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CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.3 Análise das representações nas fábulas

4.3.1.8 O macaco e o corvo [FMF4]

Na fábula [FMF4] O macaco e o corvo de Millôr Fernandes (Anexo D e descrições do sistema de transitividade e de avaliatividade nos Apêndices B e D, respectivamente), tal como se percebe em [FMF1] O lobo e o cordeiro, do mesmo autor, a estrutura léxico-gramatical que introduz o texto, Movimento 1 (Apresentação da situação), aparece com inversões tanto na fábula esopiana, quanto na de Millôr

Fernandes e pode ser percebida inclusive nos títulos: [FE4] O corvo e a raposa; [FMF4] O macaco e o corvo.

Embora dois dos personagens tenham nomes diferentes, sejam animais diferentes, os papéis que representam se equivalem nos dois textos: a raposa em [FE4] e o macaco em [FMF4]. Já o corvo é comum a ambos.

Na fábula esopiana, o personagem que inicia a narrativa na posição de Ator é o corvo, e o Experienciador é a raposa, que tem aquele como Fenômeno. Na fábula de Millôr, quem principia na posição de Ator é o macaco, que também é o Experienciador do processo que tem o corvo como Fenômeno:

Na sequência, tendo o macaco percebido o corvo com um pedaço de queijo no bico, tem início o segundo Movimento do texto (Problematização da situação).

Na oração 3, o macaco, como Dizente, verbaliza seu propósito: realizar o processo comer, que tem aquele queijo (o do corvo) como Meta. Assim, a intenção revelada pela Citação e o processo verbal vangloriar-se atribuem ao macaco julgamentos negativos de propriedade e capacidade, representando-o como soberbo, avarento e interesseiro.

Com tal propósito, o macaco utiliza-se, então, de artifícios linguísticos para satisfazê-lo, como é evidenciado pela Citação da oração a seguir:

No dizer do macaco, há uma vasta ocorrência de avaliações dirigidas ao corvo. Todas positivas, as apreciações bonito, lindo, maravilhoso, bem, negro, brilhante, luzidio, a mais bela de toda a floresta, acompanhadas de intensificações (maravilhoso, tão e mais), juntamente com a expressão de afeto compadre, visam a

(3) “Vou comer aquele queijo ou não me chamo macaco”, vangloriou-se o macaco. [FMF4]

(4) E [o macaco] berrou para o corvo: “Olá compadre! Você está bonito hoje! Lindo, maravilhoso! Jamais o vi tão bem! Negro, brilhante, luzidio. Penso que hoje, se quisesse cantar, sua voz seria a mais bela de toda a floresta. Gostaria de ouvi-lo cantar, compadre corvo, então poderá dizer a todo mundo que você é o Rei dos Pássaros”. [FMF4]

(1) [um macaco] Andando na floresta, (2) um macaco avistou um corvo com um pedaço enorme de queijo no bico. [FMF4]

representar o corvo como belo, dono de uma voz privilegiada e superior a todos os outros pássaros da floresta.

Todas essas avaliações, principalmente apreciações, configuram-se como elogios que buscam atiçar a vaidade do corvo. Desse modo, o macaco intenta desviar a atenção do corvo e afastá-lo de sua consciência sobre sua própria natureza. Física e naturalmente sem traços marcantes de beleza e associado à morte por causa de seu papel no equilíbrio do meio ambiente e de sua cor – preta – o corvo é comumente avaliado não como um animal brilhante e luzidio, mas como sombrio e triste, semelhante à ideia que se tem de morte, discutida em [FE2] e [FMF2]. Com esses elogios, o macaco busca ludibriar o corvo, a fim de conseguir apoderar-se do queijo. Diante disso, é evidenciada a avaliação quanto à tenacidade e veracidade do macaco, que o representam como esperto, falso e enganador.

No Movimento 3 (Resolução da situação), a sequência de orações materiais indicam o desfecho da narrativa e o êxito do macaco:

Na oração 5, o queijo é ativado realizando o processo cair. Isso nos leva a inferir que o corvo deixou-se envaidecer pelos elogios proferidos pelo macaco. Mais do que isso, ele realmente acreditou que a única condição para possuir a mais bela voz de toda a floresta e, com isso, poder dizer a todo mundo que é o Rei dos Pássaros seria experienciar esse desejo, expresso pelo processo mental desiderativo querer, no modo subjuntivo (quisesse). Em virtude disso, são evidenciados para o corvo julgamentos quanto à sua propriedade e capacidade que o representam como vaidoso e tolo, pois se deixa envolver por elogios, ainda que falsos.

Na oração 6, como consequência da ação realizada na oração anterior, o macaco é agente do processo devorar, confirmando que a estratégia linguística utilizada por ele foi eficiente, pois o macaco teve seu propósito alcançado. Assim, para o macaco são sinalizados julgamentos de propriedade e capacidade que encaminham sua representação como falso e desonesto, mas também inteligente e esperto, como é explicitado, na oração 6, pelo Atributo astuto.

(5) Naturalmente, o queijo caiu no chão (6) e imediatamente foi devorado pelo macaco astuto. [FMF4]

No último Movimento do texto (Fechamento), a falsidade e a desonestidade são retomadas, como ilustra a Moral:

O processo mental cognitivo polarizado negativamente – jamais confiar indica o comando para não experienciar a confiança em puxa-sacos. Essa expressão puxa-saco – traz a representação social, retomando Moscovici (2009), de que quem muito elogia e agrada nem sempre é verdadeiro e, por isso, pouco confiável. Ao mostrar-se muito gentil e prestativo pode estar encobrindo sua real intenção: prejudicar o outro.

Reportando-nos à inversão dos papéis léxico-gramaticais que se verifica no início da fábula e também a inversão no título, se comparados os textos esopiano [FE4] e de Millôr Fernandes [FMF4], percebemos uma relação com os valores cultivados pelos fabulistas e com o modo com que se utilizavam deles na fábula. Na fábula esopiana, é tematizado o personagem enganado (o corvo), ao passo que em Millôr Fernandes é tematizado o personagem enganador, mais esperto (o macaco).

Tal como destaca Coleone (2008), as fábulas esopianas repetem valores morais e éticos que buscam estabelecer e afirmar. Com isso, conforme Coelho (1984), objetivam educar o seu público: seus ouvintes, originalmente; seus leitores, hoje. Desse modo, primando pelas virtudes, como ressalta Sousa (2003), ao pôr em evidência aquele que se deixa enganar (o corvo) – ficou sem o queijo – Esopo incita as pessoas a não serem tolas e orgulhosas, mas inteligentes e humildes. Por outro lado, deixando a raposa em segundo plano, deixa também em segundo plano os defeitos que ela representa: a esperteza utilizada para enganar os outros e a falsidade.

As fábulas de Millôr Fernandes, ao contrário, como o próprio autor destaca em entrevista à Época, são amorais. De acordo com Brasil (2007), Millôr não revela preocupação com a virtude humana, em vez disso, chega até a desprezá-la e contrariá-la. Assim, ao destacar o personagem que engana e se sobressai (o macaco), chama atenção do seu leitor para a esperteza, para o fato de utilizá-la para conseguir as coisas. Ao deixar o corvo como coadjuvante, deixa também a humildade e, por que não, a inteligência em segundo plano. Afinal, como revela a

Moral – A sabedoria, nos dias de hoje, está valendo 20% da esperteza27 –, a inteligência é só um acessório, o fundamental (80%) é ser esperto.

Do mesmo modo, na oração 4, novamente há uma discrepância na estrutura léxico-gramatical entre as fábulas atribuídas a Esopo e as de Millôr Fernandes que revelam questões relativas a valores e também ao contexto social dos fabulistas. Em [FE4] a raposa verbaliza uma oração relacional sinalizando uma condição e uma capacidade não possuída pelo corvo (se ele tivesse voz). Em [FMF4], o macaco verbaliza uma oração mental que sinaliza uma condição e uma capacidade supostamente apresentada pelo corvo (se quisesse cantar).

Diante disso, a representação construída para as pessoas da época de Esopo é a de que eram mais sinceras, já que a raposa não mentiu ao corvo sobre sua voz. Já a representação para as pessoas da época de Millôr e, portanto, de hoje, é de que sejam mais desonestas, tendo em vista o fato de o macaco ter mentido para o corvo, supondo que este possuísse voz para cantar.

Considerando que os desfechos são semelhantes – em ambas as fábulas o corvo deixa cair o queijo – e que o nível de sinceridade seja diferente nas épocas de produção de cada um dos textos, temos que a representação quanto à capacidade das pessoas também seja diversa. Na sociedade de Esopo, as pessoas eram mais tolas, pois se deixavam enganar mais facilmente. Na sociedade contemporânea, de Millôr Fernandes, as pessoas são mais espertas, porém se utilizam da esperteza para enganar os outros.