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Análise Crítica de Discurso

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.1 Análise Crítica de Discurso

A corrente teórica de Análise Crítica de Discurso (doravante ACD) é relativamente nova. Segundo Meurer (2005), a atual denominação só começou a ser utilizada a partir da década de 80, como seguimento da linguística crítica (critical linguistics), iniciada no final dos anos 70. Dessa teoria, de acordo com Gouveia (2000), a ACD adota a concepção de linguagem como prática social, em que o discurso engloba a noção de fragmento/ parte/ instância de uso da linguagem. Nestes termos, o discurso é visto como uma prática social determinada que se relaciona com outras práticas sociais.

Assim, conforme Papa (2008), com seus alicerces na teoria social crítica, a ACD tem se mostrado uma corrente interdisciplinar que busca compreender a relação dialética que há entre discurso e práticas sociais. Um exemplo dessa interdisciplinaridade pode ser percebido na relação que há entre ACD e Linguística Sistêmico-Funcional. Como aponta Meurer (2005), Fairclough, expoente da teoria crítica, incorpora a concepção hallidayana de texto, além de utilizar a GSF como

instrumento de análise. Do mesmo modo, a GSF se serve de alguns conceitos ou orientações metodológicas da ACD. Essas duas teorias, explica Papa (2008), complementam-se teórica e metodologicamente.

As perspectivas de análise de discurso com enfoque na GSF e ACD permitirão identificar não somente os padrões linguísticos e sociais da linguagem em uso, mas também os contextos relacionados à vida social, intimamente conectada com outras práticas sociais (econômica, política, cultural, etc.). Nesse sentido, a análise interdiscursiva deve, necessariamente, envolver não apenas o texto em si, mas o social, mediando linguagem e contexto, estabelecendo uma relação dialética entre os dois, com o objetivo de melhor compreender os significados construídos no texto (PAPA, 2008, p. 60-61).

Como observa a autora, o cruzamento dessas duas correntes teóricas permite o estudo da linguagem em uso, conectada ao contexto e às práticas sociais que envolve. Dito de outra forma, considerar somente o texto enquanto materialização linguística não dá conta da apreensão plena dos significados nele construídos. Em vista disso, neste trabalho, utilizamos categorias da GSF e o modelo tridimensional da ACD, buscando verificar como as escolhas léxico-gramaticais presentes em fábulas atribuídas a Esopo e em fábulas de Millôr Fernandes se relacionam ao contexto em que foram produzidas para construir significados nos textos.

Para a ACD, esses significados são sempre relacionados a questões sociais e ideológicas, pois, como destaca Meurer (2005), nessa teoria os textos são permeados por relações de poder e por ideologias. Dessa forma, discursos e indivíduos são afetados mutuamente.

As análises, sob o ponto de vista da ACD, conforme Meurer (2005, p. 81), não se interessam apenas pelos textos em si, “mas em questões sociais que incluem maneiras de representar a „realidade‟, manifestação de identidades e relações de poder no mundo contemporâneo”. Na perspectiva crítica, defende Fairclough (2007), a linguagem é concebida como discurso, ou seja, como prática social determinada por estruturas sociais.

Por prática social, o autor entende as articulações de diferentes tipos de elementos sociais associados com áreas particulares da vida social. Assim, a linguagem é parte da sociedade, é um processo social que, ao mesmo tempo em que condiciona é condicionado pela sociedade, de tal modo que a relação entre ambas é dialética.

A linguagem, nessas condições, define certas possibilidades de usos e combinações e exclui outras, que são concretizadas em textos. Definido por Fairclough (2007) como objeto de estruturas e práticas sociais por meio do qual as pessoas podem se comunicar, agir e interagir no desenrolar de eventos sociais, o texto é concebido pelo autor, em comunhão com a LSF, como multifuncional.

Nessa concepção, um texto desempenha, simultaneamente, funções ideacionais, interpessoais e textuais, ou seja: representam aspectos do mundo físico, social e mental, estabelecem relações entre participantes e exprimem valores, dão coesão e coerência ao texto e conectam o texto com seu contexto situacional. Em forma de textos, os gêneros se realizam. Compreendidos por Fairclough (2007) como diferentes modos de ação, os gêneros são formas de interação que constituem relações sociais particulares entre interlocutores.

Nos gêneros, por sua vez, realizam-se os discursos como modos de representação, sendo sempre parte de práticas sociais. Do ponto de vista de Fairclough (2007), representação é uma matéria discursiva que pode representar uma mesma área do mundo de diferentes perspectivas e posições, já que podemos distinguir diferentes discursos. Essas diferentes perspectivas, posições e representações (conceito que retomamos na próxima seção), no entanto, são determinadas por ideologias.

A ideologia, na concepção de Thompson (1995), diz respeito às maneiras como o sentido é mobilizado, ou seja, construído e transmitido pelas formas simbólicas a serviço dos indivíduos e grupos dominantes. Em circunstâncias particulares, a ideologia serve para estabelecer e/ou sustentar relações sociais já corporificadas, das quais indivíduos ou grupos se beneficiam mais que os outros e, consequentemente, das quais alguns indivíduos ou grupos buscam preservar, enquanto outros buscam refutar.

Sendo assim, defende Fairclough (2001), as ideologias, como construções e significações dos mundos físico e social, se fundamentam nas práticas sociais e contribuem para a produção, transformação e legitimação das relações de poder. Desse modo, salienta o autor, ideologia está intimamente ligada a poder, pois a natureza dos pressupostos ideológicos embutidos nas convenções que guiam a sociedade depende das relações de poder subjacentes.

As relações de poder constituem a hegemonia, entendida por Fairclough (2001) como a manifestação e o exercício de poder de uns sobre os outros, de uma

classe social sobre outra ou de um domínio social sobre outro. As relações hegemônicas orientam as relações de hierarquia existentes na sociedade, estabelecem, mantêm e destroem posições e relações de subordinação e dominação. Conforme destaca Meurer (2005, p. 91-92), a hegemonia interfere de forma direta nos gêneros, “porque a escolha de textos e o seu modo de uso dependem frequentemente das formas de dominação estabelecidas, i.e, de quem possui mais, ou menos, poder em determinadas circunstâncias”.

Assim, da mesma forma que se filia ao poder, ressalta Fairclough (2001), a ideologia está estreitamente ligada à linguagem. Ao nos expressarmos linguisticamente, de modo consciente ou não, aspectos ideológicos dos autores e também dos prováveis destinatários são, inegavelmente, refletidos, corporificados nos mais diversos valores que cultivamos.

Tendo isso em vista, todo discurso e, consequentemente, qualquer texto não pode ser analisado exclusivamente em sua parte linguística. Um texto, na concepção de Fairclough (2001), é um produto do processo de produção textual. Esse processo inclui “o processo de produção”, do qual o texto é o produto, e o “processo de interpretação”, do qual o texto é um recurso. Assim, o discurso, enquanto o todo do processo do qual o texto faz parte, afirma o autor, envolve condições sociais que podem ser delimitadas como “condições sociais de produção” e “condições sociais de interpretação”.

As condições sociais, para Fairclough (2001), apontam para três diferentes níveis da organização social: o nível do acontecimento no qual o discurso ocorre; o nível da instituição social que constitui a matriz para o discurso; o nível da sociedade como um todo, como ilustra a Figura 1.

Figura 1 – Discurso como texto, interação e contexto (traduzido de FAIRCLOUGH, 2001, p. 21).

A análise plena de um texto, portanto, reforça o autor, deve levar em conta os três níveis de organização social, aos quais se relacionam em três estágios de análise: a descrição, a interpretação e a explanação. A descrição, explica Fairclough (2001), corresponde às propriedades formais do texto, léxico-gramaticais nos termos hallidayanos. A interpretação diz respeito à relação entre texto e interação (texto como produto e como processo). A explanação, por fim, corresponde às relações entre interação e o contexto social, em que o texto se relaciona ao contexto e vice- versa.

Ao analisar um texto podemos, então, observá-lo sob dois pontos de vista: um interno ao texto, e outro externo a ele. Baseado nesse pressuposto, nossa análise será orientada nesta perspectiva: da descrição linguística, passamos à interpretação dos dados e ao estabelecimento de relações com os contextos de situação e cultura. Todo este percurso, cabe salientar, foi traçado com a finalidade de verificar, a partir de manifestações linguísticas, os traços ideológicos que permeavam a época de produção das fábulas atribuídas a Esopo e a época de produção das fábulas de Millôr Fernandes. Com isso, por fim, tendo em mente que a linguagem nos permite construir e representar experiências, apreendermos as representações construídas e/ou reproduzidas no discurso.

Condições sociais de produção

Condições sociais de interpretação

Contexto

Processo de produção

Processo de interpretação

Interação

Com relação ao conceito de representação, trazemos, na sequência, algumas considerações com base em estudos no campo da psicologia social.