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4 Câmera, revelador, fotografias Dada!

4.2 Disparadores: fósforo e luz

Quase chegando ao fim das imagens da Infância, a peça “A Lua”, traz, em meio a penumbra, uma fonte luminosa. Jennings nota, nessa passagem, um pendant fotográfico para “Loggias”, cuidadosamente construído, criando, assim, uma moldura fotográfica que funcionaria como chave de leitura essencial para o texto como um todo, como Jennings indica na passagem a seguir:

Como em “Loggias”, a arquitetura dos domicílios [de Berlim] aparece em “A Lua” como um aparato ótico. Um feixe pálido de luz da lua invade a câmara através das venezianas - e se não nos lembrarmos de uma câmera de visão, com sua orientação em direção ao objeto, o quarto com seu interior escurecido sugere o uso pré-fotográfico da câmara escura, com sua escrita leve e direta, photo graphein” (Jennings, 2011, p. 42).

Diante de uma peça que evoca a luz – elemento essencial da fotografia – de forma tão intensa, é digno de nota, que, entre as peças que se movem entre Crônica Berlinense e Infância em Berlim, a impactante imagem de iluminação intensa do flash fotográfico, a saber, a combustão explosiva do pó de magnésio, tenha sido simplesmente suprimida. Considerando, por exemplo, o apagamento das menções à imagem fotográfica entre o Datiloscrito de Berlim e o Datiloscrito de Paris, parece produtivo retomar a imagem – ou, para relembrar a “cena na biblioteca” de Talbot (Capítulo II), buscar olhar além do matiz violeta do espectro de luz. Concordando com Jennings que o caráter estrutural de Infância em Berlim seja fotográfico, mas recusando entender o Datiloscrito de Paris como “a versão mais elaborada” (2011, p.35) do complexo, e preferindo, assim, seguir a leitura da Crônica e da Infância como pendants uma da outra, ou ainda, um rebus, retomo, então, mais uma vez, a imagem da explosão de pó de magnésio presente na Crônica. Assim como o fogo é o “fermento

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da modernidade” [Y1a, 2], a fonte de luz - incandescente e rápida feito um relâmpago como o flash – é essencial para o desenvolvimento da fotografia.

Para além dos indícios de imagens fotográficas rastreáveis pelo texto, ainda que não de forma direta dependendo da versão, Infância em Berlim, em sua estrutura, fragmentária, de peças móveis e justapostas, mas que contam com uma moldura,142 tem na fotografia também o modelo de sua construção.143 Cada peça, assim, traz pelo menos uma imagem condensada, como se o flash (do estúdio onde se realizam as ampliações talvez?) desse acesso a uma imagem e permitisse, assim, a expedição às lembranças, repetidas vezes. Ou, ainda, como se iluminasse intensamente o garoto Walter e, em volta, aqueles pequenos pontos brilhantes remanescentes da explosão do pó de magnésio fossem partes soltas dessa infância, detalhes do cotidiano da criança (a volta de trem, a assinatura da professora, a escrivaninha após a aula, a coleção de borboletas, o jogo que ensinava a ler e escrever, o telefone que tocava à tarde) que não se ofuscam com a intensa luz que as ilumina. Ao contrário, se detivermos o olhar, são da mesma matéria da grande explosão. Assim, o momento de iluminação repentina do flash está no princípio da Infância, princípio que é a luz. A imagem da iluminação ofuscante e seus resíduos que guardam luz própria, dispersos pelo ambiente não precisa ser descrita, ela se faz visível na estrutura mesma de Infância em Berlim.

4.2.1 Ajustar o foco, ler

Desdobrando um pouco mais a leitura, podemos entender a penumbra que predomina na atmosfera da Infância como a “luz do hábito” de que fala Benjamin na passagem da Crônica que retoma o flash. Assim, cada peça constitui um “instante de rememoração” (GS VI, p.488). Retomando a escavação do mesmo ponto, isto é, desdobrando ainda uma vez: cada uma dessas peças, de atmosfera penumbral, aguarda ainda a iluminação de um agente externo: o leitor: há, em cada uma das peças, que já entendemos como imagens de memória, imagens resultantes do encontro passado-

142 Ver capítulo I, em que é descrito o método de escrita e pensamento de Benjamin, entendido em sua

maneira móvel como uma estratégia de sobrevivência da escrita.

143 Ver capítulo II, em que retomo o trabalho de Jessica Nitsche sobre os usos da fotografia por Walter

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presente, como relâmpagos, como as imagens dialéticas – detalhes em cada uma das peças que permitem percorrer o livro à maneira do leitor.

Nas fotografias que podemos ler dispersas em Infância, vamos encontrando percursos de leitura. Com a fotografia de Benjamin criança, que desaparece, “era retrato, agora não é mais”, entendemos a escrita memorial distante da autobiografia e, focalizando um pouco mais, logo vemos o rebus, a fotografia de Kafka criança, autor que buscava evitar responder sobre sua identidade, tornando-se ele mesmo irreconhecível, ainda que permanecesse sempre no centro de seus escritos (GS II, p. 677) – e logo encontramos as assinaturas camufladas deixadas pelo autor de Infância. Em espaços despovoados, sem os rostos que figuravam na Crônica, como instantâneos inspirados nas fotografias de Atget, vemos Benjamin construir, no centro da escrita – pois é o adulto, em primeira pessoa, que recorda seu passado, ainda que não revele completamente sua identidade – um conjunto de peças memoriais: sem a identificação de quem as viveu, os instantes de rememoração podem ser de qualquer um que os leia, uma escrita, assim, “necessária e social” (2013, p.69, grifo meu). Se pensarmos numa escrita à moda fotográfica, a retirada dos retratos aqui descrita, justifica-se ainda uma vez. Os retratos, os rostos nas antigas fotos, como vimos, possuem uma beleza melancólica incomparável, e se refugiam justamente no culto à rememoração (Benjamin, 2012b, p.189), impossibilitando evitar que o sentimento de nostalgia tome o corpo e o espírito, como diz desejar o autor das “palavras prévias” da Infância Berlinense (2013). Por isso, tal culto nostálgico dos retratos antigos, por não se encontrar mais nas fotografias contemporâneas ao autor, deve também recuar. A escrita contemporânea de modelo fotográfico deve acompanhar o movimento (de Atget), inquietante, cujo fruidor “pressente que deve buscar um caminho definido para se aproximar” (Benjamin, 2012b, p.189) dela.

Estamos, em Infância, diante de um texto que não dá outra saída ao leitor a não ser alfabetizar-se fotograficamente – vimos, em “Pequena História da Fotografia” que o autor clamava por uma alfabetização fotográfica. Não se trata de dizer que Benjamin cria fotografias com palavras. Com Jennings (2011), seria mais adequado afirmar que Benjamin busca criar peças que tenham a legibilidade de uma fotografia. Os textos, tornados imagens fotográficas para efeito de leitura, são também

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formas da experiência histórica – esta, por sua vez, deve se tornar legível como imagem. Isso, finalmente, evoca o procedimento da des/montagem, constitutivo de muitos textos de Benjamin, e que, em Infância, assume o rumo inesperado e, ao mesmo tempo, radical, de deslocar uma fotografia para outros textos, a saber, a fotografia de Benjamin/Kafka, que lampeja em dois de seus ensaios.

Da exigência de não se pensar cada peça como uma fotografia traduzida em palavras – embora elas guardem muitas camadas semânticas intrinsecamente ligadas ao campo da fotografia –, mas como peças literárias que demandam a capacidade de ler fotografias, descrever esse procedimento imagético como ecfrase pode ser problemático144. Ainda que haja, de fato, a evocação de imagens muito concretas nos textos de Benjamin, não se trata de modo algum de fazer fotografias, mas de se exigir do leitor a capacidade de ler imagens (fotográficas).