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SEÇÃO 1: UM PANORAMA GERAL DA PESQUISA

2.2 Análise dos dados

2.2.2 Análise das entrevistas semiestruturadas

O processo de realização das entrevistas semiestruturadas ocorreu em um espaço de aproximadamente um ano e meio. Isso permitiu que a análise fosse feita em um processo contínuo, contribuindo para o surgimento de novos questionamentos. Além disso, com o intuito de complementar estes dados, utilizaram-se diversos documentos públicos das instituições. Em alguns casos, relatórios e avaliações institucionais foram solicitados aos setores responsáveis e prontamente disponibilizados.

Após a organização de todo o material (entrevistas transcritas, notas do caderno de campo, resumos das conversas e documentos oficiais das duas instituições), realizou-se uma profunda leitura e imersão nos dados. Inicialmente foram destacadas “palavras-chave”, realçando a sequência exata com que apareciam nos dados. O objetivo foi buscar ideias, pensamentos ou conceitos importantes que pudessem se repetir, contribuindo para o surgimento das primeiras ideias e insights sobre os dados produzidos e dos primeiros esboços de como discuti-los. Por exemplo, no trecho da entrevista com a docente Ana, foram destacadas as seguintes palavras-chave: assistencialista, coitados, negro que entra pelas

cotas, aproveitar e aproveitar a oportunidade (Quadro 6).

Quadro 6 - Recorte da entrevista com a docente Ana.

Ana: “O que acontece no caso brasileiro: a questão das ações afirmativas parece uma questão assistencialista. Então ‘ah, coitados, nós estamos dando essa vaga para eles.’ Não tem essa. Ao mesmo tempo que nessa lógica que cada um é responsável pelo seu sucesso e insucesso, quando um aluno negro que entra pelas cotas desiste, fica aquela frase bem simplista ‘está vendo, nós demos a oportunidade para ele e nem assim ele quis. Ele não soube aproveitar. Realmente esse grupo não quer nada com nada, não quer estudar.’ Isso fica uma coisa muito simplista. Essa é a questão que eu trago, como pensar em uma política pública que realmente não seja assistencialista nesse sentido que eu estou colocando, que coloca o negro sempre com um coitado ou como alguém que não sabe aproveitar a oportunidade que teve, se a lógica toda é eurocêntrica? Quer dizer, como é que se faz isso, se levando em conta que já existe uma escola que faz essa seleção. Está claro o que quero dizer? Eu entendo que há uma certa contradição”.

Após esse processo, “códigos” foram construídos, nomeados segundo o contexto, obtidos através de possíveis conexões e agrupamentos entre palavras-chave que apresentavam ideias e situações similares. Por exemplo, o código assistencialismo é formado por trechos de entrevistas que, direta ou indiretamente, evidenciam ideias a respeito das políticas de ações afirmativas como formas de mera assistência ou políticas de caridade. Outro código, denominado igualdade de oportunidades, foi formado por trechos de entrevistas que refletem as ações afirmativas como uma política que contribui para que estudantes pertencentes a grupos sub-representados vençam as barreiras do acesso. Além disso, durante o processo de análise, foi necessário incluir “subcódigos”. Por exemplo, os subcódigos docentes distantes, sensibilidade, critérios de avaliação e repensar a prática fazem parte do código prática docente. Este último traz relatos das experiências dos participantes no contexto acadêmico em relação ao envolvimento de docentes com os estudantes beneficiados por ações afirmativas. O trecho destacado da entrevista com o docente Marcos (Quadro 7) exemplifica essa situação. Este foi agrupado no código prática docente, com referência ao subcódigo sensibilidade. Em outro exemplo, a estudante Aurélia relata suas dificuldades iniciais relacionadas à disciplina de Cálculo I no curso de engenharia (Quadro 8). O recorte foi agrupado no código Início da vida na universidade, com referência ao subcódigo Começo tumultuado.

Quadro 7 - Código “Prática Docente”; Subcódigo “Sensibilidade”. Recorte da entrevista com o docente Marcos.

Marcos: “Eu acho que estes programas de acompanhamento ajudam muito. A principal dificuldade de um aluno aqui é saber o que ele tem que fazer na universidade, é criar hábitos de estudo. Não é bem enfrentar resolução de problemas, estudar matemática. É assim, é estudar com regularidade. Então, se você, de certa maneira, coloca alguém apoiando este estudo regular, então acho que, uma vez que você consegue entender como as coisas funcionam, você começa a se envolver com aquilo e ‘vai embora’ (deslanchar). Então, eu acho que, para o primeiro ano, principalmente nos cursos de matemática, tem que fazer uma seleção de professores com carinho, professores que trabalham no começo do ano têm que ser professores que tenham sensibilidade à dificuldade que muitas pessoas têm em aprender matemática. No primeiro ano, também é necessário que outros alunos que possuem mais experiência auxiliem o aluno de primeiro ano. Fazer com que os alunos mais experientes auxiliem os alunos ingressantes. E também a estrutura que a universidade já está dando. As condições mínimas dos alunos se ambientarem (financeiro, moradia, alimentação). Eu acho que a ideia é por aí. Você, desde o começo, fazer uma boa seleção, em cada um dos cursos, de professores ou equipes que se proponham a acompanhar o aluno pelo menos no primeiro ano, para eles se ambientarem e se saírem melhor”.

Quadro 8 - Código “Início da vida na universidade”. Subcódigo “Começo tumultuado”. Recorte da entrevista com a estudante Aurélia.

Aurélia: “No geral, eu acho que a gente tem uma deficiência muito grande, quando a gente faz uma escola pública no ensino médio, quando vai entrar na universidade. Durante minha graduação em direito, eu não tive dificuldades porque as minhas professoras de língua portuguesa, história e geografia eram excelentes. Com essas realmente eu aprendi. Então, eu tive uma ligeira dificuldade em filosofia, sociologia e algumas disciplinas que eu vi ‘mais ou menos’ na escola. Mas eu achei mais fácil. Eu via alguns colegas meus que tinham saído de escolas particulares que tinham mais dificuldades que eu. Agora, quando eu entrei aqui em engenharia elétrica, eu já senti que a dificuldade foi o contrário. Porque, durante as aulas de Cálculo, por exemplo, Cálculo I eu fui reprovada na primeira vez que eu fiz, porque os professores partem do pressuposto que você sabe algumas coisas do ensino médio que realmente você tinha que saber, é como requisito pra você entrar. Só que às vezes você entra na universidade sem dominar completamente aquele assunto e depois o professor não quer repassar pra você. Ele diz ‘estude por conta própria’, mas às vezes você não sabe nem por onde começar, porque você não sabe a sua deficiência”.

Em seguida, com base nos relacionamentos entre os diferentes códigos e na forma com se conectavam a outros códigos, foram construídas diversas “categorias”. Claro que isso não ocorreu de forma linear. Conforme realizava-se a análise, categorias eram feitas e excluídas, transformadas em subcategorias e em categorias novamente, em um movimento de “ir e vir” constante. Nesse sentido, a manipulação dos dados através do software Nvivo contribuiu

significativamente. Por exemplo, após vários e vários refinamentos, elaborou-se a categoria Dificuldades da própria estrutura dos cursos universitários. Nesta, foram agrupados ideias e conceitos, construídos a partir das entrevistas com docentes e gestores, que apontavam para possíveis dificuldades no ensino e aprendizagem em sala de aula relacionadas à própria estrutura da universidade. A título de exemplo, o Quadro 9 destaca os códigos agrupados nesta categoria.

Quadro 9 - Códigos agrupados na categoria “Dificuldades da própria estrutura dos cursos universitários”.

1. Bacharelado Interdisciplinar; 2. Disciplinas de matemática; 3. Problemas com o ensino médio;

4. Pressões dos professores e das disciplinas; 5. Prática docente;

5.1. Docentes ‘distantes’; 5.2. Sensibilidade;

5.3. Critérios de avaliações; 5.4. Repensar a prática;

6. Orientações para os estudantes calouros.

Por fim, “temas” foram construídos a partir do relacionamento entre as categorias que se mostravam conectadas por assuntos semelhantes ou que poderiam ser discutidas em conjunto. Este processo permitiu a construção de onze temas, seis deles relacionados às entrevistas com docentes e gestores e cinco com os estudantes (Quadro 10 e Quadro 11).

Quadro 10 - Temas construídos a partir das entrevistas com docentes e gestores. 1. Concepções dos docentes sobre política de ações afirmativas;

2. Surgimento das ações de permanência para estudantes beneficiários de ações afirmativas; 3. Ações institucionais que poderiam contribuir para a permanência e progresso dos estudantes, exclusivas e não exclusivas para beneficiários de ações afirmativas;

4. Ações realizadas através de docentes; 5. Identidade e poder;

6. Não rotulação de estudantes beneficiários de ações afirmativas.

Quadro 11 - Temas construídos a partir das entrevistas com estudantes beneficiados por ações afirmativas.

1. Preparação inicial em relação à matemática; 2. Integração social e acadêmica;

3. O papel do corpo docente; 4. Além do pedagógico;

Em resumo, a Figura 2 exemplifica o processo de organização e análise dos dados produzidos. Um ponto importante de se destacar é que todos os temas foram construídos a partir dos dados produzidos, e não o contrário. Mesmo possuindo um background político e conceitual, ter me envolvido com vários pesquisadores e participado de diversas conferências sobre o tema ações afirmativas, durante as entrevistas evitei projetar minhas ideias e valores para os participantes, buscando não interferir em seus relatos e experiências e em suas interpretações dessas experiências.

Figura 2 - Exemplo do processo de análise dos dados produzidos na pesquisa.

Fonte: Elaborado pelo autor

Os temas construídos a partir da análise dos dados serão discutidos com base em amplo repertório teórico na Seção 3 deste trabalho, em formato de artigos científicos. Por exemplo, alguns temas referentes às entrevistas com docentes e gestores serão discutidos no artigo intitulado Educação matemática e ações afirmativas: possibilidades e desafios para a docência no ensino superior. Contudo, alguns destes temas também serão discutidos em outros artigos, muitas das vezes complementando outras entrevistas ou resultados da análise documental. Além disso, o processo de análise dos dados contribuiu para a elaboração de conceitos. Por exemplo, o Artigo 1 da seção 3 discute os conceitos de Violência Estrutural e

Direitos Especiais, referentes à utilização de ações afirmativas no ensino superior. Por fim, cabe salientar que, devido à grande quantidade de dados produzidos, certas escolhas foram feitas e alguns temas não serão discutidos nos textos que compõem este trabalho. Mas isso não significa que eles não tenham influenciando nas discussões e reflexões apresentadas neste estudo.