas taxas de mais-valia, que ao refletir um grau desproporcionado de exploração do trabalho, configuram de fato uma situação de superexploração” (MARINI, 2013, p. 164).

O caminho capitalista percorrido pelas economias dependentes foi distinto do desenvolvimento da industrialização observado nos países capitalistas centrais, onde o consumo individual dos trabalhadores se formatou como fator decisivo para a criação de demanda e realização do capital. Como repara Marini (2008), opera-se em um país

dependente a separação de dois momentos essenciais para o ciclo de acumulação, a produção e a circulação.

Devido ao fato da produção em uma economia dependente se orientar necessariamente para o mercado mundial (exportação), o consumo individual destes trabalhadores não interfere decisivamente na realização dos produtos ali produzidos. A tendência nesses casos específicos é que os três mecanismos de exploração da força de trabalho – intensificação do trabalho, aumento da jornada e maior expropriação do trabalho necessário – sejam aprofundados e combinados entre si de forma diferente do que ocorre nas sociedades capitalistas dominantes. Nas palavras de Marini (2008):

La economía exportadora es, pues, algo más que el produto de una economía internacional fundada en la especialización productiva: es una formación social basada en el modo capitalista de producción, que acentúa hasta el límite las contradicciones que le son propias. Al hacerlo, configura de manera específica las relaciones de explotación en que se basa, y crea un ciclo de capital que tiende a reproducir en escala ampliada la dependencia en que se encuentra frente a la economía internacional. (MARINI, 2008, p.137)

É por tudo isso que Theotônio dos Santos (2000 e 2008) denuncia que o capitalismo não funciona sem assimetrias. Do ponto de vista do mercado mundial, a manutenção das desigualdades e da superexploração sobre os trabalhadores de nações periféricas não é uma opção perversa dos países centrais ou uma junção de fatores que se encerram no nível interno. Na realidade, trata-se de uma necessidade estrutural do próprio sistema. Se há concentração de renda no plano interno, no plano externo não é diferente. A centralização de riquezas entre os países centrais se mantém pelas trocas desiguais, compensadas pela superexploração. A teoria da dependência consiste, nesse sentido, em um estudo sobre a riqueza e a pobreza, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como elementos não-lineares e contraditórios, mas dialeticamente complementares de uma mesma totalidade política, social e econômica, o sistema capitalista.