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2 Entre Cânones e Convolutos: Teses sobre a História

2.1 Estrategista no front das publicações

Não são poucas as histórias de forte intervenção do Instituto (e outras publicações) nos escritos de Benjamin. A preparação do famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” conta idas e vindas de diferentes versões do texto, modificado de tal modo pela redação do Instituto que seria possível relatar uma recusa ou até uma censura por parte do Instituto para o ensaio. Foi só em 1983, após a organização dos Gesammelte Schriften, que se encontrou, no arquivo Horkheimer, a chamada “segunda versão” do ensaio, que retoma hipóteses de Brecht e contém os conceitos mais genuinamente benjaminianos – sobre a aura e a capacidade mimética - e ora rechaçados pela dupla de diretores do Instituto, Adorno e Horkheimer 13.

A situação não era uma exceção nas tentativas de Benjamin em publicar suas ideias, o que o fez adotar estratégias que o permitissem “passar criticamente de contrabando a própria posição, com o gesto da exposição leal” (Lindner, 2006, p.457).

13 Ainda que o ensaio tenha sofrido tamanha censura, as ideias ali contidas, que à época de sua

publicação pouco ou nada repercutiram, mais tarde foram apropriadas pelos próprios diretores, Adorno e Horkheimer, e passaram a figurar, em citações explícitas ou veladas em quase todos os estudos sobre mídia a partir, especialmente, da década de 1980. Detlev Schöttker chega a fazer uma breve relação de ensaios de Adorno, principalmente sobre literatura, que seriam devedores dos ensaios de Benjamin e não citam o autor propriamente, como os ensaios sobre Proust, Hölderlin e Karl Kraus (Schöttker, 1999, p. 85 nota 171). Sobre o ensaio da “Obra de arte”, também Schöttker faz um detalhado capítulo de comentário à edição que traz as diferentes versões, intitulada Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit und weitere Dokumente (2007). A “segunda versão” foi incluída no volume VII dos Gesammlete Schriften. No Brasil, uma edição de 2014, organizada por Márcio Seligmann-Silva, com tradução de Gabriel Valladão Silva, completa o acervo do leitor, indicando as variantes entre as versões. Antes, o leitor brasileiro tinha acesso às versões publicadas nos anos 1970 em GSI, mais notadamente afins ao pensamento da Escola de Frankfurt, em tradução de José Lino Grünewald (1980) e Sérgio Paulo Rouanet (1985), esta última a mais conhecida até hoje.

Ironicamente, chegou a usar suas estratégias justamente para falar do Instituto, numa contribuição para a revista Maß und Wert, onde publicou o artigo “Ein deutsches Institut freier Forschung” [Um Instituto alemão de livre pesquisa], sob as condições de que o artigo não fosse de cunho ou tema comunista e também de que se destinasse à seção de críticas, onde não havia espaço para artigos longos (Wizisla, 2015, p. 14). Benjamin, então, tinha um duplo desafio: escrever de forma laudatória sobre o Instituto (marxista) observando as restrições do editor e, ainda, deixar transparecer suas reservas. O artigo foi enviado ao editor com uma observação preliminar que revelava uma especial queda do autor para os enigmas, as adivinhações e as mensagens cifradas:

As páginas 1, 2, 3 e 11 formam a moldura do manuscrito. As páginas 8, 9, 10 compõem um bloco, que pode ser alocado nesta moldura como um todo fechado ou acrescido de outras páginas. As páginas restantes 4/5, 6, 7 podem ser alocadas individualmente ou em conjunto, atentando aqui apenas para que a página 6 não figure sem as págunas 4/5 (o contrário é factível). A extensão mínima do manuscrito compreende, então, menos de três páginas completas, e a máxima cerca de oito páginas (GS III, p.685).

Erdmut Wizisla (2015, p.19) nota que, com essa observação preliminar, Benjamin oferecia ao redator ao menos onze possibilidades de combinação e publicação do artigo, e, ainda assim, o redator exclui a página 11, indicada como parte da “moldura” do artigo. Esse modo de construção móvel, com a possibilidade de intercambiar blocos de texto, será uma tônica da produção benjaminiana, que, ainda com Wizisla, “torna sua construção flexível, variável e, ao mesmo tempo citável e vedada contra abusos” (2013, p.22). Esse modo de escrever e pensar – que difere daquele do quebra-cabeças, onde cada parte tem um lugar precisamente definido, apenas à espera da resolução – garante o imaginado conhecimento livre (livre desenvolvimento das ideias e orientado para a liberdade do pensar, em sua forma mesma, proposta do Instituto afinada com os objetivos de Benjamin), e está, em sua versão benjaminiana, muito mais associado às práticas da montagem e da colagem das vanguardas do início do século 20, cujas produções não escondem o aspecto “fora de lugar”, ao contrário, tornam as marcas do desencaixe imprescindíveis para o resultado

apresentado.14

Passagens é, dentre os escritos de Walter Benjamin, locus classicus para a reflexão sobre os procedimentos de montagem e colagem na escrita do autor, decerto por conta das palavras do próprio autor na anotação N 1a, 8:

Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os (2007, p.508).

Esse procedimento, no entanto, embora seja frequentemente associado a momento tardio ou maduro da produção de Benjamin, já dá pistas de rondar sua produção desde tão cedo quanto, pelo menos, A origem do drama barroco alemão15. Em seu prefácio à tradução brasileira do livro, Sérgio Paulo Rouanet explicita a pista que cria o arco entre os dois trabalhos:

Benjamin quer ser lido como um mosaico, mas até certo ponto esse mosaico tem de ser construído pelo leitor. Nem sempre as peças estão ordenadas. O livro tem grandes articulações, dentro de cada capítulo, mas não existem parágrafos, dentro de cada articulação. Cabe ao leitor separar e juntar os fragmentos. O livro é um mosaico também em outro sentido: é, em grande parte, um conjunto de citações. Elas têm uma função precisa: são estilhaços de idéias, arrancadas do seu contexto original, e que precisam renascer num novo universo relacional, contribuindo para aformação de um novo todo. Já é, em embrião, a técnica da montagem que chegaria à sua plenitude nas Passagens de Paris […] (1984, p.22-23, grifos meus)16

Também Rouanet presta atenção à demanda de participação ativa do leitor na

14 Esse procedimento é tão mais rico quanto for realizado livremente por cada leitor – e não só pelo

escritor – extrapolando os limites de cada texto que se entenda como unidade. Esse trabalho, se bem sucedido, apresentará alguns modos de extrapolar os limites da organização dos editores e formará constelações próprias diante da obra de Walter Benjamin.

15 Seria possível argumentar ainda que no interesse de Benjamin pelo círculo de Jena em sua tese de

Doutorado O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão estaria ainda outra pista para essa característica tão intrínseca à poética do autor.

16 Susan Buck-Morss em seu Dialética do Olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens recorre ao

mesmo arco em sua leitura de Passagens, defendendo que Benjamin é dono de um método filosófico que ela chama de dialética do olhar, tal o título de sua pesquisa; anos mais tarde, Alexia Bretas recompõe o arco para investigar o sonho na obra do autor em A constelação do sonho em Walter Benjamin.

construção do texto e na apresentação fragmentária – ainda que não tão evidente na tese de Habilitation – da obra do autor. Seu modo de construção se despede das linearidades e hierarquias, ainda que muitas vezes opte por criar molduras, se preocupando com o início e o final – mantendo os elementos, ainda assim, equivalentes. O exemplar de Hannah Arendt de “Sobre o conceito da história”, a forma de Rua de mão única ou das recordações da Infância – tratadas neste trabalho com mais atenção – e, sem dúvida, o maciço citacional17 de Passagens são exemplos dessa poética que salta aos olhos a cada texto. Mas, ao ampliarmos o ângulo de visão sobre a produção do autor, veremos uma anotação, se não idêntica, por demais parecida em “Sobre o conceito da história” e Passagens; o pequeno corcunda pula da Infância para o ensaio sobre o colecionador Fuchs para a “História”; o modo de ver infantil ressurge nas Passagens, e se torna linguagem em peças radiofônicas; uma fotografia some de uma peça na Infância e reaparece em ensaio sobre Franz Kafka, não sem passar por ensaios sobre mímese e semelhança; fotografias imaginadas (será?) mudam de ângulo entre Rua de mão única e Infância, as duas em Berlim; a visão da coluna da vitória açucarada, causada por alucinógenos, se torna epígrafe de suas recordações infantis depois de anotada entre as lembranças no caderno de couro marrom que carregou para o exílio; o parque Tiergarten, também em Berlim, abre a Crônica, reaparece na Infância e os mapas pouco servem àquele que sabe se perder; anjos sobrevoam (ou estariam caídos?) o natal da Infância, a reflexão sobre a História, os enigmas, a carta ao amigo…

É assim que se justifica a inclusão da organização proposta pela edição crítica (WuN) num rol de uma leitura em constelação dentre as muitas possíveis. A opção por agrupar o material do espólio em convolutos que os organizadores consideram temáticas, “por obra” ou um “complexo de obras” - ainda que apoiada por grande parte da crítica especializada - é uma intromissão em um arsenal de textos cuja natureza permite (e demanda) a participação ativa do leitor. Melhor dizendo, com Perloff, “Os leitores e leitoras, libertados da interferência pelo autor ou autora, podem seguir o seu próprio caminho pelo texto, permitindo aos seus múltiplos subliminares sentidos que tenham pleno efeito” (2013, p.50).