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Disfarces da Morte

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 56-59)

CAPÍTULO III – O TRAUERSPIEL DO CORPO ESCRITURAL

1.1 Disfarces da Morte

O processo de construção da géstica da personagem Ana Clara, obedecendo aos princípios do jogo narrativo especular, ora se apresenta pela auto-referencialidade, ora pela fala das outras personagens:

Tenho um metro e setenta e sete. Sou modelo. Uma beleza de modelo. (AM, p. 26).

(...)

Não está vendo meu cabelo ruivo? Minha pele. Tudo autêntico. Branquíssima. (AM, p. 71).

(...)

“Então em dezembro me costuro e em janeiro. Valdo faz o vestido o vestido. Quero branco. Estilo medieval. Pérolas um fio de pérolas brancas. Enormes.” (AM, p. 34).

(..)

Passo soberana entre as alas passo entre todos levando meu segredo como um navio. Sou um navio passando lá longe todo iluminado me vejo passando lá longe e é um espetáculo me ver passando no mar. Levanto a gola do casaco e fico um navio embuçado.(AM, p.167).

(...)

Escovou os cabelos com energia renovada, eriçando-os para o alto até formarem uma coroa de anéis. Umedeceu na língua a ponta do lápis e acentuou a linha cor de ferrugem das sobrancelhas. Pingou colírio nos olhos. A mão tremia. Segurou o pulso enquanto passava nas pestanas o bastão de rímel. O bastão resvalou borrando a pálpebra.

Recomeçou o duro movimento de guindaste, a mão esquerda

sustentando a outra, o braço colado ao corpo, a boca entreaberta. Cerrou os olhos. “Estou bêbada?” (...) Sentou-se no chão para calçar as meias e a malha de seda preta. Foi enfiando no pescoço as

correntes de prata espalhadas pelo tapete. (...) Vestiu o casaco de

veludo preto que lhe chegava até quase os sapatos de verniz com uma antiquada fivela de prata. (AM,p. 161).

Apanhou o cigarro queimando no cinzeiro, fechou no peito a gola do casaco e saiu devagar, pisando em zigue-zague mas aprumada, a cabeça erguida.(AM, p.162).

Vai passar por nós com aquele andar de transatlântico, os ossos dos quadris furando as águas. E a cara oca de capa de figurino, ‘por acaso já nos vimos antes?’ Turbante de cetim branco com uma esmeralda combinando com o verde dos olhos tão mais belos do que a esmeralda, tem olhos lindos, ela é inteira linda, (AM, p.52).

(...)

Ana Clara, pintadíssima e afetadíssima, mentindo a idade e o resto, as mãos sempre fechadas, é do gênero de mentiroso que fecha as mãos. (AM, p.53).

(...)

“Sei lá”, murmurou enquanto colocava o cílio postiço, operação que exige atenção integral porque sua mão treme demais. (AM, p. 55).

Os fragmentos evidenciam o fascínio operado pela aparência física da personagem, seu “efeito” sobre o “outro” e sua condição narcísica. Muniz Sodré (1990), em A Máquina de Narciso, no capítulo em que relaciona a droga e o sexo com o simulacro, explica o narcisismo como “uma imersão do indivíduo e seu aniquilamento num teleuniverso funcional e abstrato, mas fascinante porque narcísico – gerador de sentimentos de auto-conservação e onipotência, liberação de consciência e gratificação hedonista ( p.67). (Grifo Nosso).

Todavia, depõe ele mais adiante:

Uma contradição se instaura nessa condição narcísica, pois o narcisista depende dos outros para validar sua auto-estima. Ele não pode viver sem um público admirativo (...) sua aparente liberdade não o liberta para ficar sozinho ou glorificar-se de sua individualidade. Ao contrário, contribui para sua insegurança que ele só poderá superar vendo seu ’ego grandioso’ refletido nas atenções dos outros. (op. cit., p.68)

Conforme os fragmentos destacados da obra, é possível constatar na personagem essa contradição de que fala Sodré, pois as vozes das outras personagens instauram o contraponto de sua condição narcísica nas construções: “pintadíssima e afetadíssima; a mão que treme demais; mentindo a idade e o resto, os

cílios postiços”. Esse desmascaramento dos gestos artificiosos compromete a verossimilhança da imagem e sua integridade formal, além de remeter nosso olhar para um conjunto de fragmentos que compõem um espécie de bricolagem do corpo.

Um outro aspecto que pode ser observado nas marcas desconstrutivas da “pose” narcísica apontadas anteriormente pode estar relacionado ao que Santaella (2004) considera como uma estratégia escritural que apresenta uma tendência crítica em relação à mercantilização dos corpos e dos egos do pancapitalismo. Segundo depõe a autora,

muitos artistas exageram, de maneira parodística e potencialmente crítica, os simulacros do eu e do corpo em um mundo artístico reificado. É característico dessa estratégia tornar visível tudo aquilo que o verniz dissimulador das mercadorias oculta, como por exemplo, as subjetividades em sofrimento, incoerentes e errantes (p. 73).

O cenário é outro aspecto que também concorre para o efeito artificioso:

No dia seguinte fui saber se queria ir ao cinema. Não estava mas estava o vidro de perfume, o espelho e o vidro de colírio vazio. Um monte de roupa suja embolada debaixo da cama. As jóias, verdadeiras

e falsas, espalhadas por toda parte. Um longo de cetim verde num

cabide dependurado na porta do armário. O caos dos sapatos escapando por entre a fresta do gavetão. A peruca negra e o casaco de couro em cima da cadeira. A caixa de maquilagem esvaziada na cama, devia estar procurando alguma coisa que não encontrou. Nas paredes, retratos seus e de very important person. Fiquei comovida quando vi que pregara na cabeceira da cama a gravura de Chagall que eu lhe dera na véspera, um anjo verde abençoando o pecador

roxo, ajoelhado no azul. O rosário de Madre Alix também estava ali

exposto mas a presença do Anjo Sedutor pairava no quarto.

Vulgaridade e beleza se misturavam no poster que tirou de biquíni

colante e meias pretas, pose mais agressiva do que sensual. Chamei Sebastiana e lhe dei a trouxa de roupa para lavar. Aproveita e varra um pouco este chão, eu disse mas a mulher não despregava os olhos do poster. A beleza de Ana iluminou-lhe a expressão. A cara encardida

clareou no impacto. ‘É artista?’ ― quis saber. Mais ou menos

Neste quadro cênico no qual se aglomeram diferentes imagens, é possível localizar uma prática barroca que opera pela justaposição simultânea do sagrado e do profano, do belo e do vulgar, do verdadeiro e do falso, obtendo, como efeito, um quadro polifônico da personagem. A polifonia está presente também na apropriação de expressões idiomáticas como “Very important person”, bem como no entrecruzamento de diferentes linguagens, como a religiosa e plástica, que compõem a tela/página. No excesso desordenado que se evidencia como efeito do conjunto, eclode a (des)estruturação neobarroca do horror vacui na linguagem romanesca.

A saturação do artifício presente nos fragmentos oferece-nos, ainda, a imagem performática da personagem como pouser e permite, como traço da modernidade, que a gênese artificiosa da criação artística seja revelada. É possível localizar no “quadro ótico” apresentado, a presença de uma metalinguagem visual reveladora da imagem de um criador que se compraz em revelar os artificialismos de suas máscaras em metáforas teatrais que criam “efeitos de vitrine” 7.

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 56-59)

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