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O estado melancólico

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 59-65)

CAPÍTULO III – O TRAUERSPIEL DO CORPO ESCRITURAL

1.2 O estado melancólico

 COELHA! Ei, Coelha, você está dormindo? – perguntou ele. Sacudiu-a pelos ombros, — Que é que você tem que não se mexe. Ana Clara esforçou-se por abrir mais os olhos. Em torno do olho esquerdo desenhara-se uma orla de carvão na medida do aro negro de um soco. Esfregou os olhos com os nós dos dedos e o delineador das pálpebras marcou também o outro olho. Voltou-se sonolenta para a

7 Muniz SODRÉ explica que o termo surge no bojo da crescente produção de aparências gerada pela necessidade de exposição que a lógica da produção capitalista e da racionalidade moderna produziu. Para oautor, o vidro, com sua miraculosa transparência, bem como o espelho, fizeram com que o indivíduo começasse a ver com perfeição a sua própria imagem, exaltiva do eu. Nesse contexto, as vitrinas adquirem uma nova importância, na medida em que modificam o estatuto da mercadoria, convertendo-a em objeto-signo porque dotada de uma significação pregnante. (Cf. SODRÉ,1990, p.20).

fumaça espessa que o abajur projetava no cone de luz. Beijou o ombro nu do jovem, disfarçando o bocejo numa mordida.

 Estou quase desmaiando, amor. Tão bom, Max.

―Então por que está assim gelada? Ahn? Parece que estou trepando num pingüim, você já viu um pingüim?

― Ela enrolou e desenrolou no dedo um anel de cabelo ― É que hoje não estou brilhante.

― Queria que me dissesse o dia em que está brilhante — resmungou ele sentando-se na cama . (AM, p.25).

(...)

― Estou com frio, Max, me cubra. Me cubra, amor ― disse ela. Debateu-se fracamente sob o corpo do jovem. ― Um frio. (AM, p.39).

(...)

Arrastando-se penosamente ela debruçou-se sobre o corpo dele e apanhou a garrafa do chão. (...) Voltou ao seu lugar, recuando de rastros como avançara (AM, p.44).

A figuração da acedia melancólica8 na performance da personagem, aspecto que instaura o contraponto com a artificialização analisada no tópico anterior, é instaurada na narrativa por meio de vocábulos caracterizadores de ações verbais relacionadas a estado, como: Esforçou-se por abrir os olhos; voltou-se sonolenta; disfarçando um bocejo; estou quase desmaiando e “É que hoje não estou brilhante”.

O esforço visível dessa performance simulada é questionado pelas falas pertencentes ao namorado, destacadas no fragmento do diálogo: — Então por que está assim gelada? E Queria que me dissesse quando está brilhante. Além desse desmascaramento da inércia corporal, seu movimento ”sentando-se na cama” marca uma oposição espacial em relação à Ana Clara e estabelece a relação vertical/horizontal. É possível observar que a horizontalidade marcada pela inércia, eixo

8 O termo melancolia, até o século XVII, era concebido como uma disposição humoral-patológica, pela influência da doutrina estabelecida por Hipócrates no século V a. C. e difundida por Galeno para a Idade Média e o Renascimento, tanto na cultura árabe como na cristã. No decorrer dos séculos, o temperamento melancólico foi concebido como uma má disposição, intrinsecamente mórbida e propensa a diversas taras físicas e a temíveis doenças mentais. Foi Dürer quem contribuiu para a modificação dessa visão, ao criar sua obra Melencolia I, na qual figura plasticamente a dor de existir no gesto do homem que segura a cabeça com as mãos. Esse gesto, antiqüíssimo, presente em sarcófagos egípcios e templos clássicos gregos, foi recuperado também por Rodin em sua obra O Pensador. No século XVII, o termo caiu nas mãos dos literatos, que passaram a empregá-lo, num sentido lato, como um estado de ânimo subjetivo, vindo a ser às vezes, intercambiável com os termos ‘dor’, ‘tristeza’, ‘ensimesmamento’. Desengano é a denominação adequada que adquire a melancolia no período barroco, que toma a figura do Príncipe como paradigma alegorizante da perplexidade, tristeza, impotência e fragilidade humanas. (Cf. LINO, 2004, p. 182-3).

sintagmático que permanece ocupado pela personagem, pode ser lida como índice de sua morte no final da obra.

Além da permanência no plano horizontal, há nesse corpo “gelado” um elemento indicador de uma imagética que Benjamin considera adequada para a alegoria: natureza petrificada, objetos decadentes, objetos morbidamente frios, ruínas” (BUCK- MORSS: 2002, p.43)

Não podemos perder de vista, do ponto de vista da narração, que o estado inerte do corpo implica o comprometimento do movimento diegético, relacionado ao decorrer do tempo e da ação narrativa e, desse modo, torna-se legítimo afirmar que “sobrepõe- se à linearidade e temporalidade um verdadeiro espaço relacional, fruto do privilegiamento das relações de equivalência entre predicados verbais e/ou atributivos, que altera a fisionomia da personagem e da narrativa” (SEGOLIN: 1978, p.61).

O melancólico é o sujeito enlutado pela perda e pela falta de algo que o constitui como unidade. De posse dessa ausência, torna-se presa da dor que passa a vivenciar doentiamente. A personagem Ana Clara vivencia a situação da perda da mãe e do desconhecimento do pai e, pelo recurso da memória involuntária, hiper-ativada pela droga, “mergulha” nos abismos vertiginosos da rememoração, fazendo vir à tona a infância nos subterrâneos dos edifícios inacabados da construção civil:

[...] “Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante para fazer uma ponte pra mãe e outra pra filha. Bastardo. Sacana. As duas pontes caindo na ordem da entrada em cena. Primeiro o da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois. Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu. Quem bebeu morreu. Ela cantava pra me fazer dormir mas tão apressada que eu fingia que dormia pra ela poder ir embora de uma vez (AM, p. 28). [...] A mão gelada e fala quente mais rápida mais rápida a ponte. A ponte. Fechei a boca mas ficou aberta a memória do olfato. A memória tem um olfato memorável. Minha infância é inteira feita de cheiros. O cheiro da construção mais o cheiro de enterro morno daquela floricultura onde

trabalhei. [...] o que eu quero é a ponte a ponte. A ponte me levaria pra (sic) longe de minha mãe e dos homens baratas tijolos longe longe (AM, p. 30-31).Mas esconder a minha marca. A marca escatológica. A Lião fala demais em escatologia [...] Diz que é a visão do fim do mundo escatológico sei lá. Mundo deles que o meu é outro. Me viro pra fazer sumir a marca (AM, 82). O mar. No mar esqueci minha mãe

inesquecível (AM, p. 80).

Conforme pode ser observado no trecho destacado, a figura da mãe surge pelo movimento rememorativo. Não obstante, sua aparição está associada ao desejo impossível de esquecimento de um tempo doloroso que marca a infância. É importante ressaltar que a associação dos vocábulos mãe/mar, presente no final do fragmento, traz conotações simbólicas de interesse para nossa abordagem da melancolia e do luto, pois Chevalier (1990) constrói um paralelo entre a homofonia das palavras francesas

mère = mãe e mer = mar, afirmando que elas mantêm a relação ambigüa da criação e

dissolução do criado.

A morte da mãe, obsedante nas impressões da infância é descrita pela ruminação monologal da personagem:

Não tive pena nem nada quando ela veio me dizer que tinha de tirar mais um filho porque o Sérgio não queria nem saber nesse tempo era o Sérgio. “Não quero nem saber” ele disse dando-lhe um bom pontapé. Uivou de desgosto o dia inteiro e nessa noite mesmo tomou formicida. Morreu mais encolhidinha do que uma formiga nunca pensei que ela fosse assim pequena. Escureceu e encolheu como uma formiga e o formigueiro acabou. [...] Quando voltei de noitinha a primeira coisa que vi foi a lata aberta no chão. Fiquei olhando. Não chorei nem nada mas por que havia? Não senti nada. Tinha a cara no travesseiro manchado de preto e o corpo encolhido e retorcido como a formiga no rótulo da lata. (AM, p.72).

Não obstante afirmar que “não sentiu nada” pela morte da mãe, a personagem vive um estado melancólico de perda presentificado na incapacidade de esquecer a cena da morte. A imagem materna e sua associação com a dissolução é retomada nas

cenas que dão continuidade às tentativas de esquecimento da figura materna por parte da personagem melancólica.

Queria tanto esquecer e não esqueço. [...] Eu não quero lembrar e lembro. Sei que a infância acabou e que ela era uma.(AM, p.71).

[...] Joguei longe lá onde passam os barcos minha mãe o quarto os homens as baratas as roupas. [...] Que frio quero o tapete. Vem Aninha, vem aqui no tapete eu chamo e eu obedeço. Não chora vem. A garrafa boiando na onda tem uma mensagem dentro se eu rastejar mais um pouco [...] Estou acesa com um holofote aberto no ventre. Deslizo e o ventreporto me leva às furnas onde me penetro e me

escondo. Cuidado! A voz me avisa e abaixo a cabeça e vou remando

abaixada porque o teto é baixíssimo. [...] O escuro das gretas [..] Levanto o remo e bato com força mas as ventosas se enrolam em

minhas pernas e me puxam para o fundo mais fundo me larga!

Arrebento os fios nos dentes e fico batendo até a dor ficar

insuportável. Acordo. Estou molhada de suor. Fico olhando o meu

ventre latejante. Limpo a cara no tapete. Tinha que engravidar? Tinha. Debilóide. Engravidando igualzinho (AM, p. 79).

A fanopéia9 cria o efeito imagético do corpo da mãe – lugar escuro - do qual a personagem foge, mas para o qual retorna, agora pela repetição do ato materno: a gravidez. A dor da repetição do erro, sintetizada no trecho: “debilóide, engravidando igualzinho”, ganha carnalidade poética na cena do aborto que pratica:

“Lena, me dá sua mão’, pediu Ana Clara. Deu-lhe a mão, constrangida: sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor. Um suor frio como a sala, frio como a luz do holofote. Na estrita faixa entre o gorro e a máscara os olhos do médico eram frios. A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões: ‘Um, dois, três, quatro, cinco ... seis... sss...’ A luta metálica dos ferros se entrechocando. O peso do sangue na gaze. O hálito de éter se desfazendo no ar. Not to be.(AM, p.53).

9 Ezra Pound explica o conceito de fanopéia como um recurso por meio do qual é possível projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual. (Cf. POUND, 1973, p.63).

A poeticidade dramática do último trecho estrutura uma imagética adequada à concreção da morte pelo entrecruzamento sinestésico dos vocábulos “frio/luz/algodão” e pela imagem da diluição gradativa do ser: ”peso do sangue/hálito de éter/ar/not be. O efeito expressivo do som sibilante presente em ”sss” sugere a dor, mas também o silêncio presente nesse ambiente ”branco”, página que registra, paradoxalmente, a nulidade da vida.

No plano das relações entre literatura e morte, a anulação da vida pelo aborto, presente no fragmento, pode ser relacionada à homologação escritural da violência da ditadura, recuperando aquilo que Foucault, citado por Machado (2000) afirma ser a característica constituinte da historicidade da literatura:

Assassinar, matar, recusar, negar, silenciar, conjurar, profanar o que é tido como essência da literatura,e, ao mesmo tempo, voltar-se, apontar, fazer sinal para algo que é literatura, mas que nunca será dado, que introduz sempre uma ruptura, que é um espaço vazio que nunca será preenchido, objetivado” (p.292-4).

Numa linha de pensamento similar ao de Foucault, Fernando Segolin (1978), ao tratar da “anti-personagem” na literatura moderna como agenciadora da desfunção textual e conseqüente problematização da função representativa da personagem, afirma que

Ao se constituir para destruir, ao destruir para explicitar um nada que é negação do destruído, o texto, no caso, se propõe como um universo desfuncionalizado, como um grau zero ou como um silêncio.E a anti- personagem, que na sua desfunção e desintegração em relação à personagem tradicional se identifica com o texto, evidencia-se igualmente como um silêncio ou, o que dá no mesmo, com o um ruído que interpõe o branco de sua descomunicação ou o negro das palavras que a desconstroem ao significado multicolorido e comunicativo das personagens miméticas, construídas à luz de uma lógica rigorosa e de uma referencialidade apaziguadora (p.92).

Nessa perspectiva, não podemos perder de vista a intertextualidade explícita, criada pela palavra romanesca, com a obra crítica de Roland Barthes e presentificada pelo discurso do monólogo interior da personagem-escritora, Lia: “Queria só saber com quem está meu Grau Zero da Escritura que nem li”. (AM, p.207).

A zerificação, o nada gerado pela identificação da personagem com a atitude da mãe, cria o vazio da falta e instaura o luto e a melancolia. LINO (2004), em seu estudo sobre a melancolia em Grande Sertão: veredas e em Paradiso, afirma a existência de uma metaforização negativa que proporciona a negação do próprio ser, anulando qualquer pretensão de ser. Com base nos estudos de Freud sobre o luto e a melancolia, a autora afirma ainda que:

A identificação é uma etapa preliminar pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em confomidade com a fase oral e canibalista do desencolvimento libidinal, deseja fazer isso devorando-o. É assim que ele internaliza o objeto amado e perdido, anulando-se como tal e propiciando o aparecimento da melancolia. Freud explica a identificação como a expressão da existência de algo em comum que pode significar amor. Sendo assim, a melancolia gerada pela perda gera um desânimo profundamente penoso, em que há cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, culminando numa expectativa delirante de punição. Diferentemente do luto, a melancolia manifesta um empobrecimento do ego em larga escala. As auto- acusações que o melancólico dirige a si mesmo são queixas dirigidas ao outro, a alguém a quem o melancólico ama, amou, ou deveria amar. São recriminações contra o outro que retorna ao próprio ego. Dando queixa do outro, o melancólico queixa-se a si mesmo (p.186-7).

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 59-65)

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