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É comumente aceito que, independentemente de a doutrina jurídica tradicional poder ou não ser transformada em ciência normativa do direito autônoma, como pretende Kelsen, existe um domínio de conhecimento técnico do qual o doutrinador ou jurista é o detentor. Em outras palavras, poder-se-ia dizer, segundo essa visão mais ou menos generalizada entre os juristas, que o doutrinador tradicional é, na realidade, um tecnólogo do direito, na especialidade que lhe é própria, a qual tem vários nomes, mas que podemos denominar genericamente de Dogmática Jurídica, incluindo desde disciplinas gerais como a Hermenêutica Jurídica, até aquelas particulares aos vários ramos do direito positivo, como o Direito Penal, o Direito Administrativo, o Direito Tributário e assim por diante.

Relativamente a esse aspecto, a posição da análise comportamental do direito é francamente concordante, até porque o conhecimento teórico ou declarativo (BAUM, 1994), do ponto de vista da Psicologia Comportamental, é uma forma de comportamento em comunidade96, no caso, uma comunidade verbal (SKINNER, 1957), portanto, não poderia haver conhecimento jurídico dogmático, se não houvesse uma comunidade verbal de especialistas nesse tipo de conhecimento.

(BLACK, , 1989), a teoria sócio-jurídica realista (TAMANAHA, 1999), os estudos jurídicos críticos (KELMAN, 1987) e a corrente denominada Direito e Biologia Evolutiva (FROLIK, L. A. (Ed.), 1999).

96 O comportamento em comunidade é, segundo o ponto de vista adotado neste trabalho, a regra, em se tratando

O que não impede, entretanto, que a análise comportamental do direito, assim como outras propostas de abordagem científico-natural do Direito, venha a influir nesse conhecimento técnico especializado do jurista, com base na crítica dos pressupostos factuais aceitos no interior do mesmo, especialmente no que tange à natureza da relação entre a norma, chamada de contingência social normativa, e o comportamento, seja do criador/aplicador do direito, seja do indivíduo ou grupo de indivíduos cuja conduta é descrita na norma jurídica, como pressuposto da sanção positiva ou negativa prevista na mesma97.

Em relação a certos aspectos, mais específicos do contexto operacional do direito, a relação causal entre contingência social normativa e meta social, ou mesmo entre sanção e conduta, no interior da própria contingência social normativa, pode ser discutida nos limites do conhecimento técnico especializado do jurista; ao passo que, em relação aos aspectos não estritamente operacionais, faz-se necessária a remissão aos conhecimentos de disciplinas científicas, como a própria análise comportamental do direito, o que é representado na Teoria Geral do Direito pela distinção entre ponto de vista interno ou formal e ponto de vista externo ou material de análise do direito, cabendo ao jurista a análise de um ponto de vista interno ou formal98 e ao cientista social, filósofo ou quem mais detenha o conhecimento necessário,

discutir a norma de um ponto de vista externo ou material, inclusive no que tange à relação causal pressuposta na mesma. Nesse sentido, a distinção entre conhecimento jurídico e extrajurídico reflete as contingências da divisão do conhecimento que acompanham a divisão social do trabalho.

Essa mesma distinção entre conhecimento jurídico e extrajurídico, entretanto, serve também a

‘padrão comportamental coletivo’.

97 Uma visão crítica dos pressupostos factuais inerentes aos conheciementos jurídico-dogmáticos é parte do

conhecimento não-formalizado de qualquer jurista profissional, o que, dado o alheiamento desse profissional dos conhecimentos científicos necessários para avaliar criticamente tais vivências, leva a uma espécie de ‘ceticismo’ característico, o qual circula sob as mais variadas formas, sendo as piadas sobre advogados, juízes e promotores as mais divertidas e, freqüentemente, as mais ácidas.

98 Um exemplo ilustrativo seria o da escolha entre duas interpretações conflitantes de uma norma jurídica, a

primeira baseada na expressão literal (interpretação gramatical) e a segunda na localização da norma no texto legal (interpretação topológica). Outro seria o da decisão quanto a um caso de conflito de competência entre dois

uma concepção crescente entre os juristas de que o direito, ou parte dele, não deve ser submetido a um julgamento extrajurídico, no sentido da verdade ou falsidade de suas premissas factuais, explícitas ou implícitas. Em outras palavras, para essa concepção, o fundamento do direito positivo não seria, como discutimos acima, a sua pertinência causal para a obtenção das metas sociais respectivas, mas sim derivaria logicamente de normas jurídicas hierarquicamente arranjadas, situando-se no topo dessa hierarquia um conjunto de preceitos obrigatórios, muitas vezes chamados de princípios, que podem ou não estar escritos na Constituição do país, sendo variada e difusa a origem atribuída a tais princípios, indo desde o legislador constituinte originário, passando pela consciência política liberal, até os valores comunitários e abstrações do gênero99.

Para os juristas adeptos da concepção acima, assim como os conhecimentos jurídico- dogmáticos, os princípios supremos também seriam, supostamente, parte do conhecimento técnico dos juristas, o que, ao colocar esses profissionais no topo da hierarquia social (POSNER, 1999), aproxima sintomaticamente tal concepção de uma ideologia corporativista, embora devamos admitir que o mero fato de um determinado grupo ser prestigiado por uma teoria não significa necessariamente que a mesma não seja empiricamente válida. Novamente, o problema é que, tanto quanto ou mais até que a teoria pura do direito kelseniana, essa concepção do direito fundamentado logicamente por princípios cujo conhecimento nos é dado pelos juristas não foi capaz até hoje de oferecer quaisquer meios de verificação/falsificação minimamente independentes quanto ao conteúdo desses princípios, não sendo de estranhar que os proponentes das diversas variantes dessa concepção apelem para entidades etéreas como o ‘juiz Hércules’, ‘nós, o Povo’, ‘a Constituição Originária ou tal como concebida pelos Pais Fundadores’ e outras semelhantes, diante das quais só resta ao jurista adepto de alguma

juízes.

99 Essa abordagem difere da teoria pura do direito, tendo em vista que, para esta última, não há necessariamente

qualquer subordinação lógico-semântica entre as normas hierarquicamente superiores e as demais, mas tão- somente uma delegação de competências jurídicas entre autoridades criadoras/aplicadoras do direito (KELSEN,

dessas correntes duas opções: aferrar-se à opinião de seu filósofo do direito predileto, tal como apareceu na última obra publicada (a penúltima não serve, pois foi repudiada in totum pelo autor); ou esperar ansiosamente pela resposta que o mesmo dará à crítica arrasadora de seu opositor costumeiro, também filósofo do direito, que certamente constará do próximo volume a ser publicado.

Ironias à parte, a questão é tão antiga quanto à reflexão sobre os fundamentos racionais do direito, que tem no clássico A República, de Platão, uma referência para os cultores da Filosofia Política. Como apontaram autores como Posner (1999), essa concepção, que nega ao conhecimento extrajurídico legitimidade para criticar os fundamentos do direito, principalmente, no caso das disciplinas científicas, os fundamentos factuais, vai de encontro à tendência universal do conhecimento, no sentido da sua especialização, em conformidade com a progressiva divisão social do trabalho.

Na direção diametralmente oposta a essa concepção autonomista e anticientífica do conhecimento jurídico, a pretensão da análise comportamental do direito, em comum com outras propostas de abordagens científico-naturais, é possibilitar ao jurista livrar-se da sua crescente dependência dos autores de doutrinas meramente discursivas sobre o direito - sem desprezá-las de todo, claro, mas reconhecendo francamente a esterilidade abstrata que as caracteriza em última instância -, para convidá-lo a somar esforços com as Ciências Naturais que se ocupam do ser humano, em particular, no caso da abordagem defendida por nós, a ciência do comportamento humano, em sua versão multidisciplinar atual.

O método específico que estamos propondo neste trabalho, como um dos fundamentos para a análise comportamental do direito, é o dos quase-experimentos em âmbito social, que se operacionaliza concebendo-se as normas jurídicas positivas como sendo a parte prescritiva, constituída por contingências sociais normativas, de normas práticas de controle social do comportamento humano, que incluem ainda metas sociais e regularidades comportamentais

1990).

empiricamente válidas, sendo que a hipótese a ser verificada em cada um desses quase- experimentos é a própria relação causal entre a imposição da contingência social normativa e a obtenção da meta social. Essa relação de causalidade hipotética constitui o foco da maneira alternativa de se conceituar a eficácia do direito a qual discutiremos em seguida, antes de passar à ultima seção deste capítulo, que irá tratar da contribuição da análise comportamental do direito para a crítica das metas sociais vinculadas às diversas normas jurídicas, retomando em parte a questão do fundamento direito que acabamos de discutir.