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4 Câmera, revelador, fotografias Dada!

4.1 Manipulando as fotos

As brincadeiras, protegidas pela chuva ao contemplar as calçadas de Aix no Panorama Imperial, ou olhando a lontra ir e vir das profundezas de seu tanque, fazendo lembrar a mesma chuva, se transformam e passam a requerer importantes ferramentas – sem demora, no compasso que pode ser o das lembranças, fugazes, ou aquele da criança que, sem aviso prévio, muda de ideia: agora é vez da tesoura e da cola. Vistas de baixo para cima, contra o céu, as figuras na Coluna da Vitória mais se parecem com as figurinhas dos álbuns de cortar e colar, que a criança usa para distribuir bonecos por portais, nichos e parapeitos das janelas. As ferramentas da criança são também as ferramentas dadaístas, que incluem a aparência do processo, os contornos e as marcas no resultado (desejado) das obras. E Berlim, o lugar da Infância, foi palco de um importante braço do movimento, como assinala Norval Baitello Jr. em O animal que parou os relógios:

Sempre que os dadaístas de Berlim construíam suas obras, obedeciam necessariamente ao princípio da montagem. Isto é uma lei Dada. A montagem, bem como a colagem, reúne elementos por mera justaposição paratática sem a presença de signos ordenadores, de hierarquização ou de simples conexão. E pressupõe uma atividade anterior à da montagem propriamente dita: a desmontagem ou o recorte de elementos isolados, retirados de seu contexto original onde possuíam uma função dentro de uma determinada hierarquia de regras que constituem um determinado código cultural. Retirados pois deste sistema, os elementos não vão se constituir em nenhum discurso análogo ao original senão num discurso completamente diverso, no qual a referência ao processo de ruptura ocorrido vai se constituir em marca fundamental (Baitello Jr., 2002, p.66)139.

A nítida relação da estrutura da Infância com a técnica da fotomontagem140 deve ser aqui lida não só como uma referência a todas as peças que formam a Infância, mas como um “fixador” da natureza fotográfica das peças em si. E não seria o

139 Norval Baitello Junior, em trabalho anterior sobre o movimento Dada Berlinense, utiliza de

maneira muito feliz formulação des/montagem. A palavra, assim, consegue encapsular o duplo movimento necessário para que se dê o processo e, a barra inclinada, em sua escrita, traz a marca dos limites (entre imagens, entre palavras), jamais escondida pelo movimento Dada. Vf. Dadá- Berlim: des/montagem (1994).

140 Temos, assim, um livro construtivista em Rua de mão única (ver capítulo IV) e um livro Dada em

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procedimento de tirar fotografias também um movimento, violento, de des/montagem? Num instante roubado ao tempo em que se vive, o instante do clique da câmera, em que fotógrafo prende a respiração, por vezes fecha o olho e só a máquina é capaz de ver, guarda-se uma parte da vida. Esse pedaço arrancado, com o movimento de um dedo, é então incluído em outros contextos, fora de contexto, sejam eles quais forem. Pois aquilo que é vivido, ainda que possa ter os limites da experiência desafiados e redefindos pela memória e os “mundos possíveis” da fotografia, não será mais vivenciado da mesma forma. E nem é desejável que isso ocorra, como escreve Benjamin em “O Jogo das Letras” (2012a, p.105): “O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade”.141

4.1.1 Desvio: Esquecer

A propósito de “Jogo das Letras”, um breve comentário: também sua ausência no Datiloscrito de Paris se faz notável, já que a peça traz a reflexão sobre a importância do esquecimento. Ao se assombrar diante da conjectura de um “resgate total do passado”, que sabe ser impossível, Benjamin reflete sobre o contraponto da memória e sua formação. Ao final da leitura da peça no datiloscrito, tem-se a impressão de que não há ali espaço para as reflexões sobre o lembrar, mas para a apresentação de “uma ou outra expedição às profundezas da memória”. Apenas as “palavras prévias” trazem à letra do texto esse movimento reflexivo, ainda presente no Datiloscrito de Berlim – ou no choque da explosão do pó de magnésio. Em “Jogo das Letras” o autor parece anunciar um ensaio justamente sobre o tema do esquecimento, que tencionava escrever. A peça, diferente de outras, reescritas, é de fato retirada da versão parisiense.

Em carta a Adorno de maio de 1940, Benjamin reflete sobre tal possível ensaio, localizando seu ponto de partida no conto de Ludwig Tieck “O loiro Eckbert”. Na carta, ele menciona justamente o gesto de “tornar a provar”, como um gesto consciente do adulto que se lembra, numa correlação evidente com “tornar a aprender”

141 Difícil deixar de lembrar, ao ler essa passagem, do conto de Jorge Luís Borges, Funes, o memorioso,

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do “Jogo das Letras”:

[…] Não resta dúvida de que o esquecimento por você lembrado é de grande importância. Reservo a possibilidade de uma distinção entre esquecimento épico e esquecimento reflexivo. Queira por favor não considerar uma evasiva se não me aprofundo hoje nessa problemática […] Parece-me inevitável que no curso dos meus trabalhos terei de me confrontar com a questão […]. O primeiro a

fazer será então remontar ao locus classicus da teoria do esquecimento, que para mim, como você sabe muito bem, representa “ O loiro Eckbert”.

Creio que para dar ao esquecimento o que é seu não seja necessário pôr em questão o conceito de memoire involontaire. A experiência infantil do sabor da madelaine, que um dia torna involontairement à memoria de Proust, foi de fato inconsciente. Não terá sido o primeiro bocado da primeira madeleine. (Provar é um ato da consciência) Mas provar decerto torna-se inconsciente na medida em que o gosto se tornou mais familiar. O “tornar a provar” do adulto é assim,

naturalmente, consciente. […] (Benjamin, 2012c, p. 457-458, grifo

sublinhado meu).

No conto referido por Benjamin, Tieck cria uma teoria peculiar do lembrar/esquecer baseada no nome do cãozinho Strohmian (espécie de anagrama para o adjetivo romantis[c]h), que ganha contornos de predestinação e determinante de destinos, transcendendo o real. O nome apresenta a realidade, sem deixar de se aproximar da fantasia, em narrativa que combina os gêneros conto de fadas e novela, e conduz a um problema de definição de gênero literário. Ernst Bloch (1998), sobre esse conto, fala de um déjà-vu e ressalta que essa vertigem estaria não só na narrativa do conto, mas também em sua estrutura, pois sua frase final pode ser lida como a primeira, sem prejuízo de sentido ou experiência de leitura, criando um jogo complexo com o tempo. Se é impossível prever que rumos tomaria o ensaio imaginado por Walter Benjamin, que já caracterizara o jogo proustiano como “um jogo mortal”, como vimos, chama a atenção particularmente a presença da brincadeira típica do conto romântico com o anagrama Strohmian /Romantis[c]h e, finalmente, um “Jogo das Letras”, com as letras.

Dentre os escritos de Benjamin mais afinados com a reflexão sobre trabalho da recordação ou a apresentação de expedições às profundezas da memória, aqueles

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mais porosos como Infância ou que evidenciam atento olhar para trapos e farrapos, tal o anjo, que não deixa de olhar as ruínas, levam à cena da escrita também o espaço do esquecimento, isto é, as lacunas deixadas para que se viva e se pense.