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2.3 DIALOGIA NO(S) LETRAMENTO(S)

2.3.1 Letramento plural

Para apresentar um acontecimento51 significativo para o modo de conceber a leitura e a escrita,52 passo a especificar a noção de letramento e suas implicações. As discussões sobre letramento no Brasil receberam, ao longo da década de 1990, atenção significativa, de maneira especial de autoras como Kleiman, Soares, Tfouni, Rojo, sobretudo influenciadas pelo movimento dos Novos Estudos de Letramento, sob autoria de Gee, Heath, Street, Barton e Hamilton (CERUTTI-RIZZATTI, 2009, 2012). A denominação Novos Estudos de Letramento (NLS, da sigla em inglês), proposta por Gee (2009), 53 referia-se a um campo de estudo que emergia em diferentes áreas como a Linguística, a História, a Antropologia, a Retórica, a Psicologia Cultural, a Educação, entre outras. Ainda que os estudiosos não compartilhassem de uma teoria, parece a Gee (ibid., p. 2, tradução minha)54 que “estavam convergindo para uma visão coerente e partilhada a respeito de letramento”. O ponto de anuência é, a princípio, a oposição à “abordagem psicológica tradicional de letramento”, concebida, até então, como fenômeno cognitivo definido em termos de estados mentais e processamento mental, tais como

51 Assumo a noção a partir de Pêcheux (2006). Para o autor “acontecimento” distancia-se meramente de um evento empírico, é um fato histórico, logo, penso a noção de letramento também como uma construção na história das práticas de leitura e escrita. Sendo fato histórico, o “acontecimento” é marcado de acordo com Rasia e Cazarin (2014) por uma ruptura discursiva com a estabilidade anterior e inaugura uma nova estabilidade discursiva. A exemplo do tema tratado – o letramento – a ruptura estabelecida é com discursos a respeito da leitura e da escrita ligadas estritamente à cognição e a nova estabilidade se revela a partir de outros discursos, em que leitura e escrita estão ligadas também ao social e à história. Ainda que o acontecimento do letramento estabeleça diferenças discursivas entre sentidos, não quer dizer um rompimento total, visto que os sentidos anteriores e os novos podem conviver simultaneamente, como se pode reconhecer nos discursos coexistentes sobre leitura e escrita em educação.

52 Ao discutir escrita, assumo leitura como “contraparte constitutiva da atividade de escrita” (KOMESU; GALLI, 2014, p. 80).

53 Gee assinala que a primeira referência está em seu livro Sociolinguistics and literacies (1990). A sigla NLS é atribuída a um conjunto de autores, tais quais: Brandt e Clinton (2002); Gee (2000); Hull e Schultz (2001); Pahl e Rowsel (2005, 2006); Prinsloo e Mignonne (1996); Street (1993, 1995, 1997, 2005).

decodificação, recuperação de informações, compreensão, inferência. Decorrente da oposição, o aspecto posterior trata da reflexão sobre comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita ultrapassando o domínio do cognitivo, de tal modo que “letramento precisava ser compreendido e estudado em toda a sua gama de contextos – não apenas cognitivo –, mas social, cultural, histórico e institucional” (ibid., p. 2, tradução minha).55 Por conseguinte, enquanto a abordagem psicológica ressaltava o envolvimento dos leitores e escritores em processos mentais como decodificação, recuperação de informações, compreensão, inferência, a abordagem dos NLS os focava “engajados em práticas sociais ou culturais” (ibid., p. 2).56

Ao integrar práticas sociais e culturais, a Antropologia e os estudos interculturais contribuíram para estabelecer marcos para NLS, pois enquanto os teóricos da Educação e da Psicologia concentravam-se nos elementos discretos57 das habilidades de leitura e escrita, os antropólogos e os sociolinguistas conduziam as pesquisas considerando os letramentos como práticas sociais (cf. STREET, 1993).

Estabelece-se, então, posso dizer, a ruptura do acontecimento: deixa-se de situar leitura e escrita como conjunto de habilidades técnicas aprendidas na instância escolar e uma

nova estabilidade discursiva é posta, passa-se a compreendê-las como “atividade humana” e

“essencialmente social” que “se localiza na interação interpessoal” (BARTON; HAMILTON, 1998, p. 109, tradução livre).58 É por esse viés que letramento é concebido como acontecimento, por sinalizar e expor a partir de uma nova estabilidade discursiva a pluralidade de práticas

sociais de uso da leitura e escrita – desde a apreensão de realidades diversas, como letramento

das comunidades do campo ou urbanas; especificidades de áreas, a exemplo da Física, da Geografia e outras.

Para os NLS o objeto de estudo passa a ser “os aspectos e os impactos sociais do uso da língua escrita” (KLEIMAN, 2007, p. 2); logo, o texto escrito59 se torna o eixo organizador de

55 No original: literacy needed to be understood and studied in its full range of contexts – not just cognitive

– but social, cultural, historical, and institutional.

56 No original: engaged in social or cultural practices.

57 A relação fonema-grafema, por exemplo, podem ser considerados elementos discretos

58 No original: Como toda actividad humana, la literacidad es essencialmente social e se localiza em la

interacción interpessoal.

59 A presença unicamente do signo escrito como objeto de estudo no letramento leva a algumas considerações significativas. Apresento a seguir a posição de dois autores. Cerutti-Rizzatti (2012) argumenta em

Letramento: uma discussão sobre implicações de fronteiras conceituais que o termo “letramento” tem implicações

com littera, portanto, de acordo com a origem etimológica requer a presença da língua escrita. A pesquisadora opõe-se à expansão desmedida do termo para instâncias em que o signo verbal escrito não é prevalecente, a exemplo do letramento digital, do letramento matemático ou do letramento musical. Embora reconheça que seus

uma prática social. A partir desse ponto da pesquisa, deixo a nomenclatura Novos Estudos do Letramento (NLS) e utilizo a expressão Estudos do Letramento, consoante Kleiman (1995) e Soares (1998). A opção se justifica pelo argumento de Kleiman (2008) segundo o qual, nos países de língua inglesa, os estudiosos recorreram ao adjetivo “new”, New StudiesofLiteracy, para distinguir as linhas teóricas que consideram os aspectos sociais do uso da língua escrita daquelas que não os consideravam. Contudo, no Brasil, as pesquisas em letramento são novas, defende a autora, datam da década de 1990, e se consolidam distinguindo os usos da língua escrita na vida social da alfabetização.60

Por esta razão, o vocábulo letramento, como marca de um acontecimento, de uma

nova estabilidade, passa a organizar e implicar correlação com outros discursos: as múltiplas

atividades humanas, os diferentes espaços sociais – além da escola – em que acontecem práticas de leitura e escrita. Interessa pensar, então, como as práticas funcionam em dado espaço social e histórico, logo não há um único letramento, em atenção à variação das atividades humanas. O letramento se torna plural: letramentos, em razão de que se leem e se escrevem “tipos específicos de textos”, determinados pelos “valores e práticas dos diferentes grupos sociais e culturais” (GEE, 1993, p. 5, tradução minha). Sendo assim, letramento passa a significar incidência de multiplicidade.

usos mantêm parte das propriedades pelas quais o fenômeno letramento fundou-se – como dimensão social, lugares culturais –, defende que há vinculação com uma dimensão semiótica mais ampla do que o signo verbal escrito. Assim, a migração do termo, a exemplo da expressão “letramento digital” decorre da extensão do vocábulo “cidadania”, da acessibilidade aos meios digitais, do que propriamente das habilidades de uso da língua escrita. Desse modo, argumenta que a mobilidade do uso do termo “compromete a precisão do conceito e, ao fazê-lo, incide sobre sua relevância” (CERUTTI-RIZZATTI, 2012, p. 294). Komesu e Tenani (2010) repensam a exclusividade do uso da língua escrita ao discutirem, com base em Corrêa (2004), a “heterogeneidade da escrita” também na internet. As emotions expõem as autoras, expressam o contexto falado na enunciação, ou seja, há encontros entre práticas orais e fatos linguísticos, encontros que fazem com que a escrita seja constantemente permeada por outros modos de enunciar, outras semioses, como os desenhos (KOMESU; TENANI, 2010). Assumo para esta pesquisa que a língua escrita é constituída pelo “eixo da dialogia com o já falado/escrito” (CORRÊA, 2004, p. 11), ou seja, o que já foi falado, ouvido, escrito e lido constitui a língua escrita.

60 Embora a noção de alfabetização e letramento seja discutida por diversos autores, atenho-me às definições de Tfouni e Soares. De acordo com Tfouni (2005) duas são as formas segundo as quais se entende a alfabetização: 1) como um processo de aquisição individual de habilidades requeridas para a leitura e a escrita; e 2) como um processo de representação de objetos diversos, de naturezas diferentes. O mal-entendido, para a autora, parece estar na base de que, na primeira perspectiva, a alfabetização tem um fim e pode ser descrita sob a forma de objetivos instrucionais. A proposta da autora é vê-la como processo, caracterizando assim a sua incompletude. Para Soares (2005, p. 32) não se dissocia alfabetização de letramento porque, “no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita se dá simultaneamente por dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização, e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento”. A autora assume que são processos interdependentes e indissociáveis, visto que a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver- se por meio do aprendizado das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização.

Para tratar das expressões “espaço social” e “espaço histórico”, passo a abordar a relação do vocábulo “letramento” com outros termos, tais como: a oposição entre os modelos de letramento – autônomo e o ideológico –; eventos de letramento e práticas de letramento, com intuito de especificar questões teóricas que surgirão ao longo pesquisa.