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Desde o anúncio da invenção de Daguerre feito por Arago em 1839 — os primeiros experimentos de Niépce datam de 1826-1827, e eles não eram os únicos a participarem da corrida para a produção das imagens técnicas –, 35 a natureza mecânica do processo de registro e o realismo das imagens resultantes foram vistos como uma ameaça que se impunha às artes visuais. No âmbito da literatura, a visão de Georg Schirges, crítico e autor atuante nesse momento de franca expansão da técnica fotográfica no século 19, é sintomática da ingênua resistência que a técnica enfrentou:

A infeliz invenção do Senhor Daguerre quebra o pescoço de toda a arte, faz do artista mera máquina, faz dele, como um moeiro em seu moinho de vento, dependente do tempo, aniquilando o gênio criativo, os progressos, a grandiosidade, acachapando a natureza divina interna ao artista.36

Assim como Schirges, autores do movimento realista como Karl Gutzkow, Theodor Storm e Theodor Fontane defendiam que a reprodutibilidade oferecida pela técnica fotográfica representava uma afronta ao que acreditavam ser a verdadeira função da arte (realista). Para Fontane, o processo estético seria uma atividade em que o artista cuidadosamente arranjaria determinados elementos da realidade em sua própria criação estética. A representação estética da realidade, criada através desse processo de seleção seria uma “transfiguração”, não uma cópia naturalista. A obra de arte realista seria, então, “o reflexo de toda vida real, todos os interesses e forças reais no elemento estético”.37 Assim, a obra de arte poderia criar a perspectiva de realidade que iluminasse e enfatizasse suas características ideais. Consequentemente, a fotografia podia, para esses autores, ser considerada uma forma antiestética. Era prática comum, entre os autores resistentes, caracterizar um texto como daguerreótipo para descrevê-lo pejorativamente. Seguindo essa tendência, insistiam na síntese entre

35 Sobre história da fotografia, ver: Fotografia: usos e funções no século 19 (1991), de Annateresa

Fabris; “A história e a crítica de fotografia” (1991), de Fernando Antonio Cardoso Jr.

36 “Diese unglückliche Erfindung des Herrn Daguerre bricht aller Kunst den Hals, macht den Künstler

zur blossen Maschine, macht ihn, wie einen Windmüller, abhängig von der Witterung, vernichtet in ihm das schöpferische Genie, den Fortshritt, die Grösse, und verflacht seine innere göttliche Natur” Georg Schirges. Das Lichtbild. Hamburg, 1844 [apud Maurer, 2013, p. 102].

37 “Die Widerspiegelung alles wirklichen Lebens, aller wahren Kräfte und Interessen im Elemente der

Kunst” Theodor Fontane, Unsere lyrische und epische Poesie seit 1848. Theodor Fontane, Sämtliche Werke, vol 21/1. München: 1963, 12 [apud Maurer, 2013, p.103].

realismo e idealismo como condição para a arte verdadeira (Maurer, 2013, p. 101- 103).38

Charles Baudelaire, autor de quem Benjamin se ocupou intensamente, não estava muito distante dessa resistência alemã. Escreve sobre a abertura do Salon de 1859 um verdadeiro manifesto contra a fotografia:

[…] estou convencido de que o progresso mal aplicado da fotografia muito contribuiu, como aliás todo progresso puramente material, para o empobrecimento do gênio artístico francês, já tão raro. A Fatuidade moderna rugirá forte, fará roncar todas as flatulências de sua obesa personalidade; vomitará todos os sofismas indigestos que uma filosofia recente lhe serviu até que se empanturrasse, o que torna evidente que a indústria, irrompendo-se dentro da arte, torna-se sua mais mortal inimiga, e que a confusão de funções impede que ambas realizem seus potenciais. A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se odeiam de um ódio instintivo, e quando se encontram no mesmo caminho, é necessário que um sirva ao outro. Se for permitido à fotografia substituir a arte em qualquer uma de suas funções, ela logo será totalmente suplantada e corrompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. […] Mas se lhe for permitido usurpar o domínio do impalpável e do imaginário, de tudo aquilo que apenas tem valor porque o homem lhe acrescenta alma, então, que desgraça a nossa! (Baudelaire apud Entler, 2007, p.12-13). 39

Não é necessário se distanciar muito do centro da pesquisa de Walter Benjamin, a França, para conhecer um espírito bem diverso ao surgimento da técnica. Uma cena na biblioteca, foto do inglês Henry Fox Talbot, foi um dos primeiros encontros entre Literatura e Fotografia. Publicada no livro O lápis da natureza [The Pencil of Nature]40 em 1844, a fotografia aparece acompanhada não de uma legenda, mas de um texto notável, que, de forma sutil, se refere à imagem fotográfica que ali apresenta e imagina um futuro cheio de possibilidades para a novíssima técnica. Talbot não se preocupa em escrever sobre a biblioteca ou mesmo sobre livros

38 Sobre as relações entre literatura e visualidade, especialmente a fotografia, na Alemanha do século

19, ver também Philologie des Auges, de Bernd Stiegler (2001). Trabalhos que se ocupam dessa época parecem particularmente interessantes, pois tratam justamente do momento do surgimento da técnica fotográfica. O debate sobre o século 20 já trata da prática consolidada de fotografar.

39 “O público moderno e a fotografia”, texto de Charles Baudelaire datado de 20 jun 1859, foi traduzido

por Ronaldo Entler a partir de sua publicação na revista francesa Études Photographiques de maio de 1999.

ilustrados, ou os que tivessem fotografias incluídas, seu interesse é um experimento de física ótica. Ele imagina a decomposição da luz em raios visíveis e invisíveis ao olho humano, no espectro solar: os invisíveis, aqueles além da extremidade violeta, ficariam separados em um cômodo (atrás da estante de livros) sem qualquer outra fonte luminosa, e “o olho da câmera veria claramente onde o olho humano não encontraria nada mais que escuridão”, escreve. Uma cena na biblioteca, a fotografia, mostra apenas os objetos, livros, o olho humano não pode ver uma passagem secreta para o reino dos símbolos, que somente se abre com a leitura.

ASCENE IN THE LIBRARY,HENRY FOX TALBOT,1844

Os livros, diante das imagens fotográficas, podem parecer ter mais a oferecer, por sua capacidade de evocar imagens e representações mediadas pela imaginação — porém: a imaginação é tão invisível ao olho humano que lê as letras impressas quanto os raios além do espectro violeta. Uma cena na biblioteca, a foto, apresenta mais que simplesmente duas fileiras de lombadas de livros, ela é a imagem da reflexão sobre percepção e poder da imaginação e suas interseções na fotografia e na literatura – e curiosamente fica de fora das escolhas de Benjamin para apresentar sua história social e cultural da técnica.41 Evidentemente, Schirges, Fontane ou Baudelaire não chegavam

41 É muito pouco provável que fosse o caso de falta de notícias dessa publicação de Talbot, tão atenta às

nem perto de compartilhar o entusiasmo de Talbot, que via na fotografia uma abertura para explorar novos espaços recônditos da imaginação.

Mas o século 20 veria a rápida expansão e incrementação da técnica fotográfica, que logo seria objeto de análises históricas e sociais — as implicações do seu surgimento e desenvolvimento seriam temas recorrentes nos ensaios críticos do início do século. Convém assinalar, com Maurício Lissovsky, que, nos anos 1920, a fotografia estava em franco desenvolvimento especialmente na Alemanha, “onde o desenho das câmeras era bem mais avançado que no resto da Europa e os editores, excepcionalmente ativos” (Jeffrey, 1989 apud Lissovsky, 1995, p.31). Ainda com Lissovsky, vivia-se, ali, “uma fase heroica” da fotografia, quando era desenvolvido o debate sobre o que seria a sua essência, envolvendo os produtores de imagens técnicas da vanguarda fotográfica alemã. “Entre os principais marcos desta ´fase heroica´ estão a publicação, em 1925, de Malerei, Fotografie, Film, de László Moholy-Nagy, e a monumental exposição Film und Foto [FiFo] (1929), em Stuttgart, reunindo 1000 fotografias de 218 autores” (Lissovsky, idem). Com a imprensa ilustrada, e especialmente no entreguerras, a fotografia e a gravura se convertem parcialmente em sinônimos correntes do vocábulo imagem (Bild, em alemão) – isto é, sua utilização se torna tão corriqueira que deixa de requerer a especificação (Bruhn, 2008, p.118-119).42

Quase 150 anos passados da chegada da fotografia, em Seis propostas para o próximo milênio (1990), Ítalo Calvino defende uma visibilidade peculiar à literatura contra os supostos efeitos nocivos e banalizantes de um excesso de imagens, em que vivemos, posicionando-se no (aparentemente) eterno debate palavra versus imagem. Desejoso de proteger a leitura (e a literatura), Calvino busca ressaltar o poder de imaginação oferecido pela literatura em detrimento de outras formas de fruição. Karl Erik Schøllhammer, em Além do visível (2007), ao se inspirar em Calvino para tratar da relação entre a imagem e a literatura, comenta que há uma relação de mútua

von Chamisso em 1827 e uma resenha (anônima) contemporânea à publicação de The Pencil of Nature chega a comparar a arte de Talbot a Peter Schlemihl e sua capacidade de vender sombras. Cf Stiegler, 2006, p.34; Benjamin cita nominalmente o personagem de Chamisso na peça “Chegando atrasado” de Infância em Berlim por volta de 1900, que tem um aforisma fotográfico correlato em Rua de mão única (ver capítulo V).

42 Um estudo filológico mais aprofundado seria necessário para determinar a data exata em que a

fotografia passa a ser sinônimo corrente de imagem. Merece atenção o ensaio de Horst Bredekamp, que retoma a polêmica do uso das imagens canônicas, “de arte”, e a fotografia e as gravuras como possíveis objetos de crítica em “A Neglected Tradition? Art History as Bildwissenschaft” (2003).

inspiração:

As imagens visíveis são fontes de inspiração para a produção literária, mas na literatura as imagens visíveis se cruzam com as não-visíveis e estabelecem com elas uma relação de mútua inspiração. O próprio da literatura talvez seja destacar essa diferença fundamental e assim servir como regulador da visão interior, protegendo-a contra as infinitas imagens do dia a dia (Schøllhammer, 2007, p.9 ss).

Entretanto, parece mais produtivo do que insistir em convocar a literatura para essa atividade regulatória talvez seja voltar o olhar para as imagens do dia a dia, as mais banais, cotidianas e técnicas, que, por serem parte integrante do mundo, necessariamente participam do fazer literário.

Bernd Stiegler, em seu Imagens da fotografia: um álbum de metáforas fotográficas [Bilder der Photographie: Ein Album photographischer Metaphern] (2006), aponta que, mais que qualquer outro meio técnico, a fotografia se caracterizaria pelo fato de ter absorvido e produzido um sem-número de metáforas, que determinam igualmente sua teoria e sua prática — revelando uma grande afinidade com a escrita e o fazer literário, portanto.

Tanto imagens fotográficas quanto textos sobre fotografia absorvem essas metáforas e as decifram, as explicam, as tornam palpáveis. Esse caráter tão metafórico também pode ser pensado a partir do fato de que a definição de o que é fotografia, desde a invenção da técnica, mostra-se ambivalente e precária.43 A definição técnica diz se tratar de “arte ou processo de reproduzir imagens sobre uma superfície fotossensível (como um filme), pela ação de energia radiante, especialmente a luz”, retirando de cena o aparelho, a câmera (o olho) e dando ênfase ao contato físico entre luz e superfície sensível. O pensamento sobre a fotografia, por outro lado, desliza entre morte ou vivificação, verdade ou mentira, forma de apagamento ou forma de resguardo. Ainda com Stiegler (2006), essa capacidade de suscitar metáforas, tão própria da fotografia enquanto técnica, prática, forma de pensamento e objeto de

43 Em Walter Benjamins Gebrauch der Fotografie (2010, p.308s.), Jessica Nitsche aponta como Norbert

Bolz, a partir de Hans Blumenberg, encara a fotografia como uma espécie de “metáfora absoluta”. Para Bolz não é a imagem fotográfica, ou a câmera, mas todo o processo que envolve a fotografia que interessam como forma de encará-la como modelo de teoria do conhecimento. Sobre Blumenberg, Nitsche assinala que seu Begriffe in Geschichten [Conceitos em histórias] reservaria um lugar especial para a fotografia. No verbete Eine Begriffsgeschichte [Uma história do conceito], ele recorre à fotografia, ao pai fotógrafo, para falar do processo do surgimento (e da descoberta) dos conceitos.

reflexão, esse deslizar entre opostos faz aparecerem aspectos que, de outra maneira, ficariam invisíveis.44

Essa breve caracterização da fotografia e seus pontos de contato com a escrita, a imaginação, só ajudam a corroborar o desconforto com a biblioteca fotográfica de Walter Benjamin, revelando uma pesquisa tão lacunar sobre o surgimento da técnica e os diversos debates que suscitou, especialmente considerando- se sua produção, que parecia completamente imersa no debate mais progressista acerca da técnica naquela época, trazendo passagens como “a diferença entre a técnica e a magia é uma variável histórica” (1994, p.95). A relação de Benjamin com a fotografia era textual.