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A ANAMORFOSE COMO ARTIFÍCIO POÉTICO DA

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 32-54)

A anamorfose como artifício poético da evasão

Neste capítulo, observaremos como o artifício poético da anamorfose permite à narração movimentos internos de ruptura com as coerções contextuais, próprias da ditadura, a partir de três recursos criativos: o delírio que se manifesta no discurso da personagem usuária de drogas, as rasuras operadas em textos da cultura incorporados intertextualmente ao romance e a onipresença da morte na temporalidade.

1. A droga

A temática da droga manifesta-se na linguagem pela personagem Ana Clara, jovem que se droga e cuja imagem é trazida à visualização pela imbricação narrativa das falas das personagens Lia e Lorena:

Vai mal a Ana Turva. De manhã já está dopada. E faz dívidas feito doida, tem cobrador aos montes no portão. As freirinhas estão em pânico. E esse namorado dela, o traficante...  O Max? Ele é traficante?  Ora, então você não sabe  resmungou Lião arrancando um fiapo de unha de unha do polegar.  E não é só bolinha e maconha, cansei de ver as marcas das picadas. Devia ser internada imediatamente. O que também não vai adiantar no ponto em que chegou (...) Lião está com medo. Ana Clara também posa de indiferente mas se não toma tranqüilizante recomeça naquele delírio ambulatório (AM, p. 13-9).

(...)

A droga, artifício de desarticulação da lógica narrativa, terá como função, no romance, o desencadeamento da virtualização da morte. Segundo Lévy (1996), a palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez de virtus, potência, força. Sendo assim, o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à concretização efetiva ou formal. Entendemos, desse modo, que, no plano poético, a droga presentifica um recurso viabilizador da potencialização narrativa, a anamorfose, isto porque permite à linguagem uma performance delirante.

A anamorfose consiste num artifício de construção barroca que compromete o princípio da simetria e da verossimilhança. Segundo SANT’ANNA,

a perspectiva simétrica renascentista desvirtua-se no Barroco. As proporções tornam-se mais expressionistas, o olho do pintor ou do espectador parece estar às vezes em estado alucinatório (...) em muitas obras barrocas ocorre um tumulto na superfície lisa, que deixou de ser espelho ou lago plácido para ser reflexo de agitação, sinuosidades e dramas que expõem o interior dos personagens e não apenas sua tranqüila face. (...) O espelho barroco, então, ao invés de simetria, passa a reproduzir tortuosidades; ao invés da objetividade, subjetividades. O espelho se converte em lente deformadora do real (2000, p.43)

A informação de que a personagem Ana Clara droga-se, conforme o fragmento inicial, representa um elemento decisivo para compreendermos alguns procedimentos da linguagem poética na obra. Por meio desse artifício, adentramos num caleidoscópio discursivo, gerado pelo fluxo de consciência da personagem e deparamo-nos com uma “palavra desatinada que se apresenta na escritura como [...] evasão compensadora das opressões coerções e repressões” (CORTÁZAR apud YURRIEVICH, 1997, p. 22). Tal “desatino da palavra” pode ser visto em passagens, como:

Os santos são transparentes que nem água. Tinha uma porção de agüinhas coloridas lá nos tubinhos de vidro. Lá no laboratório de

química. Eu limpava e vinha o judeu velhinho que gostava de mim e me dava o avental para vestir e deixava eu lidar com as agüinhas. Me explicava as coisas das cores azul vermelho verde. As agüinhas mudavam de cor (...) os vidrinhos mudando de cor que nem nós. Olha, amor, bebo e viro arco-íris azul, amarelo, ai! Não me pega senão derramo. Eu sabia a música, como era? (AM, p.35).

(...)

As agüinhas escorrendo e eu verde amarela azul ah vou me tingindo de mar. Um mar amor. Vou boiando e as línguas verdes dos peixes me lambendo as pernas não! Grito me cobrindo porque a língua lambe meu ventre e me penetra tão quente ah amor. (AM, p.37)

As conjunções aditivas destacadas, que marcam a presença do polissíndeto, iniciam várias orações e sintaticamente são necessárias, mas semanticamente são oralizantes, além de melódicas. A repetição sucessiva desse “e”, chamado “e” de movimento, dá fluidez ao texto, sugere movimentos ininterruptos e marca uma seriação redundante e pleonástica, presentificando a perturbação mental da persoangem. Entendemos, além disto, que essa marcação excessiva pelas coordenativas funciona como esteio para dar suporte a ilogicidade do discurso.

Não obstante, é na figura da anamorfose barroca5 que podemos ancorar uma possível leitura desse fragmento, pois, segundo SANT’ANNA, na anamorfose “a cena retratada abandona a homologia com o real e rompe-se a linearidade entre o olhar e o

5 A anamorfose é definida por Affonso Romano de Sant’Anna como um recurso artístico ligado à perspectiva que exige do olhar o rompimento com a posição centralizadora. O efeito criado por esse artifício é perturbador, porque produz figuras enigmáticas diante do olhar convencional que só poderão ser vistas por um olhar oblíquo. Ainda segundo esse autor, as correspondências entre as anamorfoses e as alucinações e fantasmas da mente humana foram estudadas por alguns cientistas, como Thomas Willis, da Universidade de Oxford, em 1712, a partir da consideração da medula central como ‘câmara da alma’. Outros autores aproximaram a anamorfose de ’manias’, ‘melancolias’ ‘frenesis’. Na literatura, fora da época estritamente barroca, a anamorfose pode ser encontrada em obras de autores modernos como Henry James e a palavra foi utilizada por Lacan e pelo crítico Roland Barthes, para quem a atividade crítica é uma espécie de anamorfose, por guardar um efeito especular, porém autonomamente deformante e revelador. A arte expressionista também tem algo a ver com esse recurso, pois, sua obrigação não é com a verossimilhança total e imediata. A deformação de um detalhe fala pelo resto do conjunto. Nisso essa arte é eminentemente alusiva, metafórica e alegórica. (CF. SANT’ANNA: 2000, p. 54-5).

quadro. O olho olha, mas não reconhece o que vê retratado; os traços lhe parecem algo caótico, os volumes se assemelham a um turbilhão de formas retorcidas e sem sentido” (op. cit., p. 49).

No romance, o processo da anamorfose é gerado pelas distorções de foco do olho da personagem drogada. O estrabismo desse olho está presente em construções, como: “Agora ela ria, a face corada, os olhos brilhantes, ligeiramente estrábicos” (AM, p.223) “Passou um anão agora mesmo no canto do meu olho mas já sumiu” (AM, p.77). Ela então me olhou em silêncio. E seu olhar que em geral é oblíquo ficou reto.” (AM, p.55).

O olhar enviesado, transtornado e perturbado pela droga, instrumento de uma percepção visual distorcida que instaura uma perspectiva diagonal de observação, configura-se como espaço da transgressão da linguagem e sugere que o artifício da anamorfose no romance pode estar relacionado a uma idéia de experiência visual internalizada no sujeito observador, revelando que: “A visão e seus efeitos são sempre

inseparáveis das possibilidades de um sujeito que observa, o qual é tanto um produto histórico quanto local de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de subjetificação” (BARROS: 2002, p.39).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que a “alucinação discursiva” da personagem desencadeia um processo de subjetificação irracional, como forma de contraposição barroca à tentativa de imposição da ordem, própria do (con)texto ditatorial. Sendo assim, o princípio da evasão surge porque:

No lugar da disciplina em que cada coisa está em seu lugar, surge o ajuntamento, o aglomerado. No lugar do pré-visível, o in-previsível; no lugar da ordem estratificada, uma espécie de não-ordem em ebulição,

quase caótica; onde havia imobilidade, estabilidade, tranqüilidade, irrompe a instabilidade, a insegurança, a vertigem. (SANT’ANNA, 2000, p.48).

A viagem vertiginosa viabilizada pela droga ganha proporções cada vez maiores na narrativa:

Os diabinhos ainda voam por aqui e brincam comigo e eu dou beliscões em Max que nem sente. É festa? Esqueça esqueça. Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludo-e-ventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada. (AM, p.73).

Uma tentativa de explicação para a irracionalidade presente nessa pura imagem como expressão poética, pode ser encontrada em Bachelard (apud LAFETÁ, 1986), que depõe:

O espelho sem moldura que é um céu azul desperta um narcisismo especial, o narcisismo da pureza, da vacuidade sentimental, da vontade livre. No céu azul e vazio, o sonhador encontra o esquema dos sentimentos azuis da clareza intuitiva, da felicidade de ser claro em seus sentimentos, seus atos e seus pensamentos. O narciso aéreo mira-se no céu azul (p.168-9).

Uma leitura complementar das imagens derivadas do “céu azul”, ainda à luz das contribuições teóricas de Bachelard, revela que os “devaneios aéreos” baseados neste tropo tendem todos à desmaterialização e à dissolução do ser, construindo uma visão poética em que “o mundo imaginado é posto antes do mundo representado e em que o conhecimento poético precede o conhecimento racional dos objetos. (Bachelard apud LAFETÁ, 1986, p.166).

Esse ponto de vista aéreo pode ser visto também como a evanescência, a desmaterialização, a liberdade do texto numa cultura que nega esse valor. Assim, apropriando-nos das palavras de Marcuse (1975) “o clima que desprende do texto é tão

propositalmente irreal, a direção que segue é tão forçada no rumo do sonho, que ele se ergue como verdadeiro antípoda das relações sociais existentes, revelando o conteúdo arquetípico: a negação da não-liberdade” (p.135).

A droga permite à linguagem empreender uma viagem em liberdade, uma peregrinação aérea e fantástica:

― Aterrissar! Aterrissar! ― Gritou Max abrindo os braços e desabando de bruços no travesseiro (AM, p77).

Ana Clara: (..) A gente tem que conhecer as coisas todas chegar ao fundo do poço e depois dar aquela arrancada de avião uiiiiiiiim! (AM, p.73).

Procuro no chão um cigarro. Bebo na garrafa e fico tragando até chegar à estratosfera. (AM, p.71).

Rolo nas nuvens

O deslocamento do ponto de vista da horizontalidade para o alto possibilita a visão ilusória da plenitude. Cremos que o ponto de vista aéreo na escritura de Lygia se aproxima da ânsia pela liberdade, ainda que às custas da ilusão criada pelo jogo ótico entre a aparência e a realidade gerado pela droga.

2. A poética da devoração no romance

Além da evasão propiciada pela droga, a personagem Ana Clara agencia outro modo de manifestação da anamorfose: o excesso narrativo resultante da apropriação de fragmentos narrativos pertencentes aos contos populares e fábulas tradicionais. Nosso interesse, neste capítulo, é destacar e analisar as dominantes desse artifício de construção na obra, na tentativa de reconhecer mais um traço de ruptura do texto literário com o discurso unívoco da ditadura, além de tentar demonstrar um traço neobarroco presente no romance: a unidade esfacelada e irrecuperável da palavra tradicional.

A personagem-narradora Ana Clara arquiteta um discurso auto-reflexivo tecido pela (re)apropriação de restos, fragmentos e repetições de textos que circulam na cultura. Para a elaboração desse procedimento é utilizado um traço compositivo característico do neobarroco: a estrutura da repetição e da citação.

Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona. Contente. Semente torrada com sal é bom pra lombriga ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento. Não quero a semente mãe quero a história. Então à meia-noite a princesa

virava abóbora. Quem me contou isso ? Você não mãe que você não

contava história contava dinheiro. A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada. (AM, p.27).

É possível observar, de acordo com o fragmento acima, que a estrutura da repetição em Lygia subverte o conto tradicional. O fragmento “à meia-noite a princesa virava abóbora” difere da informação do conto: “à meia-noite a carruagem viraria abóbora se a gata borralheira esquecesse o aviso da fada madrinha. No romance, além

da permuta lexical carruagem/princesa, a forma verbal no pretérito imperfeito – virava - indica que o fato ocorrido é habitual, caracterizando-se, portanto, pela repetição do acontecimento, o que elimina o aspecto condicional. Essas permutas sintático- semânticas, estabelecem uma rasura em relação ao conto popular e geram uma tensão dialógica intertextual. Como conseqüência desse procedimento, a linguagem conota um indício de dissolução da história verdadeira, substituindo-a por uma história possível.

Uma leitura possível dessa tensão dialógica operada pelo discurso da personagem pode ser explicada pela apropriação, na alegoria moderna, das “ruínas de dicção poética” pois, segundo Vianna (1985, p. 159) “Nascida sob o signo de uma violência (a da ruptura com a experiência e a tradição, substituídas pela vivência de choque) a alegoria presta-se à valorização do escatológico, do excessivo, do grotesco e da devoração”.

Além da apropriação do conto popular, presente no fragmento analisado acima, outra forma de devoração intertertextual aparece na usurpação, pela personagem, de diferentes identidades com as quais tenta, provisoriamente, construir a sua:

Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver. Certidão nova pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido. Batizo meu pai pra me casar não posso? Nome de imperador. Então. (...) Caio César Augusto. Caio César Augusto Conceição.

A hibridização do nome do antigo imperador romano com parte do nome da personagem, “Conceição”, revela-se como artifício poético de comprometimento de uma mímesis ético-representativa, em favor de uma linguagem cujo pendor permutacional revela seu caráter de signo vazio: ”Meu pai era francês. Jean Pierre Lariboisière.

Lariboisière? Sei lá na hora decido meto o nome que entender não estou pagando? O Conceição é da mãe.“ (AM, p.73).

A apropriação de estruturas de histórias de amor novelescas é outro recurso utilizado pela personagem para construir sua história:

Então a velha quis saber por que eu andava assim quietinha. (...) Então a velha quis saber. Meu pai morreu num desastre de avião e minha mãe está com câncer. Ela então se benzeu meu Deus que horror. Que horror ficou repetindo e sacudindo a cabeça e me consolando porque eu já comecei a chorar “ah minha pobre menina minha pobre

menina.” Vai acontecer que nem nas besouragens da mulher

importante que adota uma órfã pobre e bonita. E vem um sobrinho

orgulhoso e cruel porque me visto mal mas logo fica vidrado de amor e se atira em mim que nem. (AM, p. 76)

O decalque explícito de categorias narrativas que fazem parte do repertório tradicional, de acordo com o trecho destacado “Vai acontecer que nem” é recuperado em eco na última construção “que nem”. Esse artifício de incorporação da repetição na estrutura sintática possibilita ao texto uma abertura semântica para a leitura bem como para a incorporação de outros textos possíveis, apontando para uma incorporação textual ad infinitum.

Não obstante, num processo de construção antitética, o texto que mal começou a ser construído ameaça ruir: conforme podemos ver no trecho, a velha, que parecia ocupar a categoria proppiana6 de auxiliar da heroína, acaba por ocupar a posição de antagonista:

“Mas isso tudo é mesmo verdade?” estranhou a mulher enquanto ia

tecendo um tapete fazia um tapete e era exigentíssima tanto no trabalho como no questionário. Antes de falar eu precisava falar mas

6 Referimo-nos aqui às categorias dos contos populares russos sistematizadas por Wladimir Propp (2006). Em seu estudo sobre as funções dos agentes narrativos, o autor apresenta como uma das categorias a do coadjuvante, ocupada nos contos de fadas pela fada madrinha, personagem que auxilia a heroína em sua trajetória. No romance, é possível observar que há uma ruptura: a velha que ouve a história da personagem passa a ocupar outra categoria proppiana: a da antagonista. Vale ressaltar que a atitude interrogativa que ela assume no discurso é definida por Propp como Interrogatório e consiste num meio utilizado pelo antagonista para obter uma informação.

ela trabalhava tão depressa com a agulha que comecei a me enredar nos fios. Aconteceu quando meu pai guiava um Opala e ela parou a agulha. “Opala? Mas não foi num avião?” Recomecei a chorar

para ganhar tempo. Primeiro foi com um Opala e depois.”Mas seu pai tinha um avião?” ela se espantou. Ele era o aviador. O avião era de um velho que lidava com petróleo. “Petróleo?” Petróleo sim senhora. “Como se chamava esse homem. Esse patrão do seu pai.” Ah lá sei. Sei que era um homem importantíssimo tinha avião tinha iate. Ah. “Ah ― fez ela recomeçando o maldito tapete. ― E depois” Depois o avião se espatifou nas pedras tinha caído uma horrível tempestade e meu pai perdeu o controle foi isso. Então minha mãe piorou lá do câncer dela e perdemos tudo e fomos morar com meu tio que é um grande médico. “Médico? Qual é o nome dele?” Fui ficando com raiva

então era só ir fazendo a vontade dela? Um grande médico sim

senhora importante á beca tio Clóvis. Já ia perguntar o nome dele quando entrou a vesguinha. Tinha uma concha na mão. Clóvis Conchal respondi sem pestanejar. Clóvis Conchal repeti e antes que ela me

cutucasse com mais perguntas como cutucava o pano dei um grito

sacudindo a mão uma vespa! Saí correndo ai que dor ai que dor. Não se voltou a falar no meu pai não sabido e ignorado nem na minha mãe que tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor que a morte para apagar as pegadas como a onda apaga toda a

escrita da areia. (AM, p.76-7).

Essa “atitude” da personagem pode ser explicada, numa aproximação com a análise do teatro pós-moderno apresentada por Steven Connor (2000), por uma “recusa da narrativa” que resulta numa concentração de forças não mais “no ímpeto e coerência narrativos, mas sim na “superposição ou ‘arrumação de camadas’, o repisar, a citação, a repetição (...) a duplicação, a ‘fantasmagoria’, a tradução, a transferência”. (p.117), processos que desnudam o procedimento da bricolagem textual.

Outra forma de manifestação da intertextualidade como recurso estruturador do drama da linguagem neste romance é, conforme se deduz do trecho citado, a incapacidade de narrar. A personagem inventa uma história para enganar uma outra personagem, duplicando a ficção; não obstante, é desmascarada por aquela a quem deveria enganar. Ao contrário de Scherazade que consegue, em suas Mil e Uma

Noites, uma narrativa infinita, Ana Clara vê sua história-trapaça questionada, conforme

vimos no fragmento.

O erro na tessitura dos fios é fatal. A mulher-Penélope traz em si a ambigüidade do tecer / destecer. O “tapete”, mal se constrói, é desfeito. A história desmorona. A pergunta da tecelã “Mas isso é mesmo verdade?” força o reconhecimento do estatuto ficcional. O artifício narrativo utilizado pela personagem - a sobreposição de textos – e a contrapartida de sua interlocutora, a desconstrução do fio narrativo, conduz-nos à idéia de Roland Barthes de texto como jogo,

... engendramento perpétuo de significantes. Não segundo uma via orgânica de maturação, ou segundo uma hermenêutica de aprofundamento; mas antes de tudo segundo um movimento serial de desencaixes, de imbricações, de variações; a lógica que define o texto não é interpretativa mas metonímica; o trabalho das associações das contigüidades, das relações, coincide com uma liberação da energia simbólica. O Texto é deste modo restituído à linguagem; como ela é também estruturado, mas desfocado, sem fechamento. (apud SEGOLlN,1978, p.101)

Essa perspectiva de construção textual aponta, segundo Segolin (1978) para a textualização da personagem, em detrimento de sua presença na obra como “função”. Resulta desse processo que, do ponto de vista funcional, os agentes narrativos sejam desfigurados definindo-se como “atores-discurso que dão vida ao texto mediante o jogo metalingüístico de seus conceitos” (p. 102).

Outra problematização gerada pelo jogo estabelecido entre a personagem e sua interlocutora, a mulher que “quer saber a verdade da mentira”, pode estar relacionada ao problema da verossimilhança, aspecto responsável pela coerência da narrativa. A escritura lygiana aponta, nessa perspectiva, para a questão da coerência verossímel, ausente na fala da personagem, remetendo-nos ao necessário reconhecimento de que

“a narrativa literária é uma fala mediada e não imediata e que, ademais, está submetida às restrições da ficção” (TODOROV, 2003, p. 41).

Outra interpretação possível para o fracasso da narrativa construída pela personagem pode estar relacionada ao “não contar mais?” benjaminiano. Assim, o encontro da personagem com essa “velha” que “sabe” remete-nos à relação entre narração/experiência na modernidade. Esta última, conforme depõe o teórico, nos foi subtraída, gerando uma “pobreza de experiência que não é mais privada, mas de toda a humanidade” (BENJAMIN, 1994, p.115).

Sobre essa busca desesperada por uma história redentora, embora conscientemente “falsa” e, por isso, sempre ameaçada pelo desmascaramento, é

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 32-54)

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