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CAPÍTULO II – A noção de “relação com” – afiliações disciplinares e

3. A “relação com” em Didáctica

3.2. A relação com a escrita

3.2.1. Generalização ou especificação?

Colocamos a questão da generalização ou especificação da noção de “rapport à” pois a noção de relação com a escrita – embora, como vimos, adopte elementos de definição da noção que lhe está subjacente – vem propor uma especificação do saber, o que se distingue das abordagens anteriores, focalizadas no estudo da relação com o saber. Sob o ponto de vista teórico, os estudos da relação com o saber consideravam o saber em geral; do ponto de vista pragmático, os resultados encontrados, nomeadamente as constelações ideal-típicas que descrevem a relação dos Sujeitos com o saber (Charlot et al., 1992), não focam determinadas actividades e tarefas através das quais a relação com o saber poderia ser objecto de reorientação e inflexão. Nesta sequência, cremos, como C. Barré-De Miniac, que “on risque alors de retomber dans des recommandations de type pédagogie générale qui ne pénètreraient pas au coeur des apprentissages propement dits des différents types de savoirs“ (Barré-De Miniac, 2008, p. 19). Por isso, na linha de uma Didáctica de duas faces – “intervenção e teoria” – a pensar em estreita articulação, para caracterizar a relação com é preciso ter em conta quer os Sujeitos quer os saberes e saberes-fazer considerados especificamente.

B. Daunay (citado por Barré-De Miniac, 2008, p. 19), reconhecendo a generalização inerente à noção de relação com o saber – dado que se trata de uma relação com o mundo, com a linguagem… –, argumenta, no entanto, que uma especificação é possível e, mesmo, desejável, sobretudo quando, no campo da Didáctica, interessa recolher dados empíricos. Esta é, acima de tudo, uma posição

pragmática que abre caminho à possibilidade de investigação da relação com a escrita, de modo específico, ou de outros subdomínios da DL.

Outro argumento possível a favor da especificação da noção de relação com é o forte indício de que a escrita não constitui, em si, um núcleo central de representações, mas um elemento periférico de um núcleo central cujo objecto será a escola12 (Barré-De Miniac, 2000, p. 63). Para percebermos o alcance desta proposição, temos de explanar sucintamente o significado de “representação”, um conceito migrante entre a Sociologia, a Psicologia Social, as Ciências da Linguagem e a Didáctica (Pinto, 2005)13 , e de “núcleo central” e “elementos periféricos das representações”, conceitos estes importados do quadro teórico e metodológico da Psicologia Social.

Alguns dos fundamentos que legitimam o recurso à noção de representação, nas áreas mencionadas, foram a necessidade de analisar o social, a actividade do Sujeito e a história colectiva e individual para compreender as práticas. Os modelos desenvolvidos neste âmbito partem, precisamente, da ideia de que as representações são guias para a acção – “l'étude de la pensée «naïve», du «sens commun» apparait desormais essentielle“ (Abric, 1994, p. 11). Toda a realidade é representada, apropriada pelo indivíduo, reconstruída no seu sistema cognitivo, integrada no seu sistema de valores, dependendo da sua história, contexto social e ideológico. Assim sendo, a representação é uma forma de visão unitária e global dum objecto, é uma visão funcional do mundo, que permite dar sentido ao real. Podemos concluir esta curta definição dizendo que a representação é uma organização significante, sociocognitiva, contextualizada e determina antecipações e expectativas.

As representações sociais têm como principal função dirigir a compreensão e explicação da realidade global, mas, simultaneamente, definir identidades e

12 Apesar de haver, ainda, poucos dados sobre esta questão, na perspectiva da Psicologia Social.

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Para uma síntese sobre a origem epistemológica do conceito de “representação” e sobre os contributos de várias disciplinas para a “formação” deste conceito em DL, nomeadamente os da

salvaguardar especificidades. As representações são guias comportamentais e permitem, a posteriori, justificar tomadas de posição e comportamentos.

As representações são, assim, constituídas por informações, crenças, opiniões sobre um objecto. Para perceber o mecanismo de intervenção das representações nas práticas, foi necessário perceber a organização interna da representação, pelo que foram usados métodos complementares de recolha de representações (Abric, 1994). Na sequência destas investigações, apurou-se que as representações obedecem a uma estrutura de hierarquia em que orbitam elementos periféricos em torno de um núcleo central, mais ligado às convenções sociais, constituído por determinações sociais, condições históricas, sociológicas e ideológicas, que evolui de forma muito lenta. Os elementos periféricos são, sobretudo, da responsabilidade do indivíduo, são permeáveis a elementos novos, permitindo adaptação, diferenciação, integração de experiências quotidianas; isto significa que a transformação nas representações vai operar-se, sobretudo, nos elementos periféricos. Nesta linha de raciocínio, as representações interessam à Didáctica por quatro razões fundamentais: i) têm uma relação estreita com as performances, ii) podem constituir uma ajuda ou iii) um obstáculo à prática e à aprendizagem e iv) são susceptíveis de se modificarem (Pereira, 2004), sobretudo nos elementos mais dependentes de cada indivíduo.

Num estudo centrado na recolha de representações sobre a escrita, por um lado, e sobre a escola, por outro, com duas populações distintas, substancialmente diferentes no plano socioeconómico e sociocultural, a escrita não parece ser, para nenhum dos grupos, um “núcleo central” de representação; surge claramente, apenas para o grupo mais “favorecido”, como um elemento “periférico” fortemente associado à escola, porquanto é uma aprendizagem escolar fundamental e servirá de mediadora entre a escola e uma profissão (Barré-De Miniac, 1997). Ora, sendo a escrita “elemento periférico” de representações, depreende-se que é mais dependente do indivíduo. Daqui podemos tirar duas ilações: a pertinência do enfoque sobre as representações do indivíduo sobre a escrita e a possibilidade de mudança dessas representações.

Seja como for, estas “reconstruções pessoais” sobre a escrita enquadram-se numa história individual com a escrita, de que fazem parte as produções escriturais dos Sujeitos, influenciadas pelos seus saberes e saberes-fazer, história para a qual concorrem factores familiares, socioculturais e económicos, escolares… Por esta razão, as “reconstruções pessoais” sobre a escrita ou as motivações- representações constituem, apenas, o lado “representacional” de todo um processo dinâmico que constitui a relação de um Sujeito com o objecto “escrita”. Voltando ao tópico inicial, em que interessava fundamentar a necessidade de especificação do estudo da relação com, reiteramos que à Didáctica interessa mais uma especificação da relação com… a escrita, neste caso, não só para garantir um enfoque mais dirigido em termos de recolha de dados empíricos mas também para salvaguardar a possibilidade de intervenção. Com efeito, alguns estudos que se têm debruçado sobre as representações sobre a escrita, como vimos, também têm sugerido que a escola tem um papel muito importante na génese destas representações e, por isso, pode modelar a relação com a escrita (Barré-De Miniac, 2000, p. 71). Todavia, segundo C. Barre-de Miniac,

“il s’agit là d’un secteur de recherche peu développé, mais qui pourrait largement contribuer à l’éaboration de démarches pour une didactique se préoccupant de prendre en compte les représentations comme elements du rapport à l’écriture, lui-même consideré comme faisant partie de la compétence scripturale” (Barré-De Miniac, 2000, p. 74).