• Nenhum resultado encontrado

O último tema deste capítulo diz respeito à questão da contribuição da análise comportamental do direito para a crítica das metas sociais vinculadas às diversas normas jurídicas (contingências sociais normativas). Como ponto de partida, cabe admitir francamente que, como ocorre com a grande maioria das concepções naturalistas nas Ciências Humanas, a abordagem comportamental não se propõe a definir cientificamente os valores últimos sob os quais caberia aos seres humanos balizar suas vidas em sociedade (SKINNER, 1953).

do modelo de regularidades comportamentais que compõe a norma prática em questão.

O mais próximo de uma definição abrangente de meta social última a que o mais influente psicólogo comportamental - o norte-americano B. F. Skinner - chegou foi a uma sociedade utópica (SKINNER, 1948), com a qual ele buscou demonstrar, de maneira didático-ilustrativa, como os princípios já bem estabelecidos da ciência do comportamento humano poderiam ser utilizados no governo109 de uma comunidade, sem, entretanto, aprofundar-se no questionamento sobre a desejabilidade ou bondade intrínseca das metas sociais perseguidas e obtidas por tal comunidade, tais como, igualdade social total, ausência de conflitos violentos, ausência de competição, entre outras.

Qualquer que seja o mérito filosófico da utopia skinneriana, enquanto defesa de certos valores últimos em detrimento de outros, ela não se distingue em nada das demais utopias imaginadas pelos filósofos, ao longo da história da Filosofia Política ocidental110, exceto nos fundamentos

teóricos com que Skinner busca demonstrar a possibilidade prática da organização social idealizada por ele.

Vale notar, entretanto, para começar a introduzir o nosso ponto de vista, que uma das peças de resistência dessa e de outras obras de Skinner, isto é, a crítica intransigente à punição como modo válido de se obter metas sociais, por meio da imposição do que estamos chamando de contingências sociais normativas, não está fundamentada em argumentos éticos propriamente ditos, mas na avaliação - por sinal, muito criticada por outros psicólogos comportamentais (STADDON, 1993; CATANIA, 1998) - de que a punição é ineficaz no controle do comportamento, ao contrário do reforçamento positivo, não apenas pelos efeitos colaterais produzidos, isto é, as reações emocionais dos atingidos pela punição, quanto pela manutenção do comportamento punido no repertório do indivíduo atuante, o qual, portanto, retornará aos níveis anteriores aos de antes da apresentação do estímulo punitivo, tão logo a contingência

109 Na verdade, autogoverno, pois se trata de uma comunidade sem governo formal instituído, ao estilo

democrático-radical rousseauniano.

110 Descontado o linguajar agressivo, não seria impróprio atribuir à comunidade utópica skinneriana a mesma

punitiva seja descontinuada (SIDMAN, 1989).

Não nos interessa no momento, discutir as virtudes e os defeitos desse posicionamento, em termos do seu fundamento teórico. O ponto é que a argumentação utilizada para tratar de um tema tido como essencialmente ético111 - o da validade da punição como meio de se obter

metas sociais por intermédio do direito - se vale de uma conexão causal entre a conduta que se quer manter em níveis de ocorrência mínimos ou ótimos, ou seja, a meta social, e a eficácia do método punitivo para a obtenção desse resultado. Destarte, mantidos esses parâmetros técnicos, questões relativas aos meios de obtenção das metas sociais podem ser solucionadas independentemente da desejabilidade ou não dos mesmos por quaisquer outras razões, já que um meio ineficaz, ou que traga efeitos colaterais insuportáveis, ou prejudiciais à meta em questão, ou a outras metas sociais, é, em razão mesmo dessas características empiricamente verificáveis, indesejável em alguma medida, a ser avaliada conforme o caso.

É verdade que uma argumentação empírica dessa natureza não consegue justificar um determinado modo de obtenção de metas sociais em termos absolutos, já que o analista comportamental pode apenas dizer, confrontado com um elenco de modos possíveis, qual o mais eficaz, considerados todos os parâmetros técnicos, os quais, no caso, são aqueles relativos aos efeitos comportamentais da imposição de contingências sociais normativas envolvendo determinadas condutas e respectivos reforçadores e punidores. Entretanto, na imensa maioria dos casos práticos de decisão sobre a imposição ou não de contingências sociais normativas, se trabalha com metas sociais relativas e com escolhas entre meios alternativos com diferentes tipos de limitações, em termos dos parâmetros empiricamente verificáveis aludidos acima. De tal sorte que a mera exclusão de um ou vários meios alternativos possíveis, em função de limitações dos mesmos, cientificamente fundamentadas,

111 Não custa lembrar que a expressão grega ‘ethos’ - em português, ‘caráter’ - tem muito do significado do que

hoje conhecemos por ‘personalidade’, que pode perfeitamente ser traduzido em linguagem comportamental por ‘repertório comportamental’, havendo, portanto, de se esperar que a Ética seja, em grande parte, uma disciplina aplicada da ciência do comportamento humano, o que está muito bem representado em um dos maiores clássicos

suprirá muito bem a falta de uma convicção absoluta na superioridade do meio afinal escolhido. Para não mencionar o fato de que, sendo um processo de experimentação social, sempre haverá a possibilidade de variáveis contextuais forçarem uma modificação nos prognósticos, implicando a alteração da contingência, a fim de adequá-la ao fim perseguido. Para finalizar esse tópico, convém aludir ainda a duas questões. A primeira diz respeito ao fato de que, nos modernos ordenamentos jurídicos, as questões de avaliação ética de medidas tomadas por entidades governamentais e privadas têm sido, cada vez mais, atribuídas ao Poder Judiciário, em função principalmente do que se pode chamar positivação dos valores últimos, também chamados princípios, geralmente em nível constitucional. Para dar conta dessa demanda, surgiram doutrinas ditas argumentativas112, entre as quais, por exemplo, a do sopesamento de princípios (ALEXY, 1997). Ora, uma das fraquezas deste tipo de solução e, por extensão, da própria atuação dos juízes no cumprimento dessa nova função reside na falta de critérios objetivos para se atribuir pesos aos valores últimos (princípios) a serem postos na balança. Tendo em vista que se trata freqüentemente de decidir entre a imposição de determinadas contingências sociais normativas em busca de metas socialmente desejáveis113, as quais, por outro lado, afetam o cumprimento de outras metas socialmente desejáveis114, a

análise comportamental do direito, assim como outras abordagens científico-naturalistas do Direito, pode ser uma fonte de critérios objetivos para o sopesamento de valores últimos, na medida em que o grau em que um valor é atingido pela não-imposição de uma contingência

da literatura ético-filosófica de todos os tempos, a Ética a Nicomacos, de Aristóteles.

112 Para os fins estritos da presente discussão, basta esclarecer que a idéia por trás da qualificação das doutrinas

em questão como argumentativas é que determinados metacritérios relativos à própria forma ou qualidade da argumentação seriam suficientes para a decisão do mérito, no sentido de que a melhor solução de mérito é a que reune os melhores argumentos.

113 Todo e qualquer valor pode ser traduzido em meta social. Por outro lado, toda meta social relevante para a

discussão de contingências sociais normativas a serem impostas juridicamente deve poder ser traduzida em condutas a serem reforçadas, punidas, ou tratadas indiferentemente (mantidas nos níveis usuais), este último caso equivalendo ao que na terminologia kelseniana se chama de ‘permissão negativa’.

114 Um exemplo recente no direito brasileiro foi o da confrontação entre a meta social de proteção à privacidade

dos cidadãos por intermédio da proibição do acesso de autoridades governamentais e privadas aos dados bancários e fiscais dos mesmos, em relação à meta social de combate a práticas criminosas diversas que vão da ‘lavagem’ de dinheiro advindo de outras atividades criminosas, passando pela sonegação fiscal, corrupção política, entre outras, que implica o acesso dessas mesmas autoridades aos dados bancários e fiscais dos

social normativa, em homenagem à proteção de outro valor, pode ser um critério relevante para se atribuir peso ao mesmo, se a contingência social normativa em questão for a única eficaz, em relação àquela meta social objeto da decisão judicial115.

A segunda questão diz respeito não mais à escolha, mas à própria definição dos valores últimos. Voltando ao exemplo da comunidade utópica de Skinner, observamos que o autor não discute em seu livro o valor intrínseco das conquistas sociais obtidas pela comunidade, tais como as já mencionadas igualdade de condições de vida e consumo, ausência de disputas violentas, ausência de competição, inexistência de acumulação de capital privado, e outras. Podemos ir além, observando que Skinner trata tais resultados como decorrências, por assim dizer, colaterais do seu método comportamental não-punitivo de obtenção do que se poderia chamar de reforçadores básicos dos seres humanos, ou seja, alimentação, sexo, vestuário, lazer, medicina, convivência social, educação, cuidado das crianças e dos idosos, principalmente.

Novamente, não iremos discutir aqui se o modo como Skinner constrói uma teoria do comportamento social, a partir dos princípios desenvolvidos pela Psicologia Comportamental, é ou não válido, o que ficará para o último capítulo deste trabalho. Porém, a tese subjacente a todo o livro, segundo a qual os valores mais importantes em uma dada comunidade social, em última instância, estão relacionados às contingências sistêmicas ou ecológicas enfrentadas pelos membros da comunidade para a obtenção dos meios básicos de sobrevivência e reprodução –chamados de reforçadores primários por muitos cientistas comportamentais -, é um ponto em comum entre várias abordagens científicas no âmbito das Ciências Humanas, o qual também será o ponto de vista do presente estudo (SCOTT, 1971; KUNKEL, 1967; ALEXANDER, 1979, 1987; BAUM, 1994; HARRIS, 1990; CONTE; CASTELFRANCHI,

cidadãos.

115 Cumpre notar que, do ponto de vista da análise comportamental, tais definições sobre graus de

comprometimento de valores (metas) e possibilidade ou não de meios alternativos são empíricas, o que significa que podem ser alteradas, por isso que se trata de uma análise vinculada a um processo de constante

1995).

Por fim, cabe ainda ressaltar que, se somarmos os conhecimentos científicos relacionados às contingências sociais (estruturais) e ecológicas ligadas à sobrevivência e reprodução da comunidade aos relativos às contingências mais específicas de viabilização das metas sociais postas pela comunidade para a atuação das autoridades públicas e organizações privadas, pouco resta para ser considerado como excluído a priori116 de uma abordagem jurídica

científico-natural, como pretende ser a análise comportamental do direito, cuja fundamentação teórica é o objeto da seqüência deste trabalho.

experimentação social.

116 O que não significa que não se irá ou não se deverá fazê-lo. A propósito, a mera possibilidade, defendida no

texto, de que se possa discutir os valores sociais, especialmente se e na medida em que forem expressos como metas sociais, de um ponto de vista científico não implica que devamos fazê-lo, embora claramente essa seja a nossa posição. Em outras palavras, pode-se aceitar o argumento do texto de forma restritiva, como mera possibilidade, a qual, entretanto, é descartada por razões de princípio. Argumentar diferentemente seria incorrer na falácia naturalista, porquanto a mera possibilidade acima referida é um estado de coisas factual, do qual não decorre a conclusão normativa de que se deva atualizá-la.

PARTE II

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO COMPORTAMENTO INDIVIDUAL