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Histórias de letramento(s): vozes sociais no saber formal e no saber informal

2.3 DIALOGIA NO(S) LETRAMENTO(S)

2.3.5 Histórias de letramento(s): vozes sociais no saber formal e no saber informal

83 Barros (2014, p. 38) argumenta que Bakhtin, ao estudar Rabelais, examina “a cultura popular filtrada por um intelectual renascentista”; já Ginzburg, debruçando-se sobre Menocchio, realiza a operação inversa, é “a cultura oficial que aparece filtrada pelo ponto de vista popular”.

As histórias de letramento(s), nas dimensões do saber formal e informal, deixam indícios nos textos elaborados e caracterizam a voz/as vozes sociais trazida(s) para a construção do objeto de discurso. A construção do objeto de discurso é marcada por uma junção de vozes sociais, das quais participam as diversas experiências sociais com as quais o escrevente foi se apropriando ao longo de sua existência. As experiências são sócio-históricas e podem ser ressignificadas por um se entrecruzar de vozes sociais, que podem ser conjuntivas ou conflitivas.

Embora o escrevente dialogue com diversas vozes sociais que circulam nas dimensões do saber formal e do saber informal por ele experienciados, temos como hipótese que a voz social que se sobressai na construção dos objetos de discurso é orientada a partir da relação com o(s) destinatário(s).

As vozes sociais também marcam a orientação argumentativa para o objeto construído e são oriundas de valores forjados pela sua formação sócio-histórica, incluindo a do seu(s) letramento(s). Contudo, as escolhas do escrevente não são neutras porque, ao se constituir pelo outro no discurso, está circunstanciado pelas imposições do processo de enunciação, concebido, nesta pesquisa, não apenas como a situação imediata de enunciação, mas por outras enunciações, relacionadas ao contexto sócio-histórico em que vive. Posso ressaltar que os enunciados surgem em estreita ligação com:

1) a época, o meio social, o micromundo possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom: obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração. 2) toda época, em cada uma das esferas tem tradições acatadas que se expressam

e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções, etc.

3) certo número de ideias diretrizes que emanam dos 'luminares' da época, certo número de objetivos que se perseguem, certo número de palavras de ordem, etc. 4) o modelo das antologias escolares que servem de base para o estudo da língua

materna (cf. BAKHTIN, [1959-1961] 2010a, p. 314, grifos meus).

Sob estes quatro aspectos podemos notar também a construção dos enunciados no corpus, as redações de vestibular. Há enunciados que servem de norma e são ressaltados nos textos por um percurso histórico do tema “trabalho”; ou pela crítica ao sistema capitalista, perpassados por vozes sociais da disciplina de História, Geografia, Sociologia; ainda pela crítica à exploração do trabalhador, sustentado pela voz social da disciplina de História, Geografia, Sociologia; e o enaltecimento do trabalho de arte é, por vezes, apoiado pela voz social da Literatura Clássica. Em relação à esfera, a universidade, as tradições são atendidas pelo escrevente ao citar obras, enunciados, palavras que são reconhecidos nesse espaço: “Os

lusíadas” (C15);85 “sinfonias de Beethoven” (C48); “Manifesto do Partido Comunista” (C87); “Marx e Engels” (C20); “pais do pensamento econômico, com Karl Marx, Keynes e outros” (C23); “Marx Weber e Emile Durkheim” (C14); “Olavo Bilac” (I36).86 O escrevente também acata a tradição da esfera ao expor determinadas palavras, entre elas podem-se citar o número de ocorrência dessas no corpus: tecnologia (79); capitalismo (37); educação/escola (36); alienação/alienado (6). Enunciados que aludem às ideias diretrizes que emanam dos

'luminares' da época são também observados nas redações: “Vive-se hoje em uma sociedade

baseada no dinheiro”, “ O homem, em busca desse poder, reconhecimento ou até apenas de sua sobrevivência, vende a única coisa que lhe pertence: seu tempo” (C02); “workaholics doentes por trabalhos, se tornam insociáveis, desconexos com a natureza e esquecem que a felicidade pode estar no ato presente, atemporal de trabalhar” (C03); “Trabalho, máquina e homem: inimigos ou aliados” (C08); “O advento da indústria ocasionou não só o progresso, como também a alienação do trabalho” (C20); “O trabalhador precisa ter uma visão mais ampla do seu papel na empresa” (C21); “Segundo a Bíblia, é o castigo divino sobre o homem” (C54); “Estimular a implantação de empresas – pequenas ou grandes, mas que deem emprego – apoiar o estudo, os cursos profissionalizantes” (C61).

Tais constatações parecem confirmar que os enunciados de um gênero discursivo têm certa organização imposta pela situação imediata, estabelecendo o que dizer e como dizer. Com isso algumas das vozes sociais apontam para o esperado, em uma situação de escrita como a que está em análise – o exame de vestibular. A hipótese é de que o escrevente, por projetar seu lugar – estudante na universidade –, ampara-se na voz social do saber formal como recurso argumentativo para discutir o tema “trabalho”.

Buscando evidenciar um diálogo com as questões teóricas apresentadas, em especial com a noção de “circularidade” (GINZBURG, 2006) nas dimensões do saber formal e informal apresento análises de duas redações. A disposição das redações em pares, lado a lado, tem o objetivo de construir uma análise que possibilite uma comparação enfatizando diferenças e semelhanças, o quadros e constitui, assim, um recurso metodológico para especificar a noção de circularidade na construção do objeto de discurso “trabalho”.

85 A letra C se refere às redações da capital São Paulo e o número a ordem no corpus. 86 A letra I se refere às redações do interior de São Paulo e o número a ordem no corpus.

Fragmento 3 Fragmento 4 A força das denominações

1§ O trabalho é enaltecido ou estigmatizado negativamente dependendo das necessidades e características de cada época [...].

2§ [...] Na Idade Média, gerida pela dinâmica senhores feudais – servos era engrandecido o ócio [...]. Já no Renascimento [...] o trabalho adquiriu características positivas com o aumento da burguesia que necessitando de trabalho para enriquecer conduziu alguns séculos mais tarde a Reforma Protestante que na figura de João Calvino enobrecia o trabalho e afamaria a máxima "o trabalho dignifica o homem."

3§ [...] no ano de 1848, Karl Marx e Friederich Engels lançariam o livro "Manifesto do Partido Comunista" que viria a dar novamente denominações ruins ao trabalho. Com a tese da mais-valia e da exploração do homem pelo homem, esses dois alemães quebrariam a corrente do "enobrecimento" através do trabalho e colocariam a doutrina capitalista, baseada no trabalho de uns e riqueza de outros, segundo eles em xeque.

4§ Atualmente, [...]. Alguns julgam ser atividade trabalhista necessária e engrandecedora, pois sem estas não existiriam as artes outros a julgam apenas como método ardil de exploração.

5§ A complexidade de limitar as qualidades ou defeitos da dinâmica trabalhista é proporcional a sua influência [...]. (C87)

A evolução do trabalho

1§ [...] a palavra trabalho vem adquirindo diversos significados de acordo com o tempo. Pode ser usada, portanto, como meio de expressão, realização ou instrumento opressor.

2§ Um quadro do Portinari, um poema de Drummond ou uma música de Bach são trabalhos diferentes [...] constituem-se um modo de expressão. [...] de exprimirem seus desejos, sentimentos, medos e prazeres. [...]

3§ Da mesma forma que representar expressão, a labuta pode virar sinônimo de realização. É o que encontram diversos profissionais que durante sua carga horária realizam as horas mais prazeirosas* do dia [...]

4 § Contudo além de adquirir conotações positivas trabalhar também pode adiquirir* a conotação negativa de oprimir. Isto ocorre diversas vezes quando funcionários perdem suas férias, folgas, prolongam seus horários e recebem um minúsculo salário. [...]

5§ Enfim, [...] é necessário [...] um direcionamento para áreas que proporcionem o prazer das pessoas para trabalharem. [...] maiorremuneração. [...]. (FE25)

No fragmento 3 e no 4, os escreventes partem de um mesmo projeto de construção do objeto de discurso “trabalho” e se dedicam a abordá-lo a partir dos diferentes sentidos que a noção adquire no tempo. Embora partam de um mesmo projeto, é a circularidade nas dimensões entre o saber formal e informal que organiza vozes sociais em cada redação.

O fragmento 3 traz vozes sociais relacionadas ao saber da história, mais particularmente relacionadas à disciplina curricular de História. A cada período histórico nominado e adjetivado, o objeto de discurso é enaltecido ou estigmatizado, com referências a

Idade Média (engrandecido o ócio); Renascimento (características positivas com o aumento da burguesia necessitando de trabalho para enriquecer), Reforma Protestante (enobrecia o trabalho e afamaria a máxima "o trabalho dignifica o homem"); doutrina capitalista (baseada no trabalho de uns e riqueza de outros, segundo eles em xeque). Com o intuito de expor a ideia

de trabalho atualmente, o escrevente elabora uma avaliação positiva a partir de sua interpretação do texto três da coletânea, de modo que o predicativo engrandecedor é atribuído somente ao trabalho de arte; na continuidade, contudo, ao retomar o diálogo com a voz social do saber

histórico disciplinar87 o escrevente volta a expor a estigmatização a outras formas de trabalho, nominando trabalho de método ardil de exploração.

Em relação ao exemplo 4 se observa um escrevente organizando vozes sociais a partir de outras esferas. Ao dividir o trabalho no tempo de acordo com seus diferentes significados – meio de expressão, realização ou instrumento opressor –, o escrevente passa a realizar associações. Para especificar o trabalho como meio de expressão, o escrevente passa a expor

vozes sociais de valoração do trabalho de arte e da literatura – o quadro do Portinari, um poema de Drummond ou uma música de Bach, estabelecendo a argumentação de que com esse

trabalho pode-se exprimir desejos, sentimentos, medos e prazeres. Na continuidade, labuta (trabalho)é caracterizada como realização. A favor dessa perspectiva, o escrevente traz uma

voz social da esfera familiar ou dos meios de comunicação, que são saberes difusos, expondo

exemplos em que profissionais durante sua carga horária realizam as horas mais prazeirosas*

do dia. Na terceira especificação, surge o trabalho como opressão e vem construído a partir de

outro exemplo ilustrando a situação de quando funcionários perdem suas férias, folgas,

prolongam seus horários e recebem um minúsculo salário. Com o intuito de finalizar a

exposição a partir das três conotações, o escrevente conclui com uma proposta construída a partir da voz social de um saber hedonista:88é necessário [...] um direcionamento para áreas que proporcionem o prazer das pessoas para trabalharem e maior remuneração.

Se analisarmos os dois exemplos a partir da perspectiva da circularidade entre os saberes formais e informais, observamos que o exemplo 3 apresenta um objeto de discurso construído pelas vozes sociais do saber histórico, em uma perspectiva escolarizada, com circularidade entre os saberes formais ao elaborar um objeto de discurso a partir dos períodos históricos. Em relação ao fragmento 4 as referências à pintura, à poesia e à música são expostos a partir dos saberes considerados significativos na esfera escolar pelas vozes da disciplina

ligadas às áreas de Ciências Humanas, particularmente da História, da Arte, da Literatura os

demais saberes, expostos por argumentos pelo exemplo, posso apontar como saberes informais “difusos”, tendo como possibilidade de serem disseminados por vozes dos saberes familiar ou

saber dos meios de comunicação. É a partir da circulação entre esses saberes que o objeto de

87 Chamo de “saber histórico disciplinar” os saberes que procuram contextualizar a trajetória do objeto de discurso “trabalho” em uma retrospectiva temporal, buscando assim justificar de onde surgiram determinados pensamentos sobre o trabalho. A voz desse saber histórico tem relação estreita com as disciplinas escolares da área de Ciências Humanas.

88 Denomino de “voz social de um saber hedonista” a busca constante da felicidade de modo que o trabalho também é visto como fonte de realização humana e de prazer.

discurso da redação 4 vai sendo elaborado.

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Os estudos do letramento trouxeram reconsiderações a respeito da escrita, algumas especificamente em relação à linguagem, outras relacionadas à dimensão social: i) há uma relação estreita entre os usos da língua e os espaços sociais; a escrita se configura contextualizada pelo espaço social, logo há dinamicidade e especificidades de usos; ii) toda prática de letramento está marcada pelo espaço social; iii) letramento deixa de estar centrado nas habilidades cognitivas e passa a considerar que o produto da escrita está ligado às experiências sociais de quem escreve.

Sendo o letramento relacionado ao social e ao histórico, posso dizer que as histórias de letramento podem mostrar o processo dialógico de certa “aquisição” das vozes sociais pelo escrevente. História de letramento que assinalaria não ser somente os anos de escolaridade que deixam marcas de letramento no sujeito, mas igualmente a ação de outros espaços sociais.

Entender o papel da escola no debate sobre letramentos significa entender que o escrevente dialogaria com saberes formais e informais e o resultado desse diálogo poderia, a exemplo do foco desta tese, estar nas vozes sociais trazidas para construir o objeto de discurso. A circulação entre os saberes traz, também, a possibilidade de conhecer a história de letramento do escrevente. Aquele entendimento e essa circulação são razões que me fazem seguir a proposta de Corrêa (2011) de partir do texto escrito e considerar que, no gênero produzido – as redações de vestibular–, evidencia-se uma perspectiva discursiva com resultados que vão além da situação imediata, destacando sua circulação por diferentes saberes em temporalidades diversas.