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CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.3 Análise das representações nas fábulas

4.3.1.13 A velha e o médico [FE7]

Na fábula [FE7] A velha e o médico de Esopo (Anexo C e descrições do sistema de transitividade e de avaliatividade nos Apêndices A e C, respectivamente), o primeiro Movimento do texto (Apresentação da situação) tem como ponto de partida uma oração verbal, na qual a velha, em posição ativa, dirige-se a um médico, em posição passiva:

A nomeação do personagem que inicia a fábula expressa uma apreciação negativa – velha. Juntamente com o Atributo doente dos olhos que o caracteriza, a velha é avaliada quanto à sua capacidade, sendo representada como frágil e debilitada fisicamente.

Assim, levando em consideração essa representação prévia do personagem velha e tendo o médico aceitado o chamado, na sequência do texto é apresentado como ele procedia nas visitas à casa de sua paciente.

(1) Uma velha, doente dos olhos, mandou chamar um médico mediante pagamento.

Na oração 4, no papel de Portador, a velha tem sua representação inicial reforçada. Velha, doente dos olhos e, ainda, estando de olhos fechados, torna-se ainda mais frágil e vulnerável. O médico, ativado como Ator, se aproveita dessa representação da velha e das circunstâncias expressas pelas orações 3 e 4 para roubá-la.

Desse modo, tendo em vista essas construções léxico-gramaticais, temos duas representações distintas. A velha, além de frágil e debilitada quanto à sua capacidade, agora é roubada, sendo representada também como vítima. O médico, por outro lado, é avaliado negativamente quanto à sua propriedade e veracidade. Diante da fragilidade de sua paciente, é representado como injusto e insensível. Ao realizar o processo roubar, é representado como desonesto, interesseiro e criminoso (ladrão).

No Movimento seguinte (Problematização da situação), percebemos a tentativa de inversão das representações construídas até e então. Para isso, defendendo propósitos e posicionamentos diversos, percebe-se, ao longo da narrativa, a apresentação de argumentos e a defesa de pontos de vista pelos personagens.

Na oração 7, como Portador, a velha (retomada pelo pronome ela) é caracterizada como curada. Essa caracterização funciona como argumento, aparentemente justo, para que o médico, como Dizente, tenha seu pedido – o pagamento – atendido. Na oração 9, a velha é ativada, então, experienciando o desejo de não pagar o médico, como evidencia a polarização negativa que acompanha o processo mental desiderativo (não querer).

Desse modo, as escolhas lexicais presentes nessas orações ressaltam a representação que o médico busca construir para a velha – desonesta – e para ele – vítima. Sob o ponto de vista do médico, ele cumpriu sua parte (a curou), a velha, ao contrário, não o fez (não quis pagar pelos seus serviços). Em virtude disso, ela é

(2) Ele veio e, (3) enquanto [o médico] lhe fazia compressas, (4) estando ela de olhos fechados, (5) ele roubava um a um os seus móveis. [FE7]

(7) e estando ela curada, (8) ele pediu o pagamento combinado. (9) E, como ela não

digna de sanção social, por isso é Meta do processo levar, que tem como Beneficiário Recebedor os juízes.

No Movimento 3 (Resolução da situação), a velha, por sua vez, procura desfazer as representações defendidas pelo médico e construir as suas, sob o seu ponto de vista.

Para fazê-lo, na oração 11, a velha, como Dizente, confirma seu estado apontado anteriormente, como indica a circunstância que verbaliza – depois de curada por ele. No entanto, a esse estado, contrapõe outro, caracterizado como pior do que antes, que é avaliado negativamente pela apreciação pior.

Na oração 12, as experiências verbalizadas pela velha, novamente como Dizente, indicam o porquê de tal avaliação. Antes de ser tratada pelo médico, a velha é ativada, realizando um processo mental perceptivo (ver). Agora, após estar curada por ele, é ativada não podendo realizar a mesma experiência, antes percebida, como indicam a polaridade negativa e a modalidade que acompanham o processo mental perceptivo (nada mais posso ver).

Assim, diante dos argumentos apresentados pela velha, as representações construídas pelo médico são anuladas e as construídas inicialmente para ambos os personagens são, em partes, retomadas. A velha, embora continue, teoricamente, frágil e vulnerável (por ser velha), não mais é representada como doente e debilitada fisicamente (já que está curada). Por outro lado, sua representação como roubada e, por isso, vítima, é ratificada (então nada pode ver, pois seus móveis foram roubados, um a um, pelo médico).

Pelo mesmo motivo, porém em posição oposta – de agente – o médico tem sua representação como desonesto, injusto, corrupto, ladrão e, como consequência, criminoso, confirmada (já que roubou, um a um, os móveis da velha). Seu crime, ainda que tenha sido cometido frente a uma velha doente dos olhos, foi percebido, pois foi tão sem escrúpulos que deixou pistas: a ausência dos móveis.

(11) Ela disse que havia prometido um pagamento se ele curasse sua visão, mas que agora, seu estado, depois de curada por ele, era pior do que antes: (12) “Pois então eu via e agora nada mais posso ver”, [a velha] disse. [FE7]

No Fechamento, último Movimento do texto, essas representações construídas para o médico e para seu crime são retomadas e destacadas, como verificamos na Moral:

As expressões maus e cobiça revelam julgamentos de propriedade, avaliando negativamente valores como maldade, ganância e corrupção. A oração mental cognitiva, por sua ordem, atribui aos homens maus, no papel de Experienciador, julgamentos de capacidade e tenacidade representando-os como descuidados e impetuosos.

Reportando-nos ao contexto social de Esopo e provável época de produção dessa fábula, podemos relacionar as representações construídas no decorrer da narrativa à posição social de escravo do fabulista. Fragilizado pela escravidão e marginalizado socialmente, Esopo, bem como os demais escravos e desfavorecidos economicamente da época, eram explorados pelos poderosos que se aproveitavam deles para adquirirem bens e poder.

Essa exploração, embora por vezes tentasse ser encoberta, como é o caso da fábula [FE1], em que o lobo busca incriminar o cordeiro para disfarçar sua maldade, ela é explicitada e conhecida pelos explorados. O cordeiro sabia de sua inocência e da crueldade do lobo.

Conforme Sousa (2009), mesmo que muitos escravos ocupassem posições de algum destaque, eram sujeitos a duras punições, caso desagradassem seus senhores e não tinham praticamente nenhuma liberdade, inclusive de expressão. Alem disso, enquanto alguns tinham uma vida menos sofrida, destaca o autor, outros eram submetidos a severas condições de vida e trabalho.

O fato de terem seu direito de expressão negado revela, justamente, a consciência dessa classe explorada e oprimida em relação aos desmandos e injustiças de que eram vítimas. Entretanto, caso ousassem se manifestar de forma desvelada sobre sua condição e sobre a maldade praticada contra eles pelos poderosos ou mesmo criticar o próprio povo, seus argumentos e críticas poderiam ser revertidos contra si mesmos.

(13) Moral: Assim, os homens maus, por sua cobiça, se esquecem de não deixar pistas contra eles. [FE7]

Prova disso é que Esopo retratava essas questões por meio das fábulas. Nelas, era possível retratar a realidade e criticá-la de maneira encoberta, fantástica, esquivando-se de punições, como ressalta Fedro (apud SOUSA, 2003).