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RELAÇÃO DO MARANHÃO: O ROMANCE HISTÓRICO

Nascido em Viçosa do Ceará, o escritor Raimundo Batista de Aragão (1921-2003) é considerado um dos principais histo- riadores cearenses. Em sua coleção História do Ceará, em cinco volumes, dedica o primeiro à colonização do Ceará, cobrindo um período que vai de 1531 a 1621. É no capítulo II, denomi- nado “A igreja no processo de colonização do Ceará (Missões)”, que estão abrigados os textos sobre as principais atividades jesuíticas no Ceará, entre as quais, a Relação do Maranhão, do já referido padre Luiz Figueira e Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, do padre Antônio Vieira. Além de historiador, R. Ba- tista Aragão também trafegou com mestria pela literatura de ficção, produzindo crônicas, contos e romances. Dos seus ro- mances publicados, tomamos como objeto de análise Bravos da Missão, de 1979, tendo em vista a motivação histórica que fez com que o autor aproximasse sua narrativa de ficção dos fa- tos registrados no documento escrito pelo padre Luiz Figueira. Como dito, o romance Bravos da Missão (1979) consiste na versão ficcional dos fatos históricos registrados no documento Relação do Maranhão. No que diz respeito à estrutura formal da

obra, esta se apresenta organizada em quatro capítulos, os quais não recebem nenhuma denominação específica. Cada capítulo, no entanto, é composto por partes que ocupam não mais que cinco páginas. Dessa forma, o capítulo I é composto de sete par- tes. A primeira é denominada de “O dia das candeias” e a última “A missa”. O segundo capítulo é constituído de vinte e três par- tes. A primeira denominada de “Viagem e devaneio” e a última “A grande festa”. O terceiro capítulo, por sua vez, tem sua primeira parte denominada de “O nicho de palha” e a última “As três cru- zes”. Esse capítulo é composto de vinte e duas partes. Composto de sete partes, o quarto e último capítulo tem sua primeira parte nomeada de “Esperanças e desenganos”, enquanto a última re- cebe a denominação de “A última noite”. O livro possui trezentas e dezenove páginas, sendo a última dedicada às notas remissi- vas, notas bibliográficas, hábitos, costumes e generalidades. Na introdução do livro, assinada pelo próprio autor, lê-se:

BRAVOS DA MISSÃO é um romance histórico ins- pirado em acontecimentos já encobertos pela poeira do tempo. Fontes diversas, de pesquisa, foram os instrumentos de que se valeu o autor para estruturá-lo. Crônicas da época, obras de caráter sociológico, de renomados autores e vestígios ainda não apagados, da tradição oral. (ARAGÃO, 1979, p. 5, grifos do autor).

Conhecedor dos meandros que tecem ambos os cam- pos do conhecimento, História e Literatura, R. Batista Aragão sabe muito bem dos imbróglios existentes entre representan- tes desses dois campos de estudo. Se para uns nada há na li- teratura que possa contribuir para os estudos historiográficos,

para outros os dois campos são tão próximos quanto comple- mentares. Se, por um lado, a História tem recorrido à Literatura como fonte de pesquisa, a recíproca é mais do que verdadeira. Ao exercer as atividades, de historiador e ficcionista, percebe- mos o autor passar ao largo de tais questionamentos, apenas se doando ao exercício de ambos. Contudo, sobre a vã discus- são acerca da disputa inócua produzida por alguns represen- tantes das duas áreas de conhecimento, convém ressaltarmos o que afirma Massaud Moisés (2000) acerca de Heródoto e a relação entre fato e ficção:

Heródoto, considerado o pai da História, mistu- rava pormenores curiosos, propiciados por suas andanças, aos relatos míticos, e amparava-se tan- to nas fontes escritas como na transmissão oral, não raro assumindo perante os acontecimentos, graças à liberdade inventiva (que mal permite sa- ber onde para a verdade e onde principia a men- tira), a perspectiva de um autêntico ficcionista. (MOISÉS, 2000, p. 166).

A união entre História e ficção nada tem de recente, haja vista as narrativas épicas que objetivavam registrar os feitos he- roicos de um determinado povo. Nesse caminho, têm-se entre os mais representativos poemas da literatura universal a Odisseia e a Ilíada (ambos do séc. VIII a.C), de Homero; Os Lusíadas (1572), de Camões, e Orlando Furioso (1516), de Ariosto; por exemplo.

Já no século XX, um dos pensadores que mais fez por aproximar a História da Literatura, observando seus desvelos e idiossincrasias, foi Gyorgy Lukács (1885-1971). Sobre essa ques- tão, o filósofo húngaro publicou no ano de 1947 a obra O Ro- mance Histórico. Tomando como eixo de análise a obra Ivanhoé

(1819), de Walter Scott (1771-1832), Lukács não almeja esgotar as abordagens concernentes à História ou à Literatura, mas apontar a relação entre a realidade e a ficção; observando como a forma, o conteúdo, as personagens e as temáticas se interrela- cionam, e com que tipo de questionamentos dialogam, levan- do-se em consideração o meio social no qual estão inseridos e os conflitos que possam se dar no tempo em que ocorrem.

Mas, por qual razão teria Aragão optado por produzir seu texto ficcional a partir de um documento histórico? Sobre isso, as palavras de Lukács acerca da relevância do romance histórico nos parecem suficientes para a complementação de uma resposta para a questão proposta. Afirma o autor:

No romance histórico [...] trata-se de figurar de modo vivo as motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira precisa, retratando como isso ocorreu na realidade histórica. E é uma lei da figuração ficcional [...] que, para evidenciar as motivações sociais e humanas da ação, os acon- tecimentos mais corriqueiros e superficiais, as mais miúdas relações [...] são mais apropriadas que os grandes dramas monumentais da história mundial. (LUKÁCS, 2011, p. 60).

Assim sendo, é possível compreender que a proposta do autor de Teoria do Romance (2009) é centralizar a discussão na relação existente entre o fato e a ficção ou, em outras palavras, investigar o mais detalhadamente possível as relações existen- tes entre a História e a Literatura. Sabendo-se que O Romance Histórico de Lukács foi publicado pela primeira vez no ano de 1947 (traduzido para o português em 2011), é possível que o autor de Bravos da Missão tenha tido acesso ao texto, uma vez

que seu romance em questão nada deixa a dever aos postula- dos teóricos propostos pelo autor húngaro.