• Nenhum resultado encontrado

Alternativas pedagógico-didácticas ao paradigma redaccional

CAPÍTULO I – Para uma concepção de Didáctica de Línguas e da Escrita

4. A Didáctica da Escrita – contributos para uma disciplina multirreferenciada

4.2. Alternativas pedagógico-didácticas ao paradigma redaccional

trabalho didáctico mais favorecedores da prática de escrita, já nos anos 70 se desenham e experimentam algumas alternativas pedagógicas para a produção verbal por escrito. É o caso da pedagogia Freinet e do texto livre (Freinet, 1976), que conjuga a expressão escrita espontânea com outras formas de expressão, como a música, a expressão plástica, funcionando como motivação para a escrita e como incitação da necessidade de escrever. Esta prática valoriza a criança como escrevente, o feedback e a escuta de textos pelo grupo, a exploração das dimensões materiais da escrita, pela sua ligação a outras actividades, mas abstém-se de uma formalização acerca da teoria dos textos e da escrita. Tem, no entanto, o mérito de levar a escrita para a sala de aula, vincando uma asserção talvez aceite, mas pouco em prática na escola – a de que se aprende a escrever, escrevendo, numa prática sistemática.

Se a pedagogia do texto livre põe a tónica na produção escritural espontânea e subjectiva, outras práticas sincrónicas acentuam o prazer da actividade de escrita, pela ênfase atribuída ao seu lado recreativo e (re)criativo,

proliferando obras e números de revistas consagrados a este tipo de prática (cf. síntese em Reuter, 1996b, pp. 32-34). A experimentação de jogos de escrita, jogos poéticos a partir de textos lidos, construção de caligramas, acrósticos, quer individualmente quer em grupo, permitem “criar” num ambiente lúdico, que contraria a angústia associada à obrigatoriedade de salvaguardar a correcção gramatical. Estas actividades são, no entanto, vividas como “escapadelas” lúdicas à aula “dura” de língua, também porque colocam, com pertinência, a questão de não se saber muito bem avaliar as criações da criança-poeta.

Nos anos 80, outra prática apresenta opções de trabalho com a escrita, deslocando a atenção anteriormente posta no ensino para a aprendizagem, postulando que se aprende, realizando actividades que decorrem da tentativa de resolução de problemas – pedagogia do projecto. Esta pedagogia sobrepõe à planificação prévia habitual do professor a negociação na turma e o estabelecimento de um “contrato”, tentando, assim, dar resposta à motivação, por vezes difícil de gerar. Este modo de trabalho didáctico surge no quadro de um projecto de escrita que faça sentido para os alunos (Jolibert, 1994a, 1994b) e que supõe escritas longas, que surgem na diacronia dos problemas a ultrapassar e que se socorre, necessariamente, de escritas variadas, de reescritas e do apoio aos grupos (Ruellan, 2000). Estamos, claramente, num outro patamar didáctico em que as situações escolares de produção de texto não são percebidas, apenas, como lugares de aplicação de conhecimentos relativos ao funcionamento da língua. Porém, a imprevisibilidade e a abundância de referenciais teóricos necessários à implementação deste modo de trabalho bem como a gestão do espaço, do tempo e a monitorização dos grupos requerem uma grande experiência pedagógico- didáctica e preparação científica da parte do professor (cf. síntese em Reuter, 1996b, pp. 25-28).

Outros dispositivos complexos de ensino-aprendizagem da competência de escrita vêm sendo propostos, aliando à diversificação textual a diferenciação pedagógica e pugnando por desenvolver, nos alunos, uma determinada competência de acção langagière (Bain, 1999). É o caso da sequência didáctica (Pereira,

2000c), cujo modelo vem sendo teorizado e trabalhado em contextos da prática de sala de aula, com maior ou menor fidelidade ao modelo original (Schneuwly, Dolz, & et al., 2004). Esta modelização didáctica assenta, essencialmente, na promoção e acompanhamento da actividade processual de escrita, implicando etapas e tarefas orientadoras da planificação, textualização e reescrita/revisão. O objectivo principal é o de escrever para aprender a escrever um género textual, inscrito numa situação de comunicação, dirigido a destinatários autênticos. O princípio de actuação didáctica é o de programar um trabalho sobre a escrita regulado pela avaliação – i) de uma produção inicial, susceptível de fornecer dados sobre as competências que os alunos já dominam na escrita desse género bem como sobre as dificuldades que manifestam; ii) das produções intermédias e do progresso dos alunos ao longo de diversos módulos didácticos, concebidos para trabalhar os aspectos em que os alunos revelaram insuficiências, problemas ou desconhecimentos; iii) da produção final, plasmando-se em aspectos versados nos módulos programados (Koehler, Nidegger, Revaz, Riesen, & Wirthner, 2001).

A concepção e a experimentação de sequências didácticas têm levado a orientações teóricas e metodológicas para o ensino da escrita sustentadas em acções da prática e nos efeitos observados nos textos dos próprios alunos (Graça & Pereira, 2006, 2005; Pereira & Graça, 2005; Pereira, 2007b) e nos professores (Graça & Pereira, 2008, 2007) e têm demonstrado a validade de um modelo de ensino congruente com a complexidade do acto de escrever, de ensinar e de aprender a escrever.

Subjacente a estes modos de implementar o ensino da escrita está uma concepção “oficinal” do trabalho prático e orientado que o ensinar a escrever requer. De facto, nos anos 80, surgem as primeiras experiências de ateliers ou oficinas de escrita, em França, inspiradas no movimento Freinet, de renovação e transformação dos métodos escolares, e que tiveram como principais mentoras Elisabeth Bing e Anne Roche. Ainda que mais ligados, na sua origem, à escrita como passatempo e à criação literária ou poética, os ateliers de escrita, de que J. Lafont-Terranova traça a história (1999), tiveram uma rápida propagação em

vários contextos, incluindo o escolar, pondo em causa o ensino tradicional da redacção.

As oficinas de escrita, apesar das formas heterogéneas que assumem, firmam-se no postulado de que a escrita se define como um processo de escrita e de reescrita, objecto de trabalho que requer tempo, dispositivos e instrumentos precisos, em ruptura com a ideologia da escrita como inspiração ou do escrever “de jacto” à primeira – “premier jet”(Reuter, 1996b). Ou acentuando o pólo criativo/inventivo/lúdico – ou seja, a exploração dos recursos da língua com finalidades lúdicas ou de experimentação de trilhos literários – ou o pólo psíquico/curativo – usando a escrita como terapia – ou o pólo didáctico/textual – ou seja, de domínio da construção do texto e de regras como componentes adjuvantes do trabalho escritural –, ou conjugando um pouco cada uma destas vertentes ou acentuando uma vertente “epistémique et citoyenne” (Neumayer & Neumayer, 2004), as oficinas privilegiam o papel do grupo no desenvolvimento da escrita individual, solicitam o investimento do Sujeito e outorgam grande relevância à exploração de elementos e de comportamentos pedagógico-didácticos susceptíveis de criar efeitos desbloqueadores e de suporte da actividade de escrita. “Faire de l’écriture un bien partagé”, de modo a que cada Sujeito se sinta “actor” no processo de escrita e não anulado pela concepção de que a escrita é restrita a alguns com um “dom”, como advogam Odette e Michel Neumayer (2004), é um princípio que poderemos considerar comum às oficinas de escrita em geral.

Em Portugal, a questão das oficinas de escrita assoma, pela primeira vez, no Programa de LP para o 3º Ciclo do Ensino Básico (EB), em 1991 (Ministério da Educação, 1991a, 1991b), recomendando a realização de actividades de aperfeiçoamento de texto na aula, mais produtivas para a aprendizagem da escrita do que, apenas, a habitual correcção e classificação efectuadas somente pelo professor. Em 2003/2004, nos Novos Programas de LP do Ensino Secundário, assume-se, de forma explícita, a necessidade de trabalhar a escrita em moldes oficinais e laboratoriais, no sentido de os alunos poderem trabalhar os textos, contando com a mediação de professor e colegas, para os ajudar na reflexão que

acompanha as decisões a tomar sobre as melhores formas de escrever, em cada situação. Firma-se, assim, no texto programático:

“A prática da oficina de escrita visa possibilitar a interacção e a interajuda, permitindo ao professor um acompanhamento individualizado dos alunos, agindo sobre as suas dificuldades, assessorando o seu trabalho de um modo planificado e sistemático. A oficina de escrita implica um papel activo por parte de professores e alunos que, através do diálogo e da reflexão sobre o funcionamento da língua, se empenham num processo de reescrita contínua, tendente ao aperfeiçoamento textual e ao reforço da consciência crítica.” (Ministério da Educação et al., 2002, p. 23)

A problemática das Oficinas de Escrita assume, “com esta referência directa no texto programático, outra visibilidade, que produz, inclusive, um efeito de propagação deste dispositivo de ensino-aprendizagem da língua escrita para outros níveis de ensino” (Pereira & Moreira, 2007). A defesa do interesse das oficinas de escrita como modo de (ensinar a) escrever em sala de aula é levada a cabo quer em contextos formativos (Vilas-Boas, 2003a, 2003b) quer investigativos, através da criação e/ou análise de oficinas específicas (Silva, 2007; Silva, Marques, & Ferreira, 2005; Silva, 2005b) ou da síntese e divulgação de experiências oficinais em vários contextos educativos (Pereira & Moreira, 2007).

Estes novos modos de perspectivar o ensino de escrita têm sido suportados por investigações que confirmam e explicitam a vantagem de o trabalho com a escrita ser colaborativo, em diferentes níveis de ensino, desde o 1º ciclo do EB ao Ensino Superior, quer em ambientes presenciais (Ferreira, 2005; Gomes, 2006; Santana, 2007) quer em ambientes on-line (Loureiro, 2007; Pinho, 2008) e apoiado por instrumentos didácticos que auxiliem os escreventes, desde os mais novos, sobretudo numa das fases do processo escritural em que parecem ter mais dificuldades – a revisão (Aleixo, 2005; Allal, Chanquoy, & Largy, 2004; Rocha & Val, 2003b) –, aos mais adultos, em contextos de formação superior, na fase de preparação dos textos, que inclui a tomada de notas, e durante o processo de construção textual, para que os alunos vivam a escrita como modo de construção do conhecimento e de um discurso próprio (Loureiro, 2007; Pinho, 2008). A

possibilidade de se aprender a escrever, com os outros – colegas e professor –, verbalizando sobre os procedimentos escriturais e interagindo na resolução dos problemas que a geração textual comporta, tem sido evidenciada por vários estudos feitos com alunos de níveis de ensino distintos, constituindo-se em referenciais para a prática da sala de aula (Barbeiro, 2003; Barbeiro & Pereira, 2007; Myhill & Jones, 2006; Negro, Louis-Sydney, & Chanquoy, 2006; Silva, 2005a), pois demonstram como a instituição de rotinas de revisão e de aperfeiçoamento de textos dos alunos, inscritas em sistemas pedagógicos cooperativos, propicia níveis superiores de reflexão sobre a escrita (Ruellan, 2002). Esta capacidade reflexiva concorre, por sua vez, para a apropriação de saberes e de competências no domínio da metatextualidade e da metalinguística (Aleixo & Pereira, 2008; Barbeiro, 1999).

Quer a produção escrita mais expressiva e lúdica, numa lógica mais “doméstica”, quer a produção de textos inseridos numa lógica mais “industrial”, para apropriação de técnicas e de modelos (Pereira, 2004b) – ambas assentes numa racionalidade a que presidam os diferentes géneros textuais (escolares, pessoais, sociais, profissionais, literários…) – darão origem a práticas integradoras que reúnam a acção sobre o processo de escrita e a acção sobre o contexto dos escritos (Barbeiro & Pereira, 2007, p. 31), atendendo e treinando escritas com funções distintas: escrever para aprender a escrever determinados géneros textuais – sequência didáctica; escrever para aprender mais sobre um assunto – ciclo de escrita (Barbeiro & Pereira, 2007; Pereira & Pinto, 2006); escrever, em cadernos de escrita individuais, para criar e desenvolver uma relação pessoal positiva com a escrita (Aleixo & Pereira, 2007, 2006; Barbeiro & Pereira, 2007).

A profusão destes modos de trabalho pedagógico-didáctico com a escrita, alternativos à aula-tipo de língua, vêm atestar, portanto, o reconhecimento unânime de que a aprendizagem da escrita é difícil e não se processa com a naturalidade com que se aprende a falar (informalmente); na verdade, a especificidade da ordem do escritural, de que falaremos seguidamente, reclama uma abordagem didáctica ajustada a essa complexidade.