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Práticas de linguagem de alunos: referencialização e modalização

CAPÍTULO II – A noção de “relação com” – afiliações disciplinares e

2. A relação com o saber em Ciências da Educação

2.6. Práticas de linguagem de alunos: referencialização e modalização

Neste momento, vamos interessar-nos mais detalhadamente pelos resultados da análise das práticas de linguagem dos alunos evidentes nos balanços de saber, constantes do estudo que referimos no ponto anterior – uma tarefa nova, para a qual os alunos não dispunham de nenhum modelo, o que implicaria a interpretação da situação – falar de quê, produzir que texto, usar que palavras?... A atenção dos investigadores às práticas de linguagem deve-se a duas razões essenciais: em primeiro lugar, uma pesquisa que atribui à questão do “sentido” um lugar central encontra, inevitavelmente, a questão da linguagem. Com efeito, o sentido que os Sujeitos atribuem ao mundo não é, apenas, elaborado na sua relação com os outros, mas também pela linguagem. Pôr o mundo, a escola, a sociedade em palavras não é só dizer como as coisas são, mas como são para o Sujeito, produzindo categorias, hierarquias, relações – uma organização que já será, ela própria, construção de sentido. De facto, a construção simbólica do mundo através da linguagem é, indissociavelmente, construção do Sujeito. Em segundo lugar, a questão do domínio da língua é central nos debates sobre o insucesso escolar; ou seja, se é evidente a relação entre linguagem e fracasso escolar, a natureza e funcionamento dessa relação não foram verdadeiramente elucidadas, daí a necessidade de construir conhecimento nesse âmbito.

Na verdade, a este respeito tem sido enfatizada uma explicação centrada nas deficiências linguísticas dos jovens em insucesso escolar – os seus problemas

de aprendizagem estariam ligados a lacunas lexicais, sintácticas, a uma linguagem pobre e oralizante. Esta concepção conduz a pedagogias de compensação, empenhadas em fornecer, ao aluno, os conhecimentos que lhe faltam. Porém, estas pedagogias têm uma eficácia muito limitada, se tivermos em conta a sua restrição a tarefas escolares e, mais ainda, a exercícios da disciplina de língua (Bucheton & Chabanne, 2002). Na verdade, a pedagogia compensatória não melhora o uso da linguagem noutras disciplinas nem na vida nem resolve o problema do fracasso fora do âmbito de tarefas específicas. Além disso, esta concepção padece, também, de um problema teórico – os “problemas de linguagem” dos maus alunos não se resolvem, apenas, com a aplicação de regras linguísticas, mas aprendendo a dominar determinados conteúdos na escrita de um género textual concreto, vinculado a uma situação de comunicação específica. Assim, falar e escrever são práticas de linguagem dum Sujeito específico, não só dentro da escola. A prática de linguagem é, portanto, uma prática social na medida em que, por exemplo, contar, explicar, argumentar faz tanto mais sentido na escola quanto o conhecimento mobilizado nesses actos de linguagem for utilizável fora da escola. Produzir linguagem não é só dizer algo, mas fazer, agir sobre o outro, e ser, enquanto forma de expressão e de acção própria de um Sujeito. O que está aqui em causa é uma diferença entre língua, como sistema, e linguagem, como actualização desse sistema numa situação e, portanto, a capacidade de o Sujeito ser bem sucedido numa prática de linguagem inscrita socialmente (Bronckart, 1996). Isto significa que a pedagogia da língua(gem) tem de ajudar o aluno a construir uma relação com a língua(gem) indispensável para produzir textos escritos e discursos orais eficazes, na escola, no mundo, na vida.

Estas premissas reclamam uma leitura positiva das práticas de linguagem dos jovens nos balanços de saber, de uma forma que não se preocupe em enfatizar as falhas linguísticas, mas que permita identificar fenómenos e processos que aclaram a compreensão da relação com o saber. Estudar a linguagem é, portanto, estudar a relação do Sujeito com o mundo em função do seu lugar social e da sua história pessoal.

A análise dos balanços permitiu encontrar diferenças de ordem cognitiva e linguística, mas também identitária e social, nomeadamente ao nível dos domínios que se seguem: i) o objecto de discurso (saberes evocados); ii) género produzido e sua extensão (relato, lista, análise com argumentos…); iii) o que se faz com a linguagem (responder à questão, reflectir, argumentar…); iv) a maneira como os Sujeitos aparecem nos seus textos (o lugar do Eu e o tipo de verbos de que o Eu é Sujeito); v) a forma como o mundo social está ou não presente; vi) processos cognitivos postos em prática (categorização, objectivação, especificação ou generalização).

Neste contexto, interessa-nos relevar duas formas observadas de relação com a linguagem – uma, em que a linguagem é referencialização; outra, em que a linguagem é modalização7. Os alunos com dificuldades na escola referem, nos balanços escritos, saberes não escolares, saberes-fazer individuais ligados a acções do quotidiano; relativamente aos saberes escolares, mencionam, de forma mais ou menos tautológica e genérica, o ler, o escrever e o contar, reduzindo-os ao seu estatuto institucional; referem, ainda, os saberes normativos que a escola impõe. Os alunos bem sucedidos no universo escolar citam os saberes disponibilizados pela escola, as disciplinas escolares e as aprendizagens heterogéneas que lhes são proporcionadas, encarando-as como conteúdos próprios, mediadores de aprendizagens e doutros conhecimentos.

A forma como os “bons” e os “maus” alunos respondem à injunção de balanço de saber também é diferenciada. Os bons alunos elaboram textos mais longos, fazendo uma reflexão geral sobre o saber e as fontes de conhecimento; o discurso é mais variado, recorrendo a nominalizações, jogos de palavras e outros recursos que evidenciam mecanismos linguísticos de maior generalização, distanciamento ou de maior personalização. Os textos dos maus alunos são minimalistas, repetem a estrutura “aprendi a” e usam um léxico do quotidiano uma vez que, aliás, essas actividades do dia-a-dia são o seu principal tema. Estes

Sujeitos enumeram, listam as actividades e os saberes, fazendo um uso referencial da linguagem; fazem descrições de si próprios, cronológicas ou não, polarizadas em torno das proposições “gostava da escola”/ “já não gosto da escola”. No entanto, estas descrições e relatos são feitos de forma tendencialmente objectiva, sem implicação como Sujeito (de saber). Já os bons alunos recorrem a uma linguagem mais modalizada, em que o Eu está mais presente e se autoriza a opinar, avaliar, apreciar, comentar, reflectir… Digamos que os maus alunos dizem o que aprenderam; os bons alunos fazem um discurso sobre o que aprenderam; os primeiros usam a linguagem como referencialização do mundo; os segundos usam a linguagem como modalização e (re)construção do mundo e forma de ser e de lhe atribuir sentido.

Ora, estes dados revelam, quer ao nível identitário quer epistémico, diferentes processos inscritos na relação com o saber. Os maus alunos, por manterem uma relação muito “profissional” (no sentido de manter a distância que separa o objecto do afecto) com a escola, que cumprem regras e executam tarefas para passar de ano, não se autorizam a comentar, a fazer apreciações nos seus textos. A autonomia de iniciativa verbal surge-nos, assim, ligada estreitamente à forma como o Sujeito se autoriza a usar a linguagem, às formas como está habituado a usá-la. Os balanços de saber manifestam, também, processos epistémicos, nomeadamente uma relação “binária” com o saber, em que os maus alunos declaram “eu sei” ou “não sei”, sem terem em conta a duração contínua dos processos de aprendizagem e a sua incompletude e relatividade. Além disso, para os maus alunos, declarar “eu aprendi” é praticamente sinónimo de afirmar “eu sei fazer”; assim sendo, é pouco possível que haja muitos saberes escolares que se encaixem neste critério. Na realidade, para estes alunos, aprender é ser activo numa situação e não apropriar-se de um objecto de saber; a imbricação do Eu numa situação é, portanto, o processo epistémico mais comum nos alunos com dificuldades. Para os bons alunos, a escrita de um balanço de saber foi um pretexto para tomar a palavra, para existir como Sujeito, dirigindo-se a um leitor, para reflectir, avaliar, ajuizar, argumentar… – actividades que concretizam através

da linguagem. O manuseio de determinados recursos linguísticos que substanciam estes actos de linguagem modalizada atestam a existência de uma “cultura escrita” que torna possível a construção de um pensamento escrito, tratando informação, classificando, hierarquizando. Estes alunos, em termos epistémicos, exibem um processo de objectivação-denominação dos saberes, revelando que esses saberes têm valor por si mesmos e permitem descobrir mais sentidos da vida e da própria identidade.

Noutra pesquisa feita no Brasil, foi pedido a jovens dos 13 aos 17 anos, frequentadores de escolas públicas e que vivem em bairros populares, que dissessem, por escrito, a um ET, tudo o que aprenderam, onde aprendem, o que é importante aprender (Charlot, 2001b, 2001c). Esta solicitação desencadeou um grande número de referências a saberes práticos – aprendizagens ligadas à vida quotidiana, relacionais, afectivas, pessoais – ou seja, discursos sobre a experiência pessoal vivida, com uma notória ênfase nos valores do respeito, de certas regras e leis, numa exaltação evidente das aprendizagens morais que a vida permite. Nestes textos, os jovens confessam-se desamparados pela escola; esta aparece, à semelhança de resultados obtidos noutro estudo em contexto português (Lopes, 1997), sobretudo como o lugar de encontro com os colegas, um lugar de socialização. No entanto, sobressaem as referências à importância de ler, escrever e contar na vida “futura”. O pouco sentido atribuído aos conhecimentos curriculares contrasta com a preferência e a maior importância atribuída a valores ético-morais; aprender, para estes jovens, é, fundamentalmente, aprender “coisas da vida”. Resultados semelhantes foram encontrados num estudo com alunos frequentadores de “lycées professionnels de banlieue” (Charlot, 2001a).

Um dos principais problemas encontrados nestes jovens prende-se, justamente, com a diferença entre as experiências e as aprendizagens do quotidiano e as escolares; esta diferença reside, sobretudo, no facto de que as primeiras são desencadeadas principalmente através de trocas orais – razão prática – e as segundas, em universo escolar, moldadas pelo escrito e pela escrita – razão escolar (Lahire, 2008, 1993) – e “a apropriação da modalidade escrita da língua

pode, assim, ficar comprometida pela dificuldade de transição entre dois discursos: o do lar e o da escola” (Sim-Sim, 1995, p. 202). No entanto, as inúmeras situações informais de aprendizagem, a importância do agir nos processos de aprender (a fazer) – marcados pela oralidade – não podem ser, simplesmente, ignorados no universo escritural escolar. Estes jovens vêem, no acesso à escrita, um recurso de “luta pela vida” – ora, o conhecimento deste sentido interpela a acção escolar de um modo acutilante, na medida em que a escola é desafiada a preparar os alunos para uma vida sociocultural em que a escrita é dominante.

Noutro estudo com crianças das classes populares também vimos como estão habituadas a uma relação prática com o saber, com o mundo, com a linguagem – aprendem e compreendem para agir (Sawaya, 2005); enquanto que, na escola, compreendem para compreender, a um nível mais abstracto. Produzir textos implica, também, uma relação reflexiva com a língua, que as crianças habituadas a formas orais não possuem naturalmente, mas podem vir a possuir se forem feitas intervenções escolares com esse objectivo.

De facto, sentir-se integrado na escola e na sociedade é, também, ingressar, de algum modo, numa cultura escrita. Estes estudos demonstraram que os jovens aprenderam muitas coisas antes de entrar na escola e continuam a aprender fora da escola. Já construíram relações com o aprender, com o que significa aprender, com as razões pelas quais vale a pena aprender, com aqueles que lhes ensinam as “coisas da vida”; já aprenderam diversas competências cognitivo-linguageiras, frequentemente subsumidas na expressão “maîtrise de la langue”, ainda que sejam passíveis de complexificação e desenvolvimento (Bouveau & Rochex, 1997). As relações com a escola não se constroem a partir do nada, mas a partir de relações com o aprender que os jovens vão construindo. Não se vai à escola para aprender, mas para continuar a aprender. Portanto, a escola tem de se assumir na sua especificidade, que é a possibilidade de dar ao aluno mais do que aquilo com que convive habitualmente. O que se aprende na escola também permite dar sentido ao mundo, a si, às relações com os outros, à vida. Aprender na escola permite compreender melhor a vida, é uma maneira de viver, uma abertura a novos

mundos onde também se encontram o sentido, o prazer e o Outro e onde o Sujeito se pode encontrar a si mesmo. O que nos parece é que nem os jovens nem a escola estão a saber gerir a especificidade da instituição escolar numa dinâmica de continuidade/descontinuidade entre as vivências extra-escolares e escolares, a ordem oral e a escritural. Parece estar a acontecer uma ruptura/metamorfose (Mosconi, 2008), sem continuidade, entre os dois mundos – o escolar e o extra- escolar. É possível entrar na dialéctica entre continuidade e ruptura, tirando partido das especificidades e da heterogeneidade na escola para aí aprender, ao mesmo tempo, a vida, se forem reunidas condições pessoais, escolares, sociais conducentes a um processo de intersignificação (Rochex, 1998), isto é, de compatibilização de sentidos juvenis e escolares que não se anulem, mas que se complementem.