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Durante a transcrição, leitura e edição dos testamentos, foram observadas riquezas históricas e lexicais presentes nos documentos analisados, sendo uma fonte imprescindível para diversos estudos dos campos do saber. Dessa forma, foi neces- sária uma leitura mais cuidadosa dos textos, que permitisse fazer uma análise contextual, social e cultural do período his- tórico que compreende a escrita dos testamentos analisados.

Alguns documentos apresentaram rasuras, mas feliz- mente este acaso não constitui perda do conteúdo dos textos. Independentemente de serem documentos antigos, apresen- tam uma grafia legível e se encontram em um estado razoável de preservação.

Era habitual ao período o uso de abreviaturas em diver- sas palavras, tais como Montrᵒ (Monteiro), Vª (Vila), Trᵒ (Termo), Promo ͬ (Promotor), Dispo (Despacho) etc. Todas as abreviaturas

foram devidamente desdobradas onde as intervenções do editor foram destacadas em negrito e em itálico, conforme já informado; há o uso da forma aõ para representar am. Foram mantidas as grafias originais, bem como o acento til na letra o como, por exemplo, em naõ, attribuiçaõ, conclusaõ, escrivaõ, tabelliaõ, tençaõ, baixaraõ, approvaõ, etc.

Nos testamentos, são deixados bens de variadas espé- cies, seja dinheiro, casas, fazendas, propriedades de terra, en- fim, são muitos patrimônios assegurados aos herdeiros dos testadores. Logo abaixo, apresentamos alguns dos bens dei- xados, são destacados os bens e as ocorrências das lexias nos contextos de uso de acordo com os registros nos testamentos analisados, vale ressaltar que é um recorte simplório dos per- tences deixados, uma vez que a quantidade de testamentos era considerável. Entre parênteses encontram-se o número do fólio (fl) de onde foi retirado o trecho do testamento e se este recorte compreende o verso (v) ou o rosto (r) do fólio. Após o contexto apresentamos uma análise explicativa dos termos empregados.

• Animais / Terra

“[...] Declaro que possuo sumas limitadas Cabeças de Cabeças de gado Vacum, e Cavallares [...] Declaro que possuo no meo Casal huma porçaõ de terras no Rio Quixeramobin Sitio denominado Povo grande, as quais houve por herança de meos Falecidos Pais [...].” (fl. 3v e fl. 4r).

Neste testamento, percebemos as lexias Cabeças de gado Vacum, e Cavallares que na verdade designa cada animal indi- vidualmente, isto é, cada “cabeça” representa um animal espe-

cífico. A palavra gado representa uma variedade de animais de grande porte, compreendendo, vacas, bois e semelhantes, por isso a necessidade de especificar vacum e cavalar, pois a espé- cie cavalar compreende equinos e muares, que, por sua vez, é gado também. Logo em seguida, o testador deixa uma porção de terras a um futuro herdeiro, o que era comum naquele pe- ríodo, sendo também comum esta propriedade de terras ser uma dos antepassados do testador.

• Ouro, prata/escravos

“[...] Declaro que pussuo varios bens como sejaõ oiro, prata, ga- dos, vacuns, e Cavallar, Escravos, Terras, das quais minha mulher aprimeira testamenteira tem inteiro conhecimento [...].” (fl.17v).

Neste testamento, percebemos que o poder aquisitivo do testador é imponente, onde são deixados jóias em ouro e prata, terras, gados, vacuns e cavallar. Percebemos também que são incorporados aos bens do testador os escravos, que neste período eram tidos como qualquer objeto, ou seja, se- guem a sequência dos animais, pois os escravos tinham o mes- mo prestígio de um animal. Vemos um aspecto histórico rele- vante para se compreender a sociedade do princípio do século XIX, que, aos olhos modernos, torna-se inconcebível.

• Terras / Família

“[...] Deixo o meo sitio de terras de plantas que tenho na serra de Monte Mor o Novo [...]os Lagos ameos sobrinhos Francisco Ribei- ro, Natonio Ribeiro, Jose Ribeiro, aminha sobrinha e a filhadas Maria Theresa, Joao Jose todos esses egual parte [...].” (fl.18v).

“[...] Declaro, que deixo as minhas duas a filhadas, digo, Sobrinhas filhas de meo Irmaõ Francisco Lobo dos Santos, morador em Ja- goaribe a cada huma cincoenta mil reis. Declaro que deixo ame- nina Francisca, filha de Manoel Beserra de Albuquerque por ser pobre e a filhada de minha mulher cincoenta mil reis [...].” (fl.45v).

Durante a leitura de todos os testamentos, ficou bem claro a preocupação dos testadores em assegurar um futu- ro confiável a seus parentes. Nestes testamentos o indivíduo especifica bem o seu patrimônio e divide-o em partes iguais entre os membros familiares que iram herdar, o que era pecu- liar em todos os testamentos essa descrição exata dos bens e a sua divisão. Mais uma vez, destacamos as terras como bens de grande valor, no caso um sítio com plantações, localizado na serra de Baturité, cidade situada próximo à Fortaleza, cujo nome antigo está dito no excerto acima.

• Fé

“[...] Declaro mais que os meos testamentos mandarão diser qua- tro Capellas de Missas com a esmola de seis centos e quarenta reis por minha alma. Declaro mais que dou ao Senhor do Bonfim cin- co enta mil reis [...].” (fl.33v).

A devoção ao Nosso Senhor Jesus Cristo, à Santíssima Trindade, ao Santo Antonio, ao Senhor do Bonfim, entre ou- tros, era bem presente na descrição dos testamentos. No que se refere a este testamento, são deixados quantias em dinheiro a capelas e para pagar as missas após a morte do testador. A fé também era um fator presente no corpus textual dos docu- mentos, o temor a Deus e o desejo de alcançar a salvação. Em muitos dos casos os bens eram doados à igreja, podendo ser

entendida como promessa do testador e/ou dívida com seu santo (a) de devoção. Esses são aspectos históricos e culturais interessantes da sociedade do século XIX.

• Caridade

“[...] meo Testamenteiro distribuirá dusentos mil reis por todas as pessoas pobres, e indigentes, que por tais forem reconhecidas, e que morem nesta Freguesia Declaro que sou Irmão terceiro de Saõ Francisco do Recife [...].” (fl.43).

Em casos esporádicos, os testadores deixavam seus bens a terceiros, pessoas que não eram membros familiares. Neste caso, são deixados bens em dinheiro aos desvalidos, possivel- mente aos moradores de rua daquele período e aos enfermos. Durante a narração dos pertences, os testamenteiros iam acrescentando em seus textos a localidade, o tipo de posse, a quem se destina determinada herança, por qual razão é dado determinado pertence ao indivíduo, dentre tantos outros por- menores. Na maioria das vezes, os testamentos eram redigidos devido ao testador está acometido por alguma enfermidade, ou seja, os patrimônios deixados só podiam ser entregues a seus herdeiros após a sua morte.

Enfim, nos testamentos analisados do século XIX, pode- mos tratar de vários assuntos, tais como: desejo de redimir os pecados e conseguir o amor divino; o local do enterro; missas; esmolas; relações familiares; vida material (descrição dos bens a serem deixados); pedidos de intercessão aos santos, a Jesus Cristo e ao Senhor Deus; instituições religiosas e caridades a desvalidos. Isso nos permite conhecer um rico material linguís-

tico, sobretudo, em torno do léxico, mas também informações importantes no campo do social, cultural e histórico da comu- nidade em que os textos eram escritos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A edição de testamentos é uma das maneiras que pos- sibilita a sua conservação e perpetuação histórica, já que evita o manuseio, favorece a leitura por pesquisadores ou leigos in- teressados no assunto, além de expor informações preciosas sobre a sociedade do período.

Consequentemente, são imensuráveis as dificuldades que acabam procedendo no desenrolar-se de uma pesquisa com testamentos. Uma adversidade rotineira está associada à colocação dos responsáveis pelos manuscritos, uma vez que “[...] alguns julgam-se seus proprietários, quando, de acordo com a legislação vigente, são apenas seus guardiães; outros, devido à falta de conhecimentos arquivísticos mais primários, partem para o abandono e a incineração” (ACIOLI, 1994, p.14).

Além do mais, pode haver o desinteresse daqueles que detêm esses testamentos e, acima de tudo, a inexistência de uma política competente que assegure a preservação e a ma- nutenção desses documentos, dificultando assim sua conser- vação e organização, fazendo com que a história se perca as- sentada ao descuido desses manuscritos.

Cada testamento é um reflexo em que se manifesta a vida e a última vontade do testador. São documentos extraor- dinários para um estudo histórico mais detalhado, infelizmen-

te ainda não há uma política séria voltada para a preservação destes textos, já que a compreensão das histórias de vida e do nosso passado que está presente neles merecia um cuidado específico e exclusivo.

REFERÊNCIAS

ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: FUNDAJ / UFPE, 1994.

BIDERMAN, M. T. C. As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P.; IS- QUERDO, A. N. (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2. ed. Campo Grande: UFMS, 2001.

DUBOIS, J.; GIACOMO, M.; GUESPIN, L.; MARCELLESI, C.; MARCELLESI, J. B.; MEVEL, J. P. Dicionário de linguística. Dir. e coord. de tradução de Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1993.

GAMA, A. R. Incursão na crítica textual. A Cor das Letras. n. 3, p. 11- 16, UEFS, 1999.

LIMA, I.; SILVA, P. G. E. Tipologia Documental. In: SAMARA, E. M. (Org.).

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MIAZZI, M. L. F. Introdução à Linguística Românica. São Paulo: Cul- trix, 1972.

OLIVEIRA, A. M. P. P. Regionalismos Brasileiros: a questão da distribui- ção geográfica. In: OLIVEIRA, A. M. P. P.; ISQUERDO, A. N. (Orgs.). As

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SILVA, J.P. O Método em Filologia. SOLETRAS. n. 23. p. 249-269, São Gonçalo, UERJ, 2012.