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A produção de Benjamin, desta forma, aos poucos, dá sinais da demanda que faz ao seu leitor, que deve se portar como arqueólgo e filológo, lendo o arquivo de sua produção e em sua produção, crítico portando-se amorosamente diante de seu objeto, que deve ser feito enigma, e tradutor que garante, com sua prática a pervivência de seus objetos primeiros. O leitor que se vê diante de um exemplar de leitura que não apresente comentários sobre a dispersa produção de Walter Benjamin, certamente poderá fruir de uma escrita brilhante e instigante. Mas aquele que mergulha nas profundezas de sua produção, vê as diferentes versões de diversas peças, com suas aparições lampejantes em diferentes textos se escreverem juntas para o leitor-filólogo- crítico-tradutor, que não cessa de buscar novas constelações posíveis. Esse leitor- filólogo-crítico, o próprio Benjamin ensaiou separar os papeis ao escrever sobre as afinidades eletivas de Goethe, e, ousaria suspeitar aqui, apenas para promover constantes reencontros ao longo de sua obra, a partir de sua escrita sob o signo do anjo da história, em peças dispersas.90

sugere que se trata de alguma sorte de coleção.

90 Em “As afinidades eletivas de Goethe”, Benjamin trata da filologia e da crítica, separando-as: “A

bibliografia disponível sobre criações literárias sugere que o procedimento minucioso em tais investigações deve ser mobilizado mais em função de um interesse filológico do que crítico […] torna-se cada vez mais uma condição prévia para todo crítico vindouro a interpretação do teor factual, isto é, daquilo que chama a atenção e causa estranheza. Pode-se comparar esse crítico ao paleógrafo perante um pergaminho cujo texto desbotado recobre-se com os traços de uma escrita mais visível, que se refere ao próprio texto. Do mesmo modo como o paleógrafo deveria começar pela leitura desta última, também o crítico deveria fazê-lo pelo comentário […] a história das obras prepara a sua crítica e, em consequência, a distância histórica aumenta o seu poder. Se, por força de um símile, quiser-se contemplar a obra em expansão como uma fogueira em chamas vívidas, pode-se dizer então que o comentador se encontra diante dela como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista. Onde para aquele apenas madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a própria chama preserva um enigma: o enigma daquilo que está vivo. Assim, o crítico levanta indagações quanto à verdade cuja chama viva continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado. (2009, p. 11-14)

… e do editor

Como vimos aqui, o trabalho editorial, mesmo em suas organizações mais cuidadosas, sobretudo serve como um guia primeiro de leitura das obras. E não é diferente o caso de de Walter Benjamin, especialmente com a história de publicação de suas obras que em parte acompanho aqui, que vai das encomendas ao autor com indicações quase sempre limitadoras, pedidos de alteração ao autor, intromissões na obra mesma para sua publicação, especialmente quando póstuma, com a publicação complementar de notas, prefácios e posfácios, que muitas vezes não esclarecem o estado primeiro do que se apresenta como livro.

Mais do que uma insurgência contra a tarefa – aqui no sentido benjaminiano do termo - necessária dos editores e organizadores, o que se pretende aqui é lançar luz sobre as contínuas decisões tomadas, para apreender o material como um espectro (quase) infinito de possibilidades de leitura. Para buscar realizar a tarefa do filólogo e do crítico, entendendo aqui que a filologia pode ser também um ponto de partida para a crítica.

As imagens de constelação, arquivo e dispersão, a que recorri para tentar descrever o material, talvez não se aproximem da sensação que ele causa: parece se tratar de um acervo móvel, que a cada aproximação se reembaralha e se apresenta em novas conformações, causando verdadeiras vertigens. Assim, são bem-vindas algumas pistas deixadas por esses mesmos editores: seriam boias salva-vidas para proteger ou iscas para capturar o comentador?

Sigo, aqui, de certa forma, uma das primeiras pistas deixadas. Confirmando a intuição de que fosse possível uma leitura dos textos que compõem Crônica Berlinense / Infância em Berlim pela lente da fotografia, o epílogo de Theodor Adorno para a primeira edição, póstuma, de Infância em Berlim (1950) já relacionava o escritor Walter Benjamin e Nadar, o fotógrafo (inventor da fotografia aérea), dizendo:

[…] as fotografias de contos de fadas [Märchenfotografien] da Infância em Berlim — não são apenas ruínas [vistas] da distante perspectiva panorâmica [Vogelperspektive] de toda uma vida, são também instantâneos aéreos, tirados pelo aeronauta, que pede gentilmente aos modelos que não se movam (1970, p. 76).91

Mesmo tendo encontrado o epílogo já a meio caminho desta pesquisa, é verossímil dizer que perseguir a pista das fotografias, a técnica fotográfica e suas metáforas para realizar a leitura da Infância em Berlim por volta de 1900 e de Berliner Chronik é mais um resultado da mais direta influência, talvez inescapável, do comentário de seu primeiro editor...

Q

UINQUILHARIAS

III

A questão do arquivo não é [...] uma questão do passado [...] É uma questão de futuro, a questão do futuro mesmo, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. O arquivo, se quisermos saber o que isto queria dizer, isso somente será de nosso conhecimento no tempo que há de vir.

Jacques Derrida, Mal de arquivo.

[Segunda] ilusão implicada no arquivo: a ilusão na crença. Ela consiste em encontrar modos de contornar a angústia que provoca o vazio de significação, ultrapassar a questão, colocar-se para além da cisão aberta por aquilo que, enquanto o lemos, devassa-nos. Chamamos esta ilusão de ilusão na crença porque, tal como a outra, ela é uma manifestação de horror porém, ali onde a primeira satura o sentido com referencialidade significante, esta segunda postula a transcendência como um para além da verificação documental. Admi- tindo, portanto, que, em toda operação de leitura, nos arquivos e acervos de escritores, há metamorfose e há transformação, somos levados a concluir que essa transformação deriva do próprio material que ali se acumula. […]. No caso da literatura, ela provém da linguagem, sua disseminação como poeira da vida, com a qual se armam as ficções axiológicas do presente.

Raul Antelo, O arquivo e o presente.

É interessante observar, emtretanto, como essas “páginas do lado”, Às vezes manuscritas, às vezes desenhadas ou pintadas, têm nexo próprio.

Flora Süssekind, Papeis colados.

Oferece-se, agora, mais uma arrumação possível, sem desassossego pelo que tem de arbitrário e com a esperança de que o leitor invente a sua própria. É que “arrumação possível” não há, muito menos definitiva. Ler sempre fora de ordem: eis a ordem correcta para ler esta coisa parecida com um livro.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego composto por

Bernardo Soares, ajudante ou guarda-livros na cidade de Lisboa

O trabalho em processo constitui, de certa maneira, a essencia da produção tardia de Benjamin […] O que é uma obra incompleta e como diferenciá-la da obra finalizada? Estamos acostumados a distinguir claramente entre dois conceitos e isso parece muito evidente na prática editorial corrente. Mas as coisas nem sempre são tão simples. Há obras que se apresentam como incompletas, cujo autor, no entanto, resolveu publicá-la assim mesmo.

Giorgio Agamben, On Benjamin’s Baudelaire

Reduzindo-se a um “modesto aparelho de gravação” (caracterização de Breton do poeta surrealista), Benjamin abre mão de qualquer reivindicação de autoria sobre seu trabalho: as palavras que copia são, afinal, não dele, mas pertencem a outras vozes, outras eras e, em sua maioria, adotam uma língua (Francês) que não é a sua. Preferindo deixar que os documentos que recolhe falem por si, Benjamin desaparece para o murmúrio intertextual do arquivo, presente apenas como a mão invisível que acopla aspas ao passado ou aloca passagens em novas constelações.

C

RÔNICA BERLINENSE

:

A

B

ERLIM VIVIDA DE

W

ALTER

B

ENJAMIN

IV

https://www.walter-benjamin.online/seite/suche/wba_398_04 https://www.walter-benjamin.online/seite/suche/wba_398_05

Walter Benjamin: Berliner Chronik [WBA 398/04] Walter Benjamin: Berliner Chronik [WBA 398/05]

O caderno de capa de couro marrom tem 60 de suas páginas de papel bege e translúcido no formato 10X15,5 cm preenchidas com o texto Berliner Chronik [Dimensões do caderno: 11.3 X 17.2 cm]. A maioria das folhas do caderno só está preenchida na página da frente, com uma escrita apertada e em tinta preta, apagada em alguns pontos. No caderno de couro se encontra também o texto Spanien 1932, que começa na última página do caderno virado ao contrário, de modo que os dois textos se direcionam para o meio do caderno (WuN 11.2, p.61).

Berliner Chronik foi publicado em GS VI p. 465-519 [Tradução em processo com referência ao manuscrito e publicações em livro no anexo].