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Argumentação: réplicas ao auditório e a diferentes temporalidades

2.4 DIALOGIA NA ARGUMENTAÇÃO

2.4.2 Argumentação: réplicas ao auditório e a diferentes temporalidades

Abordei, na seção anterior, que o raciocínio analítico/demonstrativo de Aristóteles e o racionalismo de Descartes assentam-se na lógica formal, cuja estrutura parte de premissas verdadeiras e resultam em conclusões verdadeiras, visto que a passagem das premissas à conclusão é impessoal, escapa ao social, é somente estrutura e forma (PERELMAN, 1999, p. 304). Como estrutura e forma, cabe ao interlocutor compreender os encadeamentos e não intervir no modo como são elaborados. Todavia, características distintas afetam a argumentação, uma vez que o auditório e o tempo interferem na argumentação.

A presença do auditório é considerada desde a construção da argumentação, o orador deve “preocupar-se com ele” (ibid., p. 18), inclusive “interessar-se por seu estado de espírito”. Como se nota, as asserções trazem à tona o sujeito, visto solicitar ação entre indivíduos. Por essa razão a argumentação, para este estudioso, é considerada “obras de agentes” (ibid., p. 370).

No conceito proposto para argumentação, a Nova Retórica recomenda “técnicas que

permitem provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu

consentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 4, grifo meu). Considerando

97 No processo de reconstrução da retórica, deixa-se de considerar unicamente a arte de falar em praça pública e passa a se concentrar em outros discursos, como os textos impressos, visto que, mesmo no texto escrito, o orador “não está sozinho” está “condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 7). Da retórica tradicional se conserva a ideia de auditório evocado quando se pensa em discurso, todavia se distancia da ideia do auditório como “público ignorante” (ibid., p. 7). Desse modo, todo auditório passa a ser valorizado, pois o objetivo é agir sobre o interlocutor. Passa- se a entender um único locutor e a deliberação íntima como auditórios também, acrescido ao já conhecido auditório universal.

não serem as técnicas impositivas, o trecho citado franqueia certa liberdade aos sujeitos, justificando a defesa de uma teoria no campo da verossimilhança, do provável, do possível. Mesmo conhecendo aquele do qual se pretende a adesão, mesmo o orador selecionando procedimentos e recursos argumentativos específicos, o sucesso da argumentação terá relação com a aceitação do auditório.

Outro fator significativo na argumentação é a “intervenção do tempo” (PERELMAN, 1999, p. 369), logo, há “efemeridade” das ideias. Se no raciocínio analítico/demonstrativo há a tentativa da argumentação ser isolada do “tempo”, há nesta outra abordagem o esforço “no sentido de univocidade”, de “se liberta[r] da linguagem”, de supressão da “influência do símbolo sobre o simbolizado”. Proposições que levam a refletir sobre a pretensa tentativa de fixidez da linguagem como representação, situação revelada na possibilidade de os signos da língua se referirem aos objetos, às ações, ou aos conceitos tais quais estão no mundo, sem a interferência do tempo. A representação dos elementos do mundo na propriedade referencial da linguagem, como definido por Jakobson (1987). Em contrapartida, a argumentação é “linguagem viva, com tudo o que esta comporta de tradição, de ambiguidade, de permanente evolução” (PERELMAN, 1999, p. 379), implica comunhão de mentes, tomada de consciência comum do mundo. De acordo com o autor, por estar inserida em uma comunidade social e na história, faz parte de uma herança comum a toda uma civilização, mesmo com inumeráveis variações de acordo com o uso que os interlocutores fazem dela. Pode-se inferir que a visão de linguagem a perpassar a construção da argumentação está em um movimento temporal e intersubjetivo visto considerar quem diz e para quem diz como constitutivos do social e do histórico.

A noção de argumentar, nesta tese, é considerada um processo de construção do objeto de discurso “trabalho”, em que são elaborados argumentos em um movimento a réplicas do já- dito em movimentos em diferentes temporalidades. Argumentar implica reconhecer a construção da argumentação na comunidade de espíritos (seção 2.4.4). Mudando-se o auditório, altera-se a argumentação para haver um discurso eficaz, assim, o falante/escrevente a partir da avaliação do auditório molda os enunciados. A exposição acerca do tempo e da intersubjetividade compondo a argumentação reforça ainda mais o princípio da dialogicidade em Bakhtin e o Círculo abordados na seção 2.1. A argumentação, sob esse aspecto, constitui- se como respostas, réplicas a outros enunciados que já fizeram parte do letramento a que o escrevente mostra ter/ter tido acesso.

Assumindo-se o princípio de a argumentação ter por objetivo alcançar a adesão de um auditório pelo uso da palavra, ter certo conhecimento de quem se pretende conquistar é condição prévia de qualquer argumentação eficaz, de acordo com Perelmane Olbrechts-tyteca (2005). Mas, como apresentei, no início deste capítulo, o auditório não se refere somente àquele(s) que está(ão) em situação presencial, ou seja, não corresponde necessariamente à audiência, à presença física.

Para que se possa compreender melhor a afirmação, ilustro-a com situações de interlocuções: um senador, na tribuna do Senado, ao se dirigir ao presidente, pode procurar convencer, além dos ouvintes, a opinião pública; um economista, ao conceder uma entrevista, tem como auditório, além do jornalista, os leitores (telespectadores, ouvintes) específicos daquela mídia. Os exemplos conduzem à afirmativa de que o auditório é “uma construção do orador” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.22, como também percepção de uma complexidade na composição de um auditório.

Logo, a complexidade na definição de um auditório se instaura também no corpus em análise nesta tese. Embora o evento vestibular especifique para quem o argumento é direcionado – quem escreve (vestibulando), para quem (para a universidade) – é relevante observar, como destaca Corrêa, que nesse evento o escrevente “se confronta com um conjunto menos aparente de solicitações pessoais e institucionais, que vão desde aquelas referentes à auto imagem até aquelas relativas às expectativas familiares quanto a seu desempenho e às exigências de adequação de seu registro discursivo à modalidade escrita da língua padrão” (CORRÊA, 2004, p. XVIII).

Ao se confrontar com essas solicitações, diferentes auditórios são construídos pelo escrevente. Estabelecida essa premissa, defendo a hipótese de serem estabelecidas diferentes

comunidades de espíritos na escrita das redações de vestibular, as quais apresento nas análises.

Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) conhecimentos dos campos da Psicologia e da Sociologia auxiliam na construção do auditório; enquanto a primeira investiga o comportamento do ser humano pelos fenômenos psíquicos, mais ligados ao indivíduo, a segunda compreende o comportamento atrelado ao social – “as opiniões de um homem dependem de seu meio, de seu círculo, das pessoas que frequenta e com quem convive” (ibid., p. 23). São opiniões não ligadas estritamente a escolarização, cujo aprendizado ocorre pela convivência social, pela experiência e pela percepção das situações cotidianas, os quais

possibilitam ao orador compor o auditório. Para o Círculo de Bakhtin, contudo, a construção do auditório está ligada à “área da atividade humana” em que se realiza o “gênero do discurso”; tendo em vista que, “em cada uma das áreas da comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o determina como gênero” (BAKHTIN, [1959-1961] 2010a, p. 322).

Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) a construção de um auditório implica assumir haver muitas vezes somente o conhecimento “presumido” deste, estabelecido a partir de hipóteses a respeito de quem se pretende conquistar,99 “o conjunto daqueles que o interlocutor quer influenciar” (ibid., p. 22). Para estes dois autores o auditório é presumido pois ele não é de fácil identificação, visto ser sua composição heterogênea, como nos exemplos citados anteriormente. Como um mesmo auditório pode reunir pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções, os autores consideram poder o orador ter pontos de partida diversos; dentre eles situar o auditório pelos seus marcos sociais: “Mesmo quando o orador está diante de um número limitado de ouvintes, até mesmo de um ouvinte único, é possível que ele hesite em reconhecer os argumentos que parecerão mais convincentes ao seu auditório; insere-o então, ficticiamente por assim dizer, numa série de auditórios diferentes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 25).

Argumentação e auditório passam a estar interligados na Nova Retórica. Desse modo, os autores reforçam ocorrer uma argumentação eficaz se esta conseguir aumentar a intensidade de adesão para desencadear nos ouvintes a ação pretendida ou, pelo menos, crie neles a disposição para a ação. Sendo assim, a eficácia da argumentação está ligada às projeções feitas pelo orador do seu auditório; por isso, para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), conhecer o interlocutor é condição prévia de qualquer argumentação, visto que para eles o importante na argumentação não é saber o que o orador considera verdadeiro, mas qual é o parecer daqueles a quem ele se dirige.

Os autores reconhecem que a “variedade de auditórios é quase infinita” (ibid., p. 30), no entanto, expõem a natureza de três tipos: universal, de um único ouvinte e deliberação íntima. Eles serão aqui descritos, na próxima seção, e servirão de subsídio para o posterior trabalho

99 A análise que Volochínov ([1930], 2013) conduz em Almas mortas, de Nikolai Gógol, sobre os enunciados de mesmo tema (a compra de almas mortas) elaborados pela personagem Tchítchicov é significativa para observar a reelaboração do objeto de discurso a partir de diferentes auditórios (Cf. A construção da

com as análises das redações, quando serão observadas as peculiaridades dos argumentos para os diferentes auditórios aos quais elas se dirigem.

Antes de especificar os tipos de auditórios dos autores citados, retomo algumas especificações referentes ao auditório para Bakhtin e o Círculo. Para esse grupo, este “outro” é nominado de “auditório social” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 122), e a orientação que atravessa a teoria direciona a ver a enunciação construída a partir de um destinatário, sempre social. Tal constatação parece confirmar a não especificidade dos tipos de auditório na teoria bakhtiniana − com exceção dos enunciados monológicos de tipo emocional, que são discutidos em diversas obras do Círculo, mas sempre com intuito de especificar uma organização semelhante ao diálogo com outro auditório. Desse modo, ao especificar a tipologia de auditório segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), aponto elos de diálogo com a teoria do Círculo, em especial com as considerações dos enunciados monológicos e/ou de deliberação íntima.