• Nenhum resultado encontrado

Enunciação/enunciado: vozes sociais heterogêneas

2.2 O OBJETO DE DISCURSO: HETEROGENEIDADE DAS VOZES SOCIAIS

2.2.2 Enunciação/enunciado: vozes sociais heterogêneas

Enunciado e enunciação têm concepções indissociáveis na perspectiva do Círculo, visto se organizarem no meio sócio-histórico, nas relações dialógicas instauradas. 30 Bakhtin/Voloshinov ([1929] 2006) parte da enunciação para expor que é nela que nasce toda possibilidade de tratar o mundo, pois estão presentes as condições para a língua se mostrar não somente como materialidade linguística, mas relacionando-se com elementos exteriores, mobilizando a dimensão sócio-histórica. Diante desse posicionamento teórico, é significativo destacar a compreensão do que significa sócio-histórico; para tanto recorro inicialmente às

30 Para efeitos de análise, muitas vezes vou me referir ao produto verbal visível como enunciado, mas sempre o tomando no curso histórico da enunciação.

definições do dicionário, mas no decorrer do capítulo a exposição da expressão é retomada e rediscutida.

Do verbete “social”, destaco as definições: 1) “Relativo à vida do homem em sociedade; 2) Relativo ou pertencente à sociedade humana considerada como entidade dividida em classes graduadas, segundo a posição na escala convencional: posição social, condição social, classe social” (MICHAELIS on-line). A leitura dessas duas acepções permite observar uma relação intrínseca entre indivíduo e espaços sociais. Procuro, então, problematizar essa relação visto que, se pensarmos em construção de enunciados, as relações sociais não estão a priori completamente construídas no indivíduo empírico; é na interação que se erige a relação enunciativa e é nela que a descrição do indivíduo em termos de categorias sociológicas pode sofrer alterações significativas a depender do que Pêcheux chama “jogo de representações” (1990, p. 79-87)31 que se dá no discurso.

Em relação à noção de história, destaco três acepções: 1) “Narração ordenada, escrita, dos acontecimentos e atividades humanas ocorridos no passado. 2) Ramo da ciência que se ocupa de registrar cronologicamente, apreciar e explicar os fatos do passado da humanidade em geral, e das diversas nações, países e localidades em particular. 3) Os fatos do passado da humanidade registrados cronologicamente” (cf. MICHAELIS on-line). O dicionário ao reiterar, nas três acepções, passado e registro cronológico assenta a história na perspectiva da linearidade de fatos, postos no passado. Entretanto se a história for observada pelo movimento da linguagem, pode ser concebida como um constante retorno ao passado, provocado pelo presente e também pela antecipação (futuridade) de um por-vir. Deixa-se de conceber a história como linearidade, das datas expostas cronologicamente, para pensá-la como fatos e registros “descontínuo[s]” (BAKHTIN, [1979] 2010a, p. 265).

Aludir à descontinuidade é considerar que as vozes sociais no plurilinguismo apresentam-se de modo a dialogar com diferentes momentos da história. Assim assumo a premissa de que a vida32 é dialógica, como define Bakhtin, há implicado na asserção vê-la como

31 Na obra citada – Análise automática do discurso –, consultar o quadro 1, denominado de “jogos de imagem”.

32 A palavra “vida” é constante na obra bakhtiniana. Faraco (2006), ao deter-se sobre a obra Para uma

filosofia do ato, argumenta que Bakhtin parte da asserção de que existe um dualismo entre o “mundo da vida” e o

“mundo da teoria”. São mundos incomunicáveis, defende Faraco, porque o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo “mundo da teoria”, na medida em que, neste último, não há lugar para o ser e o evento únicos. O “mundo teórico” se constitui pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida e o “mundo da vida” trata do singular; do evento; do ato individual; do subjetivo (FARACO, 2006, p. 10-21).

um amplo diálogo, que surge de uma situação pragmática, com interlocutores presenciais ou não, mas se completa pelos “diálogos anteriores, construídos pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados” (ibid., p. 318).

Neste ponto, procuro descrever como o conceito de enunciação foi elaborado na teoria bakhtiniana, por oposição às ideias do objetivismo abstrato e do subjetivismo individualista. Neste último recai a crítica referente à consideração sobre o “ato de fala” ser compreendido como “individual”, oriundo “das condições da vida psíquica individual”; e àquele incide a discordância em relação ao argumento de que o “sistema da língua” pode “dar conta dos fatos da língua” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, [1929] 2006, p. 111). É a partir dessas oposições que o autor define a enunciação pelas características de uma “estrutura sociológica” (ibid., p. 129) como veremos nos parágrafos subsequentes.

A oposição ao subjetivismo individualista está na defesa de que um ato de fala não é “monológico”, não parte da expressão de uma consciência individual, do desejo da intenção de um impulso criador do falante/escrevente. Ou seja, o ato de fala não é formado e determinado no psiquismo do indivíduo, de tal modo que apenas se exterioriza para outros por meio de um código de signos; é, pelo contrário, como argumentam os autores, o social que constitui o que está no interior. Esta afirmação ressalta uma das oposições mais agudas feitas por esta corrente: “não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação” (ibid., p. 114).

Com efeito, o social passa a organizar as condições de uma enunciação que “é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige a alguém” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, [1929] 2006, p. 113). Por conseguinte, “a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” (ibid., p. 112). Sendo produto dos interlocutores, a palavra variará de acordo com a “função da pessoa desse interlocutor”, interlocutor que nunca é abstrato, pois se constrói na enunciação. Defendo também, nesta pesquisa, que a palavra varia devido à relação estabelecida com o sobredestinatário, como se verá na seção 2.2.5.

O autor concebe que, junto ao social, o histórico atua na enunciação, dado que ambos delineiam o “horizonte social”, que especifica desde a “situação mais imediata” até “o meio

Como se nota, ainda que os interlocutores presenciais dialoguem circunstanciados pela situação imediata, em um espaço e tempo específicos, demarcando seus lugares sociais, as relações de participação na enunciação estão mediadas pela situação de tempo e espaço mais amplos, visto que o processo interacional se dá, também, em uma relação dialógica com temporalidades e espacialidades mais amplas, por meio das quais os interlocutores envolvidos se constituem em meio às relações com outros enunciados.

Isso permite dizer que a enunciação é repleta de enunciados que constituíram outras interações, os quais, nessa perspectiva, estão ligados a diálogos já-ditos, dos quais os sujeitos retomam sentidos. Um enunciado “pressupõe enunciados que o precederam e que lhe sucederão; ele nunca é o primeiro, nem o último; é apenas o elo de uma cadeia e não pode ser estudado fora dessa cadeia” (BAKHTIN, [1970-1971] 2010a, p. 376).Se tomarmos a analogia expressa por Bakhtin/Voloshinov entre enunciação e ilha, compreendemos que a enunciação é “uma ilha emergindo de um oceano sem limites” ([1929] 2006, p. 127). A ilha é só uma fração na corrente de comunicação verbal; no oceano, a ilha representa a unidade real da cadeia verbal, que é o enunciado, unidade mínima, pois só a ele pode-se responder na relação de interação. Ao aludir a “elo”, o autor pontua que as relações dialógicas formam a corrente da enunciação, que é infindável, corrente que se constitui “na atmosfera do ‘já-dito’”, todavia, “orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado” (BAKHTIN, [1975] 2010b, p. 89).

Um corolário dessa afirmação é que os enunciados não têm origem nos enunciadores, porque estão constituídos por vozes sociais que já os antecederam e que marcam também uma projeção de futuro. No presente trabalho, outros enunciados são o modo como as redações do vestibular são compostas por enunciados “elo” (BAKHTIN, 2010a, p.272) que respondem a enunciações que as antecederam, impregnadas de sentidos que atravessam o tema – trabalho –, solicitado a ser desenvolvido no exame vestibular. Nessa perspectiva, há um convite a olhar a redação também pelas vozes sociais que espelham um eu “possuído por uma alma alheia” (BAKHTIN, [1924-1927] 2010a, p. 31). Considera-se, então, que a resposta a um enunciado não está dada somente pelo enunciado precedente, porém, por respostas, réplicas a enunciados anteriores e enunciados futuros. Não há unicamente resposta à proposta de redação, pois junto a ela ecoam outros enunciados.

O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos

e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão (BAKHTIN, [1975] 2010b, p. 86).

Com tal característica, a enunciação é concebida como réplica a diálogos anteriormente existentes, réplica constituída de referência axiológica, compreendida como conjunto de valores que indiciam línguas do plurilinguismo. Se, por um lado, o enunciado vem carregado de referência axiológica (de acento de valor, de entoação) já constituída, há reacentuação na inserção em outro enunciado. Pode-se compreender que há sempre “reacentuação” (BAKHTIN, [1975] 2010b, p. 208), pois as palavras já estão acentuadas, não são neutras, a não ser no sistema abstrato da língua. Segundo Bakhtin/Voloshinov, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” ([1929] 2006, p. 96), o que um sujeito faz é reacentuar, acento que é resultante do processo de interação.

O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão (BAKHTIN, [1975] 2010b, p. 86).

Em relação ao objetivismo abstrato, Bakhtin/Voloshinov marca sua rejeição à ideia de que o sistema da língua daria conta do sentido. Para especificar essa escolha, valho-me da posição do autor de que o extraverbal se “integra ao enunciado como uma parte constitutiva

essencial da estrutura de sua significação” (VOLOSHINOV/BAKHTIN, [1926] s.d., p. 6,

grifos do autor). A enunciação passa a ser constituída, além do sistema da língua, da situação extraverbal, dado que o verbal nasce da situação pragmática, do extraverbal. Assim, três fatores o constituem: 1) o horizonte espacial comum dos interlocutores; 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores; 3) a avaliação comum dessa situação. Fatores que correspondem a um partilhar comum – o “conjuntamente visto”, o “conjuntamente sabido” e o “unanimemente avaliado” (VOLOSHINOV/BAKHTIN, [1926] s.d., p. 9). Sem essa partilha, o sentido de um enunciado não emerge.33 De tal modo, o sistema

33 Ilustro com o exemplo citado por Voloshinov/Bakhtin ([1926], s.d.) para explicar como o sentido está na dependência do extraverbal. Duas pessoas estão sentadas em uma sala, em silêncio. Uma delas diz “Bem”, mas não recebe resposta. A conversa é incompreensível se “bem” for analisado isoladamente; no entanto, fará todo sentido se o conjugarmos aos três fatores do contexto verbal que constroem o sentido de um enunciado: “1) o horizonte espacial comum dos interlocutores é o visível, no exemplo a janela, a sala; 2) o conhecimento e a

da língua constrói o sentido junto ao conjunto de circunstâncias subentendidas pelos aspectos do extraverbal – espaço e o tempo do evento; o tema do enunciado; a posição dos interlocutores diante do fato, a avaliação (cf. VOLOSHINOV/BAKHTIN, [1926] s.d.).

Diante dessas oposições ao subjetivismo individualista e ao objetivismo abstrato, assumo que o ato de fala não parte de uma consciência individual, visto que o social organiza as condições de uma enunciação; bem como a enunciação passa a ser formada pelo sistema da língua e pela situação extraverbal. Ressalte-se que a enunciação não se inicia quando a fala/escrita se concretiza, pois sua materialização está ligada a enunciadores anteriores e também o que está por vir, como antecipação ao diálogo com o destinatário. Sendo os enunciados constituídos de vozes sociais, o escrevente responde a uma voz enunciada, que, em resposta, forma o que Bakhtin denomina de um “elo na cadeia dos atos de fala” ([1951- 1953]2010a, p. 309).