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Auditórios e argumentação: universal, único ouvinte e deliberação íntima

2.4 DIALOGIA NA ARGUMENTAÇÃO

2.4.3 Auditórios e argumentação: universal, único ouvinte e deliberação íntima

O auditório universal envolveria a “humanidade inteira, pelo menos por todos homens adultos e normais” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 33-34). A construção da argumentação partiria de proposições aceitas pela maior parte dos seres humanos, de modo que o orador estaria menos propenso à contestação, visto haver “valor conferido às opiniões que desfrutam uma aprovação unânime” (ibid., p. 35).

Ainda que os autores tratem da argumentação para o auditório universal, ponderam que “as concepções que os homens criaram no curso da história dos ‘fatos objetivos’ ou das ‘verdades evidentes’ variaram” (ibid., p. 37). Desse ponto de vista, a existência de certezas, da verdade absoluta e a objetividade dos fatos passam a ser questionadas e assume-se o verossímil, o provável e o aceitável na argumentação. Diante da análise sobre o conceito de verdade, os autores sugerem ao orador que a imagem projetada para um auditório deva estar ligada ao que é comum, consentido a uma dada sociedade e em dado período histórico. Poder-se-ia pensar, então, que o auditório universal passa a ser uma construção subjetiva do autor, contudo a

modo, a principal consequência de tratar o auditório universal como uma projeção do orador configura-se no fato de que a atribuição de racionalidade ou razoabilidade depende do tempo e do lugar. Assim, verifica-se que o conceito proposto afasta-se do ideal racionalista, ou seja, da compreensão de racionalidade como verdade ou como normas eternas e estáveis, desligadas da história, da cultura e da situação (JØRGENSEN, 2012, p. 135, grifos meus).

É interessante observar nessa passagem a constituição do auditório universal pelas relações intersubjetivas e pelo questionamento das verdades eternas e estáveis; logo, o auditório universal passa a ser uma construção que se estabelece em uma dada cultura em um tempo e espaço específicos.

Ao estudar o modo como Perelman elaborou a noção de auditório universal, Grácio (1993) relata as considerações do próprio Perelman em um curso de História da Filosofia: ao trabalhar com as duas principais obras de S. Tomás de Aquino, a Summatheologica e a Summa

contra gentiles, Perelman observa que, embora partilhassem das mesmas ideias, eram diferentes

em relação ao auditório a que se dirigiam. A primeira fora escrita para teólogos e a segunda para os descrentes na Igreja. Na percepção de Perelman, a segunda obra poderia ser considerada um livro de filosofia, pois se dirigia a pessoas cujas crenças específicas não eram tomadas como pressupostos necessários para a aceitação da argumentação, tal asserção o faz concluir ser a argumentação de Aquino um apelo à razão (GRÁCIO, 1993). Perelman, então, conclui: “Havia um apelo a qualquer ser racional que lesse o seu livro. Portanto, chamei-lhe auditório universal, não porque toda a gente o fosse ler mas porque não havia crenças e valores particulares aos quais ele pudesse apelar. Ele fazia apenas apelo àquilo que poderia ou seria admitido por todos” (GOLDEN; PILLOTA, 1986, p. 14 apud GRÁCIO, 1993, p. 90).

Pode-se inferir, então, que na argumentação destinada a um auditório universal há certa concordância entre a maioria dos seres humanos, haja vista a procura por tratar de conceitos gerais; é a argumentação “ad humanitatem” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 125), aquela que se supõe válida para os seres sem exceção, vai além do indivíduo particular. Em contrapartida, essas definições não se aplicam facilmente para uma argumentação sobre valores, defendem os autores. Casos estes em que seriam apresentadas ao auditório considerações a respeito do verdadeiro, do bem e do belo, por exemplo. Tais conceitos seriam pertinentes a um auditório universal somente com “a condição de não lhes especificar o conteúdo”, já que a partir do momento em que são detalhados “não se encontra senão a adesão de auditórios particulares” (ibid., p. 86). Uma argumentação mais específica sobre valores

atenderia a um auditório particular, como os fiéis de uma determinada religião, ou professores, ou mães, ou adolescentes e outros. Tal auditório poderia ser constituído, também, por subgrupos, como por exemplo professores do ensino básico, do médio, do universitário. De acordo com os autores, o auditório particular passa a ter reações mais conhecidas e suas características podem ser estudadas a partir da apresentação dos argumentos específicos. O auditório especializado está incluso no particular, visto comportarem “definições particulares de certos tipos de objetos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 115).

A exemplo das análises das redações, destaco uma organização de argumentos direcionados: i) para o auditório universal, se instauram argumentos pouco controversos a respeito do objeto de discurso “trabalho”, como datas históricas, definições, citações de autoridades da área das disciplinas da Literatura, Sociologia, História, Filosofia; ii) para o auditório particular (pais, trabalhador), os argumentos são mais específicos, como as condições de trabalho, determinadas particularidades no comportamento do trabalhador; iii) e para o auditório especializado (o corretor da banca), situação em que os argumentos específicos estão voltados aos saberes consagrados pela educação formal, como, por exemplo, a delineação do trabalho em uma cronologia ou mesmo o tratamento do trabalho de arte retomando grandes nomes da escultura, da literatura. Apresento a seguir trecho de uma redação do corpus como exemplo do funcionamento dos argumentos para o auditório especializado.

Mesmo sendo fonte de tantas desavenças e desigualdades, é do trabalho que provém parte da história da humanidade. O que seria da Itália, sem o tão famoso “Parla”! Da

França sem o quadro da auto-coroação de Napoleão! Quando direcionado para a área

da arte, é capaz de representar vidas (FE29).

O escrevente, com o intuito de argumentar que do trabalho de arte provém parte da história da humanidade − visto ser capaz de representar vidas −, cita obras de arte históricas e consagradas, além disso constrói um entimema. A construção suprime do interlocutor premissas, assim, cabe ao auditório especializado recuperá-las: O que seria da Itália, sem o tão famoso

Parla! Nessa construção, o escrevente, ao não especificar premissas, conta com um auditório

capaz de restaurar parte da história não relatada100 no qual a expressão destacada foi

100 De acordo com a lenda propalada por Vasari, biógrafo de Michelangelo, depois de terminar a sua escultura de Moisés, este artista, diante da perfeição e realismo de sua obra, teria batido no joelho da escultura com o martelo e pronunciado a expressão “Parla!” (Michelangelo. Coleção grandes mestres da pintura. Disponível em http://mestres.folha.com.br/pintores/09/curiosidades.html.).

pronunciada.

Posso dizer, portanto, estar a argumentação para o auditório universal estabelecida quando o orador busca apoio em argumentos que atendam ao consenso de todos sobre o que é falado/escrito. Nesse caso, o orador conta com a adesão dos que representam a racionalidade, sua argumentação tem de ser convincente, falar à razão, demonstrando algo; já o orador em um auditório particular procura a adesão por meio da argumentação por persuasão. É a “natureza do auditório”, universal ou particular ao qualos argumentos são apresentados que “determina em ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhes serão atribuídos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 33). Assim, para um auditório universal, os argumentos são mais consensuais e para o particular e especializado há a apresentação de argumentos com pontos de vistas mais específicos (a exemplo do excerto da redação FE29, Fragmento 7). Nas análises do corpus, ocorrem em muitas redações os dois tipos de auditório, um especializado, com funções peculiares, por exemplo a banca corretora das redações com seus papéis característicos como auditório; e um universal, com seres de diferentes níveis intelectuais a quem a argumentação é conduzida.

No auditório de um único ouvinte, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) defendem haver no auditório de um único ouvinte defendem haver uma frequente “encarnação” (p. 45), no ouvinte único, de um determinado auditório universal ou particular. Para esclarecer a questão, os autores observam a possibilidade de um ouvinte único representar um grupo, ser considerado amostra de todo um gênero de ouvintes, a exemplo de um estudante dedicado ser tomado pelo professor em sala de aula como ponto de direção para a argumentação, exemplificam. Se a escolha de um ouvinte único for determinada pelo objetivo do orador, reforçam os autores, há uma ideia anterior de como o grupo é caracterizado e quais metas se pretende atingir. Muitas vezes o discurso direcionado a um único ouvinte tem aparência de um diálogo, pois o orador, ao observar, prever reações do interlocutor, procura provar o ponto de vista contestado.

Neste ponto, é possível realizar uma aproximação com o “auditório social”, presente na obra de Bakhtin/Voloshinov ([1929] 2006). Assim como para a Nova Retórica, o auditório bakhtiniano não é descrito como um indivíduo isolado de um grupo social, e isso ocorre porque a palavra, ao ser proferida, tem uma orientação social dependente de um auditório social, afirma o autor russo.

A deliberação íntima é considerado por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) uma situação em que o orador se dividiria, em hipótese, entre pelo menos dois interlocutores e assim procuraria “reunir” pontos de vista diversos, com “algum valor a seus olhos” e, por conseguinte, “após ter pesado os prós e contras, decidir-se, em alma e consciência, pela solução que lhe parecer melhor” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 45).

Desta forma, mesmo na deliberação íntima, acreditam os autores, não existe natureza diferente de argumentação, há possibilidade de composição de um auditório universal ou particular. O orador procura argumentos favoráveis e contrários a seu ponto de vista e realiza uma estimativa entre eles, procede do mesmo modo como se estivesse falando com outro auditório, conferindo diferentes valores aos argumentos. Os autores afirmam ocorrer no diálogo com o outro um melhor esclarecimento do ponto de vista. É, pois, a “análise da argumentação dirigida a outrem” que nos faz “compreender melhor a deliberação conosco mesmo, e não o inverso” (ibid., p. 46).

Nessa mesma linha de pensamento, Volochínov101 (2013) defende que os discursos mais íntimos são também dialógicos, ou seja, estão carregados pelas avaliações de um “auditório potencial, mesmo quando o pensamento nesse ouvinte não tenha passado pela mente do falante” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 164). O autor exemplifica a asserção desta forma: ao se refletir sobre um tema, o mesmo toma a forma de um debate com perguntas e respostas, que se estrutura em forma de afirmações seguidas de objeções, que “toma forma dialógica” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 164, grifo do autor). Diálogo este que aparece, em especial quando se toma uma decisão: até chegar a uma conclusão, hesita-se e o sujeito se envolve em um debate consigo mesmo, trazendo vozes sociais com pontos de vista diversos que se posicionam a respeito de uma outra decisão: “Começamos a discutir conosco mesmo, começamos a convencermos da exatidão de uma decisão. Nossa consciência parece quase dividir-se em duas vozes sociais independentes que se contrapõe uma a outra” (ibid., p. 165).

Uma discussão proposta por Bakhtin ([1929] 2010c) em O diálogo com Dostoiévski auxilia a especificar o diálogo em deliberação íntima. Ao analisar o tratamento de Dostoiévski na construção das personagens, o teórico considera ser a autoconsciência do herói dialogada, isto é, ela não existe para si mesma, está voltada para o outro. O intuito do romancista, acredita

101 Há diferentes grafias na transliteração do russo para o português do nome do autor, assim procurei transcrever de acordo com as traduções realizadas.

Bakhtin, era munir as personagens de autoconsciência, o que dessa maneira se refletia no desejo de compreender a profundidade da alma humana, visto que

ver e entendê-lo [o homem interior] é impossível fazendo dele objeto de análise neutra indiferente, assim como não se pode dominá-lo fundindo-se com ele, penetrando em seu íntimo. Podemos focalizá-lo e podemos revelá-lo – ou melhor, podemos forçá-lo a revelar-se a si mesmo – somente através da comunicação com ele, por via dialógica (BAKHTIN, [1929] 2010c, p. 292, grifos meus).

O autor sinaliza, portanto, apenas haver condições de compreender o outro e também de entender a nós mesmos a partir da comunicação por via dialógica. Na busca de autoentendimento, parece ser imprescindível que a voz do outro reverbere posições de concordância ou de discordância em nós; assim, instaura-se o diálogo. Diálogo em que se “ revela o ‘homem no homem’ para outros ou para si mesmo” (ibid. p. 292). Ao considerar que somente nos revelamos pela comunicação, o diálogo travado conosco mesmos se torna o condutor que nos leva a elucidar quem somos.

Embora a deliberação íntima seja de natureza dialógica, ela não está relacionada à presença de um “outro” físico. Na base do diálogo do discurso interior está a réplica ao dizer do outro, como ponto de vista mobilizador do “eu” posicionando-se por aceitação ou negação em relação a esse ponto de vista. Bakhtin conclui: “Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes sociais são o mínimo de vida, o mínimo de existência” (ibid., p. 293). Se, como defende este teórico, o diálogo está no centro do mundo das personagens de Dostoiévski, parece haver a mesma centralidade em relação às deliberações íntimas.