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Análise crítica da concepção africana dos direitos do homem adotada

4. ORIGEM E ESTRUTURA DA CARTA AFRICANA DOS DIREITOS

4.4 A CONCEPÇÃO AFRICANA DOS DIREITOS DO HOMEM ADOTADA

4.4.1 Análise crítica da concepção africana dos direitos do homem adotada

A necessidade da adoção de um sistema africano de promoção e proteção dos direitos do homem na África, levou os redatores da Carta a inserir uma concepção baseada nas tradições históricas e valores da civilização africana como marco referencial de uma cultura distante da europeia.

É inegável que a existência de um instrumento de tamanha dimensão tenha baseado suas formulações nesses valores culturais dos povos africanos. Contudo, deve-se admitir que houve um certo exagero na valorização dessas culturas ou valores tradicionais.

A África evoluiu como todos os outros continentes e, no mesmo sentido, evoluiu também o seu povo, que durante a colonização assimilou valores culturais europeus, diferentes dos que vivenciavam. A globalização e as informações proporcionadas pelas mídias deram outro cunho à civilização africana, o que permite dizer que aquela cultura tradicional existente antes da colonização já não o é hoje, nestes tempos da globalização.

É verdade que existem algumas práticas tradicionais positivas em matéria de promoção e proteção dos Direitos Humanos na África, mas que constituem uma exceção, visto que existem, por outro lado, algumas também que não coadunam com a atual filosofia do direito moderno adotado pelos países africanos e, muito menos, com a prática da própria Carta Africana. A título de exemplos: o infanticídio que continua a ser admitido por algumas culturas africanas como forma de afastar o mal na família; a morte de certas crianças por alegações de serem outros seres não humanos (espíritos incorpóreos); espancamento até a morte de pessoas por acusação da prática da feitiçaria, entre outras práticas que algumas culturas africanas condenam. Tudo isso permite dizer, na voz de Rosa Có139

Portanto, os redatores da Carta esqueceram-se que o uso dos meios previstos para efetivação dos direitos nela consagrados, já não se coadunam com os valores da sociedade tradicional africana de hoje, visto que a África moderna, representada na Carta, tem pouco de tradicional em matéria dos Direitos Humanos, o que requer meios mais eficazes de promoção e proteção desses mesmos direitos. Ao contrário, na África tradicional havia a falta da presença do

que:

Os autores da Carta deixaram-se levar pela emoção de enaltecer as tradições culturais que tinham sido subalternizadas durante o periódo colonial, e que a África independente tratou de valorizar pomposamente ao ponto de se colocar excessivamente como modulação do sistema africano de proteção dos direitos humanos.

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Estado e da consciência dos problemas da proteção dos Direitos Humanos, o que reduz estas sociedades ao modelo comunitário de resolução de conflitos por meio das regras costumeiras, muitas vezes contraditórias aos padrões modernos da dignidade da pessoa humana.

Por outro lado também, a concepção africana, baseada no privilégio do grupo em detrimento do indivíduo, falha no sentido em que o objetivo de qualquer sistema de promoção e proteção dos Direitos Humanos preconiza a criação de meios e mecanismos de proteção do indivíduo contra o grupo, ou contra o próprio poder público, quando acontecem certas distorções ou violações dos seus direitos garantidos quer por leis internas ou internacionais.

A concepção africana prevista na Carta falha ainda na matéria da conciliação, porque a forma de resolução dos conflitos pela conciliação, na África tradicional, já não se adequa à África moderna. Atualmente se litiga na África tal como se faz na Europa, através de processos acusatórios que requerem o contraditório entre as partes em litígio. Hodiernamente, os chefes tradicionais ou de família têm poucos poderes de intervenção na resolução de conflitos, assim como os laços de parentesco, que tendiam a reduzir a conflitualidade entre os membros da família, clã ou tribo nessas sociedades tradicionais africanas já não se operam. Deste modo, não se deve criar um sistema de proteção dos direitos e pensar nestes valores arcaicos de uma civilização antiga que já não se adapta aos tempos modernos.

Por outro lado, o conceito de grupo na sociedade tradicional africana já não é o mesmo na contemporaneidade, falando em termos concretos de Estado como uma sociedade politicamente organizada. E se existia uma harmonia entre o indivíduo e o seu grupo na África tradicional, o mesmo não se pode dizer em relação ao Estado com o indivíduo na modernidade africana, onde a maioria das realizações do indivíduo já não se encontram no grupo, mas num sistema de promoção e de proteção dos Direitos Humanos assente numa base individualista. Na África tradicional o indivíduo é absorvido pelo grupo, e é dentro dele que se defende e se protege através dos vivos e também dos mortos.

O sistema africano peca também, por outro lado, na sua concepção, visto que o grande violador dos Direitos Humanos na África é o Estado através das lideranças políticas, o que não justifica o regresso ao passado (tradição cultural) das formas conciliatórias de resolução de conflitos, uma vez que o Estado moderno africano adotou a postura do Estado ocidental com uma cultura jurídica de promoção e proteção dos Direitos Humanos contrária àquela tradicional africana.

Pelo exposto, cumpre referir que, no ambiente político que envolveu a criação da Carta Africana, era de se esperar uma atitude emocional por parte dos seus redatores omitindo-se muita coisa. No entanto, tentaram inovar o sistema com base nas tradições culturais africanas e deixaram muitos assuntos de lado. Esqueceram-se de que um sistema deste tipo, baseado na tradição cultural, colocaria em segundo plano uma proteção efetiva dos Direitos Humanos na África, uma vez que este sistema não se aplica apenas ao âmbito restrito do continente africano, mas extrapola suas fronteiras quando é chamado a resolver uma demanda de violação das suas disposições. É preciso, neste contexto, fazer uma rescritura da Carta de forma a adequá-la à realidade atual da África, de modo a poder servir melhor os cidadãos dos Estados signatários na efeitvação dos seus dispositivos.