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Alteridade: destinatário e sobredestinatário

2.2 O OBJETO DE DISCURSO: HETEROGENEIDADE DAS VOZES SOCIAIS

2.2.5 Alteridade: destinatário e sobredestinatário

Segundo Bakhtin (2010, p. 357), não há comunicação sem o estabelecimento de destinatários – designados de o “segundo” e o “terceiro”. Logo, além de um “eu” e um “você” participantes da comunicação, há um terceiro, o sobredestinatário.42

Em relação ao “segundo”, Bakhtin faz considerações bastante específicas. Ele assume características variáveis, desde o destinatário empírico, o “interlocutor direto do diálogo”; ou o presumido, “o conjunto diferenciado de especialistas em alguma área”; ainda “o auditório diferenciado dos contemporâneos, dos partidários, dos adversários e inimigos, dos subalternos, dos chefes, dos inferiores, dos superiores, dos próximos, dos estranhos, etc.”; ou também “o outro não concretizado (é o caso de todas as espécies de enunciados monológicos de tipo

42 Nomenclatura variável nas traduções brasileiras da obra Estética da criação verbal. Em Paulo Bezerra (2010) lê-se supradestinatário, em Maria Ermantina Galvão G. Pereira (1997) sobredestinatário. Também em comentadores de Bakhtin se observa a variação, em Brait e Melo (2010), sobredestinatário, Rocha (2012) e Furlanatto (2012) utilizam supradestinatário.

emocional)” (BAKHTIN, [1959-1961] 2010a, p. 322). Desse destinatário, o autor do enunciado espera e presume uma compreensão responsiva.

Bakhtin assume o sobredestinatário como “constitutivo do todo do enunciado”. Contudo, reforça o autor, ele somente se mostra a partir de uma análise mais densa de um enunciado – sendo esta a minha pretensão ao analisar as redações de vestibular nesta pesquisa. A meu ver, a análise densa se conecta com o que Brait e Melo (2010) afirmam a respeito do tratamento das “marcas enunciativas como discursivas, marcas não apenas deixadas verbalmente no enunciado, mas marcas de um sujeito, de um lugar histórico e social” (BRAIT; MELO, 2010, p. 72). Bakhtin trata o “terceiro” de um modo mais difuso do que trata o “segundo” em suas obras. Para apresentar uma primeira noção desses conceitos, exponho uma passagem da Estética da

criação verbal, em seguida me apoio em estudos de outros pesquisadores de base bakhtiniana

para tratar do sobredestinatário.

No texto a seguir, Bakhtin explica que

o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pressupõe um sobredestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado. (O destinatário de emergência.) Em diferentes épocas, graças a uma percepção variada do mundo, este sobredestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc. (BAKHTIN, [1959-1961] 2010a, p. 356, grifos meus).

Podem-se observar duas especificações a respeito do destinatário, nominado de “terceiro”, nesse fragmento. A primeira acontece pela designação do destinatário de

emergência, que parece salvaguardar, além do sentido do enunciado, a continuidade da cadeia

de enunciados. Caso o “segundo” não tenha uma compreensão responsiva, ainda há o “terceiro, invisível”. Bakhtin defende que a relação dialógica tem uma amplitude maior que a fala dialógica numa acepção estrita, portanto esse sobredestinatário se refere a outros leitores que podem entender um texto séculos depois de sua publicação.

Passo, neste ponto, a diferentes leituras que especificam a compreensão desse destinatário. Brait e Melo (2010), por exemplo, propõem aos enunciados de tipo emocional, como as grandes obras de arte, os tratados filosóficos, um leitor denominado de sobredestinatário que esfacela fronteiras de espaço e de tempo. Já Midgley, Henderson e

Danaher (2010) partem da analogia construída por Morson e Emerson (199043 apud MIDGLEY; HENDERSON; DANAHER, 2010, p. 3, tradução livre), tomando o sobredestinatário como “a personificação da esperança, sem a qual todas as tentativas de diálogo iriam degenerar em terror”. A justificativa para a analogia ocorre pela estreita ligação com a natureza dos encontros dialógicos, defendem os autores, dado que ao se estabelecer um diálogo, por exemplo, não se tem certeza que o que está sendo dito é compreendido, mesmo na interação face a face. O fato de um interlocutor fazer gestos, como aceno de cabeça, pode por hipótese ser tomado como assentimento sobre o que é dito, ou sobre o que o interlocutor acha que o outro quer dizer, ou mesmo por hábito. Os autores destacam que, mesmo interlocutores que utilizam palavras similares, podem ter significações diferentes para um mesmo enunciado. Essa conclusão é próxima daquela a que Rocha (2012) chega acerca do sobredestinatário: ele seria alguém capaz de responder ao enunciado, uma vez que a palavra pode ir além do contexto em que foi criada. Oautor alude às obras literárias, que perpassam o tempo e o espaço e atingem um leitor que não pertencia àquele espaço-tempo. Considero, então, que o sobredestinatário a que os pesquisadores se referem seria o destinatário de emergência, que teria uma compreensão responsiva na cadeia dialógica; desse modo, os sentidos nunca cessariam. O falante/escrevente estaria dialogando com uma identidade concreta variável, que poderia ser nas palavras de Bakhtin: Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência.

A fim de destacar uma segunda particularização para a noção de sobredestinatário, retomo, a seguir, parte da citação anterior.

Em diferentes épocas, graças a uma percepção variada do mundo, este sobredestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc.) (BAKHTIN, [1959-1961] 2010a, p. 356, grifos meus).

Destaco que essa mesma identidade concreta variável, designada pelo autor, também poderia ser compreendida como uma entidade que avalizaria a posição assumida pelo falante/escrevente. Prerrogativa que se pode verificar na especificação de que Deus, a verdade

absoluta, o povo, o julgamento da história, a ciência funcionariam como álibis para

43 No original: Morson and Emerson argued that the superaddressee was the embodiment of hope, without

determinadas posições assumidas em um discurso. Apresento, a seguir, algumas pesquisas que procuram especificar essa particularização.

Em seu artigo a respeito do sobredestinatário, Midgley, Henderson e Danaher (2010) consideram as implicações que o “terceiro” pode trazer para a interação. Para tratar dessa implicação, os autores citam, por exemplo, uma pesquisa de Bryzzheva (2006, 2008) que discute o papel de apoio que o sobredestinatário oferece aos professores em situações difíceis enfrentadas em salas de aula. O apoio, naquela pesquisa, refere-se à força de “uma mentora idealizada que concorda que o que [os professores] estão fazendo é certo”,44por exemplo quando os professores dizem ao aluno “Você tem que fazer sua lição de casa”,45 mesmo que todos discordem, é o sobredestinatário que corrobora com a atitude o professor. Segundo Bryzzhera o professor sustenta sua posição de voz avalizada pela superioridade do conhecimento, a qual o apoia nesse contexto difícil (BRYZZHERA apud MIDGLEY; HENDERSON; DANAHER, 2010, p. 4).

O terceiro exemplo fornecido pelos autores discute a influência do sobredestinatário na construção de argumentos em um diálogo face a face. As análises postulam três funções dialógicas para o sobredestinatário:

• a primeira traz evidência do “chamado do sobredestinatário” (callingonsuperaddressees); nela, os interlocutores abordam autoridades ou especialistas que não estão fisicamente presentes na conversa;

• a segunda apresenta evidência do “reconhecimento do sobredestinatário” (acknowledging superaddressees); trata-se de formas pelas quais o ouvinte afirma a aceitabilidade ou a adequação dos sobredestinatários sobre o falante;

• a terceira, o conceito de “audição do sobredestinatário” (listening for

superaddressees), inclui maneiras pelas quais ouvintes tentam identificar

sobredestinatários que não são explicitamente chamados, mas são, no entanto, suscetíveis de estarem presentes.

44 No original: minds an idealised mentor who agrees that what they are doing is right. 45 No original: You have to do your homework.

O sobredestinatário sustentaria determinadas crenças de um falante/escrevente, que de certo modo podem ser caracterizadas como silenciosas, pois muitas vezes não se tem plena consciência delas – exemplifico com a pesquisa citada nesta seção de que a professora para argumentar com seus alunos busca apoio em um sobredestinatário que corrobora sua atitude. O diálogo com o aluno vem apoiado por superdestinatário, uma crença silenciosa que apoia certa verdade construída ao longo da história: como a da crença no valor do conhecimento científico. De acordo com Bakhtin ([1930-1940] 2010a), o sobredestinatário, como voz avalizadora, pode assumir diferentes posições a partir do que o escrevente especificar, quais sejam: de aliado, testemunha, simpatizante ou juiz do que é enunciado. Essa especificação não é restrita ao escrevente, tendo em vista que está igualmente articulada ao seu destinatário, à situação social, ao gênero.

Os resultados das pesquisas são pertinentes para que se possa pontuar considerações, posto que é nessa direção que o sobredestinatário é tratado na análise dos dados neste trabalho. Desse modo, neste trabalho, assume o sobredestinatário como:

i) o responsável pela valoração de um enunciado mesmo em temporalidades futuras;

ii) uma voz que avaliza o dizer: tem força de persuasão em relação ao interlocutor;

iii) a instância evocada na situação de interação, tendo em vista certa previsibilidade de aceitação por ou de adequação a ela.

A argumentação está avalizada ora por um destinatário imediato, ora por um destinatário presumido, ora pela voz de um terceiro, o sobredestinatário, que, intervindo no diálogo, age como intercessor. Portanto, além dos interlocutores imediato e presumido, atribuo diferentes papéis para o sobredestinatário: é um interlocutor privilegiado, responsável pela valoração de um enunciado em temporalidades futuras e, como tal, funciona como voz avalizadora.