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CAPÍTULO I – Para uma concepção de Didáctica de Línguas e da Escrita

4. A Didáctica da Escrita – contributos para uma disciplina multirreferenciada

4.5. A Escrita – entre textos e Sujeitos

Além do estudo dos textos e dos contextos, interessava perceber as operações inerentes aos processos de escrita, com o objectivo de orientar melhor as produções escriturais dos Sujeitos aprendentes.

Assim, no âmbito da Psicologia Cognitiva, J.-R. Hayes & L. Flower (1980) explicitam o modelo processual da produção escrita, colocando-a num contexto social e encarando-a como situação de comunicação, com objectivos comunicativos e problemas específicos a resolver. Estes autores identificaram três grandes operações no processo de produção textual: a planificação, a textualização e a revisão. A planificação consiste na procura, selecção e organização da informação; esta dependerá do conhecimento sobre o assunto, sobre as expectativas do leitor e sobre a estrutura do texto a produzir; a textualização ou geração do texto propriamente dito comporta uma gestão local e, simultaneamente, global do texto; quanto mais automatizada for a gestão local, maior será a atenção votada ao nível mais global (que os escreventes mais hábeis conseguem). A revisão compreende a avaliação que o Sujeito faz do seu escrito e as intervenções de melhoria, não só a nível da frase mas também do texto no seu todo; na realidade, a revisão não é uma “operação de cosmética, e limpeza da superfície do texto”, mas “uma operação de reformulação profunda” (Pereira & Azevedo, 2005, p. 12). A revisão vai sendo levada a cabo ao longo do processo, pode assumir a forma de reescritas diversas e sucessivas planificações, o que significa que nenhuma operação no processo escritural é linear nem tão-pouco o é a forma como as operações se sucedem; com efeito, a escrita é um processo recursivo de operações que não objectivam, apenas, a expressão de um pensamento já claro, mas a construção do próprio pensamento. Este modelo, centrado nos processos mentais de elaboração e organização da informação, tem sido actualizado (Chenoweth & Hayes, 2001; Hayes, 2008) e tem tido uma repercussão vastíssima no ensino (Camps, 2008), contribuindo para

modificar a concepção tradicional de ensino da escrita, na medida em que lhe oferece pistas para a elaboração de estratégias de remediação adequadas à complexidade da escrita, quer sob o ponto de vista da investigação, não só em DE, mas noutras ciências, como a Psicologia Cognitiva (Alves, 2008) – para observar a actividade de produção, detectar e compreender as dificuldades dos escreventes e os factores que conduzem a ganhos na fluência e na qualidade dos textos – quer sob o ponto de vista da intervenção – ressaltando a necessidade de consagrar bastante tempo à escrita, e de forma regular, dada a elevada actividade intelectual que comporta (Alves, 2008).

Porém, este modelo acentuadamente cognitivo, assente na perspectiva processual – que “tem alimentado muitas das propostas surgidas nas décadas mais recentes no campo da didáctica da escrita” (Barbeiro & Pereira, 2008, p. 112) –, não é suficiente para a DE elaborar uma “teoria da escrita” que leve em conta o Sujeito que escreve – escrevente –, já que parece fazer supor que os únicos problemas que o Sujeito encontra para escrever são de ordem cognitiva (Reuter, 1996b, p. 41); de facto “l’engagement dans une démarche d’apprentissage dépasse des enjeux strictement cognitifs” (Vause, Dupriez, & Dumay, 2008). Este modelo teórico, atento aos factores endógenos do desenvolvimento da tarefa escritural, pressupõe que, didacticamente, a tarefa do professor seja acompanhar esse desenvolvimento, quando, na verdade, consiste muito mais em potenciá-lo, na linha do trabalho de Vygotsky. Além disso, a escrita é mais entrevista como modo de tradução do pensamento e tratamento de informação e menos como pensamento reflexivo (Barré-De Miniac, 2000, p. 35; Reuter, 1996b, p. 41). Na verdade, outras investigações vão contribuir para aclarar o valor heurístico da escrita (Bucheton & Chabanne, 2002) – aspecto da cultura do escrito indispensável não só para a execução de tarefas escriturais mas para criar uma verdadeira cultura científica que assente no valor da escrita como propiciadora da construção e formalização de conhecimentos.

Esta postura, radicada na Antropologia e na Sociologia, vai desencadear um questionamento sobre as práticas e os discursos sobre a escrita que os Sujeitos

verbalizam. Além disso, a observação dos discursos e das práticas dos Sujeitos fará emergir representações sobre a escrita que podem estar a constituir um obstáculo à sua aprendizagem e à instituição de uma verdadeira cultura escritural (Pereira, 2003b). A DE deve, por conseguinte, servir-se de outras ciências e de pesquisas variadas para conhecer as diferenças escriturais dos alunos, quer ao nível das representações quer das formas de operacionalizar com o escrito, e agir em função das mesmas. Por exemplo, para analisar a génese das representações de escrita dos alunos, pode ser necessário “sair da escola” (Lahire, 1999) e ir pesquisar junto das famílias, atentar no contexto sociocultural onde os alunos vão construindo visões particulares acerca da escrita, como veremos.

Pôr a tónica no Sujeito significa, portanto, que a DE deve adquirir meios de conhecer as suas representações, competências e actividades escriturais, quer escolares quer extra-escolares, para delinear o caminho a seguir: o que é preciso ensinar, fazer descobrir, aperfeiçoar… (Barré-De Miniac, 1999). Esta assunção reside numa espécie de consenso de que a escola existe antes de tudo para os alunos, o que significa que a tradição pedagógica da “criança no centro” apresenta consistência para poder, até aos nossos dias, estruturar o debate sobre as finalidades do sistema escolar – a problemática do modo como a escola única, que acentua desigualdades, pode diminuí-las, atendendo à heterogeneidade dos alunos e, portanto, diversificando métodos que deverão, a partir das aquisições de cada aluno, da sua vivência, fazê-lo progredir (Rayou, 2000). Porém, estes princípios não estão ao abrigo da inflação e mau entendimento que se tem feito do “puerocentrismo”; a escola tem como atentar no aluno, sem o reduzir só ao que ele gosta e já sabe, mas dando-lhe oportunidade de fazer disso uma base de emancipação (Rochex, 1996).

A DE tem necessidade, portanto, de construir uma teoria da escrita “global” ou do Sujeito-escritor, para que se possa sugerir novos modos de trabalho aos aprendizes da escrita, tendo em conta o Sujeito, o texto (género textual) e o contexto (objectivo e finalidade, destinatário, posicionamento a adoptar…) (Barré- De Miniac, 2000). A formação escolar escritural terá de ser reflectida e bem

orientada, por um professor mediador, ele próprio produtor de textos, em ordem a uma crescente e autónoma monitorização do escrito por parte do produtor, em variadas modalidades textuais, não continuando a desleixar os textos que, socialmente, s(er)ão importantes, num entendimento dialógico de linguagem, construída socialmente.