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Retomemos a caminhada pela Rua de mão única em Berlim que iniciamos no último capítulo. A meio caminho entre o POSTO DE GASOLINA e o PLANETÁRIO, lê-se: AMPLIAÇÕES. Tal como um letreiro na fachada de um estúdio fotográfico, pode-se

imaginar uma vitrine com algumas amostras do trabalho realizado pelo estabelecimento, como se para garantir confiança na qualidade do serviço oferecido. As ampliações, aqui, são literárias: “Criança Lendo”, “Criança Que Chegou Atrasada”, “Criança Mastigando”, “Criança Andando De Carrossel”, “Criança Desordeira”, “Criança Escondida” (2012 a, p.37-40)125.

Na técnica fotográfica, após o processo de revelação, a passagem da imagem do negativo para imagem positiva em papel sensível com dimensões que se prestam à melhor apreciação é chamada ampliação. Uma fonte luminosa do aparelho chamado ampliador, devidamente protegida por um difusor ou um condensador (para que não se torne ela também parte da imagem) atravessa o negativo, projetando a imagem ali inscrita sobre o papel fotográfico sensível, também negativo. Conta-se apenas com a fonte luminosa protegida do ampliador e uma luz âmbar-avermelhada, criando no espaço uma penumbra que não interfere no processo e garante que apenas a imagem do negativo seja projetada no papel sensível. Assim, obtém-se uma imagem positiva, após os banhos químicos, que também devem acontecer na penumbra. A imagem vai aparecendo no papel sensível recém-exposto à luz e se torna cada vez mais nítida, ainda imersa na bandeja de revelação. Tocar a imagem imersa é proibido, misturar os compostos que garantem que a imagem, finalmente, se fixe ao papel, um pecado mortal -- a ampliação literal, isto é, o aumento da imagem, fica a cargo da distância entre a lente do ampliador e a base em que se encontra o papel fotográfico sensível.

O que Benjamin apresenta ao seu leitor em seu aforisma126 é uma sequência de imagens fotográfico-literárias impressas (no papel fotográfico e no papel tipográfico) que mostram crianças – como imagens recém-saídas do quarto escuro do

125 Detlev Schöttker (1999) aponta que três desses textos foram publicados em 3 de dezembro de 1926

na revista Die Literarische Welt, sob o título Kinder [crianças], a saber “Criança Andando de Carrossel”, “Criança que chegou atrasada”, “Criança Escondida”, nesta ordem. Para as variantes entre as publicações anteriores à 1a edição em livro até a mais recente delas, ver WuN 8, p. 273-274 e p.371-373, também com comentários de Schöttker. No arquivo Walter Benjamin, em Berlim, encontra-se um recorte da publicação na imprensa, com anotações feitas pelo autor (WBA 439/1).

126 Mais uma vez mantenho a palavra usada pelo autor para nomear os textos que compõem Rua de mão

fotógrafo, ali onde a mágica da ampliação acontece. A sequência AMPLIAÇÕES – o

laboratório e sua vitrine – notamos no percurso de leitura, como aquele que caminha pela rua, está localizada exatamente no centro da Rua de mão única – dos sessenta aforismas que compõem o livro, AMPLIAÇÕES é a trigésima, no meio do caminho,

portanto. Essas ampliações literárias antecedem os principais ensaios de Benjamin sobre a fotografia, o que indica a precoce atenção do autor para a importância que a técnica ganhara no cotidiano da vida urbana moderna, mote de Rua de mão única.

Do centro da Rua de mão única, as mesmas imagens, reformuladas, como se fossem outras fotografias de um mesmo rolo de filmes, reaparecerão mais tarde em outro ponto: no conjunto de peças que forma a Infância em Berlim por volta de 1900, dessa vez sem o título “AMPLIAÇÕES”. “Livros baratos” ou “Livros para rapazes”,

“Chegando atrasado”, “A despensa”, “Carrossel”, “Armários” e “Esconderijos”127 são as peças que retomam a sequência do livro de 1928, com diferenças na reescritura que, aqui, corroboram a leitura das peças como imagens fotográfico-literárias. Enquanto em Rua de mão única, a escrita é centrada no tempo presente e há uma distância inequívoca entre aquele que escreve e aquilo que é apresentado no texto, Infância em Berlim por volta de 1900, por sua vez, apresenta como uma de suas marcas mais definitivas a relação ambivalente com o tempo da memória e das lembranças, como presenças do passado – marca que pode ser percebida em outros escritos dos anos 1930 do autor – e uma aproximação, ainda que velada, hesitante, entre o sujeito escritor e narrativa. Como se mudasse o ângulo da imagem, ou a câmera mudasse de mãos, some da fotografia justamente a criança: se em Rua de mão única o leitor vê a criança no centro das situações (“Criança que chegou atrasada”), em Infância em Berlim por volta de 1900, o ângulo infantil é o guia do olhar do leitor (“Chegando atrasado”). E lemos-vemos, na Infância, ampliações antigas, como se saídas da caixa de fotos guardadas e não do quarto de revelação, como evidenciam os excertos a seguir:

127 Aqui se encontra um bom exemplo de como a leitura do arquivo em seu conjunto pode ser proveitosa

para a análise crítica dos escritos de Walter Benjamin. As peças apresentadas em Rua de mão única não aparecem todas numa só versão de Infância, exceto na versão compilada por Adorno. “Criança Lendo”, por exemplo, encontrará seus novos ângulos no manuscrito confiado a Felizitas sob o título “Die ersten Bücher” [primeiros livros], na imprensa, no jornal Vossiche Zeitung (17.09.1933), sob o título “Schmöker” [livros baratos; alfarrábios] e no Datiloscrito de Paris, sob o título “Knabenbücher” [livros para rapazes]; a versão editada por Adorno adotou o título publicado no jornal. Vf WuN 11.2, p.21;23. Ver também tabela em no anexo deste trabalho

“Criança que chegou atrasada” (Rua de mão única: OEII, 2012a, p.37s)

“Chegando atrasado” (Infância em Berlim por volta de 1900: OEII, 2012a, p.84)

O relógio do vestíbulo da escola parece lesado por culpa sua. Marca “Atraso”. No corredor das portas das classes pelas quais ela passa de mansinho, filtra-se um murmurar de secreta deliberação. Professores e estudantes, atrás delas, são amigos. Ou tudo silencia como se esperassem por alguém. Inaudivelmente ela coloca a mão sobre a maçaneta. O sol embebe o local onde está. Então ela injuria o dia verde e abre. Ouve a voz professoral matraquear como uma roda de moinho; está diante da engrenagem do moinho. A voz matraqueante mantém sua cadência, mas agora os serventes deitam tudo abaixo e sobre a recém-chegada; dez, vinte pesadas sacas voam sobre ela, e ela tem de carregá-las até o banco. Em sua mantilha, cada fio está empoeirado de branco. Como uma pobre alma à meia-noite, ela faz ruído a cada passo, e ninguém a vê. Se então se senta em seu lugar ocupa-se mansamente até o toque do sino. Mas não há nenhuma benção nisso.

O relógio no pátio da escola parecia ter sido danificado por minha culpa. Indicava “atrasado”. No corredor penetravam murmúrios de consultas secretas vindos das portas das salas de aula que eu roçava ao passar. Atrás delas, professores e alunos eram camaradas. Ou então tudo permanecia em silêncio, como se alguém fosse aguardado. Inaudivelmente apalpei a maçaneta. O sol inundava o lugar onde eu me achava. Foi assim que violei meu dia que mal começara, e entrei. Ninguém parecia me conhecer. Tal como o diabo se apoderara da sombra de Peter Schlemihl, também o professor retivera meu nome desde o início da lição. Não deveria mais ser chamado. Quieto, ocupei-me até o toque da sineta. Mas foi tudo sem nenhuma graça.

“Zu spät gekommenes Kind” (Einbahnstraße, GS IV, p.113-114)

“Zu spät gekommen” (Berliner Kindheit um neunzehnhundert, GS IV, p.247 Die Uhr im Schulhof sieht beschädigt aus durch seine

Schuld. Sie steht auf “zu spät”. Und in den Flur dringt aus den Klassentüren, wo es vorbeistreicht, Murmeln von geheimer Beratung. Lehrer und Schüler dahinter sind Freund. Oder es schweigt alles still, als erwartete man einen. Unhörbar legt es die Hand an die Klinke. Die Sonne tränkt den Flecken, wo es steht. Da schändet es den grünen Tag und öffnet. Es hört die Lehrerstimme wie ein Mühlrad klappern; es steht vor dem Mahl- werk. Die klappernde Stimme behält ihren Takt, aber die Knechte werfen nun alles ab und auf das neue; zehn, zwanzig schwere Säcke fliegen ihm zu, die muß es zur Bank tragen. An seinem Mäntelchen ist jeder Faden weiß bestaubt. Wie eine arme Seele um Mitternacht macht es bei jedem Schritt Getöse, und keiner sieht es. Sitzt es dann auf dem Platz, so schafft es leise mit bis Glockenschlag. Aber es ist kein Segen dabei.

Die Uhr im Schulhof sah beschädigt aus durch meine Schuld. Sie stand auf »zu spät«. Und auf den Flur drang aus den Klassen- türen, die ich streifte, Murmeln von geheimer Beratung. Lehrer und Schüler dahinter waren Freund. Oder alles schwieg still, als erwarte man einen. Unhörbar rührte ich die Klinke an. Die Sonne tränkte den Flecken, wo ich stand. So schändete ich meinen grünen Tag und öffnete. Niemand schien mich zu kennen. Wie der Teufel den Schatten des Peter Schlemihl, hatte der Lehrer mir meinen Namen bei Beginn der Stunde einbehalten. Ich sollte nicht mehr an die Reihe

kommen. Leise schaffte ich mit bis Glockenschlag. Aber es war kein Segen dabei.

A mudança dos pronomes garante a mudança de ângulo da imagem, e é possível perceber que AMPLIAÇÕES talvez antecipe o projeto de um livro que só será

pensado anos mais tarde.128 Isto é, o caráter fotográfico de Infância em Berlim por volta de 1900 estaria anunciado no título “AMPLIAÇÕES”, o centro de Rua de mão

única. A escrita, utilizando o tempo presente traz a fotografia objetiva, o flagrante da vida na cidade, e quando lança mão do imperfeito, a imagem tem seu tom esmaecido, o tom da fotografia da recordação de infância.

Uma primeira leitura transversal de Infância em Berlim por volta de 1900 já faz o leitor notar pelo menos duas características que permanecem imutáveis em todas as versões do “livrinho” de que se tem notícia. A mais evidente é a construção a partir de peças [Stücke] -- que imediatamente remetem um leitor familiarizado com Walter Benjamin às Imagens de pensamento e ao aspecto da construção de Rua de mão única. A segunda, não menos evidente já na primeira leitura, é a escuridão em que se passam as cenas de Infância. Dias chuvosos, nevascas, cenas à noite, cortinas fechadas, o telefone localizado no canto escuro do corredor recriam a luz penumbral das primeiras fotografias da história ao mesmo tempo em que forjam a atmosfera perfeita para a necessidade de uma iluminação de flash fotográfico – ou, ainda, para preparar a revelação das imagens129, isto é, realizar as ampliações.

128 Vejo, aqui, junto com os mapas do capítulo anterior, um exemplo evidente da prática angelical da

escrita e da formação de uma obra em constelação, propostas de leitura do capítulo I, “A obra do autor na era das edições póstumas: Walter Benjamin, autor editado”. “Ampliações” antecipa o motivo da infância, a forma fotográfica, e ilumina sua leitura. Infância retoma o olhar para a cidade, querendo reconstruir um passado já não mais possível. Essa prática de escrita, assim, ajuda a formar a constelação fotográfica aqui proposta. O crítico Michael Jennings considera a conexão entre Rua de Mão Única e Infância em Berlim por volta de 1900 ainda mais íntima: Jennings, considerando a versão do Datiloscrito de Paris de Infância em Berlim por volta de 1900 como a mais elaborada entre elas (e assumindo assim uma hipótese que considero excessivamente teleológica), propõe que se leia Infância em Berlim por volta de 1900 como uma reescritura de Rua de mão única, em que peças- chave do livro retomam não apenas seus temas e estruturas mas que aparecem, se colocarmos os dois livros paralelamente, no mesmo ponto do andamento da construção. Se seguida a leitura de Jennings, Infância em Berlim poderia entrar no rol dos livros de artista do autor, proposta assinalada no capítulo anterior. Cf. Jennings, 2011.

129 A técnica da revelação é retomada em pelo menos outros dois pontos das reflexões de Walter

Benjamin, a saber nas anotações para Passagens [N15a,1] e nas anotações para Sobre o conceito de história (WuN 19, p.124). É digno de nota que se esqueça, nos dois pontos, a escuridão necessária para que se dê o processo. Comparando a escrita da história à escrita literária, Benjamin recupera o autor André Monglond, que dá ao (tempo) futuro o papel de revelador (químico) para as imagens do passado deixadas nos textos literários. O historiador, acrescenta Benjamin retomando Hugo von Hoffmansthal, é o leitor capaz de ler aquilo que nunca foi escrito. Nos manuscritos para “Sobre o conceito da história”, Benjamin coloca essas anotações sob o guarda-chuva “imagem dialética”.