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MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS

A FIGURAÇÃO POÉTICO-ALEGÓRICA DA MORTE EM AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

PUC-SP

SÃO PAULO

(2)

MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS

A FIGURAÇÃO POÉTICO-ALEGÓRICA DA MORTE EM AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Dra. Vera Bastazin.

SÃO PAULO

(3)

Banca Examinadora:

________________________________________

_________________________________________

(4)

DEDICATÓRIA

Dedico este estudo

Aos meus pais, Adeval Pereira dos Santos (in memorian) e Maria José da Silva Santos,

fontes de coragem para minha trajetória;

A Maira e Inaê, duas razões que embelezam minha vida;

A Nelma, prazer diário de um encontro muito esperado.

Aos meus irmãos e irmãs, tio(a)s e primo(a)s, que me ensinaram o paradoxo da

(5)

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Vera Bastazin, minha orientadora, pela aceitação e leitura atenta

desta proposta de trabalho;

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária:

Professora Doutora Maria José Gordo Palo;

Professora Doutora Maria Aparecida Junqueira;

Professora Doutora Maria Rosa Duarte;

Professora Doutora Olga de Sá;

Professor Doutor Fernando Segolin

Pela contribuição teórica de cada um para meu enriquecimento intelectual.

Ao apoio imprescindível de Ana Albertina no percurso do mestrado.

Aos amigos e amigas;

Tunico, presença verdadeira da amizade;

Lourdes e Manoel, pelo apoio constante, apesar da distância geográfica;

Ana, Juracy, Cainã e Clara, pela convivência amorosa;

Salete Amada, Dimas, Daniel e Saulo, pelo acolhimento nas plagas do Oeste.

Risomar e Dena, pela acolhida, força, leveza, dedicação e amizade e, principalmente,

(6)

Jô Alves, vizinha maravilhosa em Perdizes;

Lourdes e Ana, pela acolhida sempre muito especial em SAMPA;

Ivanísia, pela atenção e carinho.

Aos muitos que, de alguma maneira, estão presentes no TEMPO-ESPAÇO de minha

(7)

Dai-nos o veludo vermelho e essa veste florida, e o negro cetim, para que em nossas roupas transpareça tanto o que alegra os sentidos como o que aflige o corpo; vede quem fomos nesta peça, na qual a lívida morte costura o vestuário final.

(8)

RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo rastrear os modos de elaboração de uma poética da

morte no romance As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. O interesse pela temática

resultou do reconhecimento de aspectos referentes a homologações entre o texto

literário e o contexto da ditadura Militar internalizado na escritura lygiana. A análise

pautou-se nos procedimentos artístico-literários de elaboração de uma poética da morte

à luz do conceito de alegoria moderna sistematizado por Walter Benjamin. O conceito

de alegoria como expressão que opera a síntese entre crise social e criação artística

presentifica a condição de uma linguagem romanesca edificada pela fragmentação,

evasão e percepção traumatizante da existência. Para elucidar esses procedimentos, o

estudo pautou-se nos aspectos estruturais da linguagem, tais como personagem, tempo

e discurso. A hipótese que norteou a leitura foi que tais aspectos configuram uma

poética fragmentária arquitetada pelo paradoxo da construção/ruína. A conclusão a que

chegamos neste estudo foi a de que esses procedimentos articulam, na obra, um efeito

neobarroco da imagem da morte e propõem questões relativas à crise da narrativa e do

sujeito na pós-modernidade.

(9)

ABSTRACT

The objective of this dissertation is to track the ways poetical death is constructed in the

novel As Meninas, by Lygia Fagundes Telles. The interest for this

theme resulted from recognizing homologous aspects in the literary text and the military

dictatorship context internal to lygian writing. The analysis is guided by the

artistic-literary procedures of poetical death construction using the concept of modern allegory

systemized by Walter Benjamin. The concept of allegory as an expression that

articulates the synthesis between social crisis and artistic creation shows the condition

of a romantic language built by the fragmented, evasive, and traumatizing perception of

existence. To illustrate these procedures, the study focused on the structural aspects of

the language, such as character, time and speech. The guiding hypothesis throughout

the reading was that these aspects configure a fragmented poetry, designed using the

construction/ruin paradox. The conclusion of this study is that these procedures

articulate, in the novel, a neo-baroque effect on the image of death and puts forth

questions related to the crisis of the narrative and of the post modern individual.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

CAPÍTULO I – A COMPOSIÇÂO DO MÉTODO ALEGÓRICO...17

1 O jogo discursivo especular...17

2 A (con) textualização da violência no corpo romanesco...24

CAPÍTULO II – A ANAMORFOSE COMO ARTIFÍCIO POÉTICO DA EVASÃO...32

1 A droga...32

2 Uma poética da devoração...38

3 A temporalidade da morte...49

CAPÍTULO III – O TRAUERSPIEL DO CORPO ESCRITURAL...54

1 Simulacro e Melancolia: a dupla face do corpo trágico...54

1.1 Disfarces da Morte......56

1.2 O estado melancólico...59

2 O corpo-emblema da escritura ruínica...65

2.1 Primeiro Ato: O abismar-se narcísico...66

2.2 Segundo Ato: A alegorização da physis...68

2.3 Terceiro Ato: a apoteose do artifício...72

CONCLUSÃO...77

(11)

INTRODUÇÃO

Nosso interesse em apresentar uma leitura do romance As Meninas com base na

reflexão sobre as relações entre literatura e morte surgiu da observação de que há,

nesta obra, a presença obsessiva de elementos estruturais que sugerem a existência

de uma poética da morte erigida pela escritura romanesca.

A publicação do romance As Meninas (1972) é contemporânea da Ditadura

Militar no Brasil. Essa temática é incorporada pela obra na figuração das protagonistas,

Lorena, Lia e Ana Clara, jovens universitárias que moram em um pensionato para

moças e testemunham o drama do período.

No levantamento da fortuna crítica sobre a obra, encontramos breves referências

que se limitam a relacioná-la ao fato político, como acontece, por exemplo, em Nelly

Novaes Coelho (1971), para quem Lygia “fixa a angústia contemporânea e o

desencontro de seres aparentemente normais, mas que no fundo são desajustados,

frustrados ou fracassados” (p.144) e em Alfredo Bosi (1991), quando afirma que nela,

Lygia desenhou o perfil de um momento da vida brasileira, em que o fantasma da

guerrilha é apreendido no cotidiano de estudantes burgueses “(p. 475).

Não discordamos do caráter testemunhal inerente à temática desse romance.

Não obstante, entendemos que ao termo “testemunho” caberia acrescentar um adjetivo

que redirecionasse nosso olhar para o texto: ruiniforme. O termo ruína tem o sentido de

desmoronamento, na acepção dicionarizada, e é este sentido que tomamos como ponto

de partida para a abordagem que pretendemos desenvolver.

Ao partirmos da hipótese de que a escrita lygiana dá à obra uma feição

(12)

ficção com o real, recurso cuja conseqüência metodológica é a fixação do

acontecimento e a obliteração do discurso, ou, conforme TODOROV (2003, p.114) “é a

tentativa de atribuir ao discurso literário uma ‘transparência ilusória’, característica da

‘linguagem-sombra’, de ‘formas quem sabe mutáveis’, mas que nem por isso deixam de

ser conseqüência direta dos objetos que elas refletem”.

Nossa tentativa de leitura da obra trilhará outro caminho: diferentemente do

discurso-reflexo denunciado por Todorov, nosso interesse é observar, por meio da

refração operada pela arte verbal constitutiva do literário, não um mundo narrado, mas

um mundo criado pela linguagem do romance. Nesta perspectiva, tomamos como

iluminação a contra-fala do próprio BOSI (2004):

”Não que se deva calar a presença do nexo entre poesia e ideologia. Mas, ao descobrir os pontos de cruzamento, convirá ir mais longe, sabendo que a abordagem dialética, porque é dialética, não pode deter-se no momento da tedeter-se (literatura, espelho da ideologia); ela deve avançar firmemente para a antítese, que está na vida social e na linguagem poética (poesia, resistência à ideologia). É essa negatividade que redime os momentos em que o verso parece apenas oratória ou variante alienada do pensamento do opressor (p. 140)

Neste trabalho, apresentamos alguns procedimentos de elaboração poética

dessa negatividade como resistência presente nos artifícios de elaboração de um efeito

de imagem da morte à luz do conceito da alegoria moderna1, entendida como meio de

expressão da dialética entre crise social e criação artística.

1 O conceito benjaminiano de alegoria moderna foi brilhantemente sintetizado por Lúcia HELENA (1985) que, em

(13)

Uma questão decisiva que se colocou para nossa investigação foi o

reconhecimento da conjuntura da ditadura como época de crise, e neste sentido,

prenhe de possibilidades aproximativas com a leitura benjaminiana da alegoria barroca,

por “conotar o momento de decadência que se atribui à própria história, a qual se

mostrava sempre mais problemática enquanto palco de sofrimentos e privações”

(DUARTE, 2002, p.73). É importante destacar que essa conotação do sofrimento

humano e histórico é codificada na linguagem com a expressão estética do sofrimento

e, como resultado disso, a linguagem passa a representar o medium por meio do qual

se torna possível representar a situação dolorosa do homem:

O cerne da visão alegórica é a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento; significa apenas nos episódios de declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação.” (BUCK-MORSS, 2002, p.203).

A compreensão da condição sine qua non da arte alegórica – a expressão da

dor da criatura humana – foi iluminada pelas reflexões de Walter Benjamin em seus

estudos crítico-analíticos sobre o drama barroco. A partir de sua leitura das formas de

representação desse gênero, ele apresentou procedimentos similares em obras de

autores modernos, como a do poeta Charles Baudelaire. Uma de suas maiores

contribuições encontra-se na observação de aspectos ligados à efemeridade e ao

aspecto ruínico da história, presentes na poética baudelaireana.

(14)

A acuidade do pensamento de Benjamin encontra-se, portanto, em seu

reconhecimento de que a arte alegórica é a arte que expressa as épocas de crise,

podendo, desse modo, ser reconfigurada nas produções artísticas de diferentes

épocas, por ser capaz de operar a síntese entre crise social e criação artística. É dessa

relação da alegoria com a imagem de um tempo histórico em declínio que nasce o

entrelaçamento da expressão alegórica com a morte.

A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia afirmar uma identidade ainda coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que não são mais os depositários da estabilidade, mas se decompõe em fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas (GAGNEBIN: 2004, p.39)

Conforme podemos atestar no fragmento, a alegoria é, em síntese, a expressão

da dissolução, do despedaçamento nas suas mais variadas formas de manifestação –

seja na representação do sujeito (homem) ou das coisas. Essa capacidade da alegoria

para revelar a face fragmentária dos “objetos” é o que interessa diretamente ao nosso

estudo. Queremos ressaltar, ainda, um traço determinante da arte alegórica que será

fundamental para nossa leitura do romance: a idéia da história como palco, espaço

topológico no qual se encena a “peça” dramática da existência.

A idéia de palco traz consigo a idéia de espetáculo. É essa a perspectiva do olhar

benjaminiano para a alegoria: seu conceito de trauerspiel2 revela a possibilidade de

encenação, via linguagem, do drama de uma palavra que só pode se revelar como fragmento,

2 O conceito de trauerspiel (trauer = luto / spiel = jogo, espetáculo), sistematizado por W. Benjamin, pode ser

(15)

ruína. Foi essa perspectiva que conduziu nossa visão da obra como página/palco onde se

desenrolou uma ”peça de luto” romanesca na qual os caracteres da morte (des)velaram a face

precária de uma linguagem poética que só pôde ser construída pelo viés antitético da

destruição. É isto que uma personagem do romance reconhece, já na abertura da narração,

ao falar de uma escritura que tenta se erigir por meio de um idioma ruínico, morto, o latim:

Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo em latim. Imagine se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se ele gostava de latim. Eu não gosto? Nas horas nobres deitava no chão e ficava latinando, a morte combina muito com latim, não tem coisa que combine tanto com latim como a morte. (AM, p. 3-4) 3.

Outra contribuição para a compreensão das relações entre literatura e morte

pode ser encontrada no pensamento de Irlemar Chiampi (1998), que afirma a presença

de uma ”síndrome do barroco”, uma reapropriação ou “reciclagem” de seu modus

operandi em obras latino-americanas contemporâneas, que tornou possível, pelo viés

do neobarroco, revitalizar essa estética nas obras produzidas nas décadas de 70 e 90.

Segundo a autora, esse reencontro com o barroco pode ser localizado em dois

momentos da história literária, a Modernidade e a Pós-modernidade. O primeiro,

denominado por ela como modernidade, ocorre no auge do boom dos anos 60, quando o

novo romance recupera as origens barrocas em sua linguagem narrativa como fator de

identidade cultural representada na prática da fragmentação, da celebração do novo, do

afã de ruptura e experimentação; o segundo - entendido como Pós-modernidade -

situa-se nos anos 70-90 e está voltado para a apresitua-sentação de temática feminista, histórica e

testemunhal, representando a ruptura com os Grandes Relatos (do Progresso, do

3 Utilizaremos a abreviatura AM para indicar o nome da obra As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, conforme

(16)

Humanismo, da Ciência, da Arte, do Sujeito). (Cf. CHIAMPI. Barroco e Modernidade.

Prefácio, p. XVI).

Balizada por esse viés teórico-crítico, nossa leitura do romance As Meninas

rastreou as relações entre literatura e morte à luz do conceito de alegoria e suas

conseqüências para a compreensão dos modos de elaboração do romance

contemporâneo. O foco analítico concentrou-se na organização triádica das

personagens protagonistas com base na suposição inicial de que elas corporificavam

procedimentos neobarrocos configuradores de uma linguagem poética fragmentária

pautada no paradoxo da construção/ruína.

Essa hipótese tornou possível a construção de um percurso investigativo dos

procedimentos artístico-poéticos referentes à construção das personagens e à

homologação entre literatura/escritura e morte. Foram esses dois pressupostos que

aproximaram nosso foco de análise dos procedimentos da arte alegórica, por

entendermos que esse modo de expressão artística dramatiza os traços fisionômicos do

homem e da linguagem em um mundo em crise.

Uma característica central da alegoria é a percepção traumatizante da existência

que passa a valer como princípio formal de elaboração de produtos artísticos e, nesse

sentido, ela representa uma forma expressiva capaz de tornar visível uma experiência do

sofrimento, da opressão, do negativo. O reconhecimento desta capacidade expressiva da

arte alegórica para tornar visível a condição humana constituiu-se no ponto de partida

(17)

CAPÍTULO I

A composição do método alegórico

Colo teus pedaços. Unidade estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.

Carlos Drummond de Andrade

1. O jogo discursivo especular

A obra As Meninas abre-se à leitura por um pórtico epigráfico retirado do corpo

do romance: “’Ana Clara, não envesga! disse Irmã Clotilde na hora de bater a foto. Enfia

a blusa na calça, Lia, depressa. E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta!’ A

pirâmide.”

A utilização da fotografia como “porta de acesso” à obra traz uma questão central

para compreendermos os modos de construção da narrativa à luz da alegoria: a sugestão

do método fragmentário, pois a fotografia representa um fragmento cristalizado de um

objeto na tentativa de conter sua efemeridade.

Além desse aspecto diretamente relacionado à associação da técnica fotográfica

com o método escritural do romance, o instantâneo fotográfico posto na abertura da obra

também pode ser visto como um primeiro ato de presentificação da violência na narrativa,

pois, conforme Figueiredo (2003)

(18)

escapa. Vista desse ângulo, a técnica fotográfica é ela própria uma violência, mas uma violência que se pratica tentando aprisionar o real, fixá-lo, em nome da busca de uma verdade (p.31).

Nessa fixação do objeto pela fotografia, Roland Barthes (1989) vê uma forma

potencial da morte pois

...aquele que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, eídolon emitido pelo objeto, Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o espetáculo e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto (p.20).

A pertinência dessa afirmação barthiana para uma proposta de leitura do

romance As Meninas à luz dos conceitos da alegoria, verifica-se na nossa observação

de que a figura diagramática tri-angular da “pirâmide” composta pelas três personagens

funcionará, em toda a obra, como eixo emblemático disseminador da tematização da

morte. Nessa perspectiva, a emolduração fotográfica das três personagens parece

corresponder alegoricamente ao que diz Sodré (1990) sobre a fotografia: é “o

reconhecimento simultâneo, numa fração de segundo, da significância de um

acontecimento bem como de uma organização precisa de formas que dão a esse

acontecimento sua expressão adequada”.E, continua o autor:

Não estamos aqui na esfera clássica da duplicação representativa (do real) pela imagem, mas no âmbito da duplicação simuladora, onde a imagem se assume como tal, dispensando ou abolindo a caução de uma referência real. (...) fotografado, o objeto morre para seu tempo e espaço históricos e reaparece como simulacro. (BRESSON apud SODRÉ, p. 29-30).

Além da relação do fragmento fotográfico com a morte e com o simulacro, outra

questão de interesse para o entendimento da construção do método em As Meninas

refere-se ao que Cortázar observou ao aproximar a fotografia e o conto: “ambos viveriam

(19)

sobre o qual o olhar repousa, e utilizam esteticamente essa limitação”. (CORTÁZAR apud

FIGUEIREDO, 2003, p.32).

Analogamente a esse procedimento, o método de escritura lygiano parte de uma

limitação: a do contexto opressivo ditatorial. Entretanto, esse contexto não será o tema,

mas um recurso sobre o qual a linguagem literária irá operar poeticamente.

Outro aspecto relacionado a fotografia que também serve ao método é a

referência ao “olhar vesgo” da personagem Ana Clara. O artifício da visão sugere, a

nosso ver, o aparecimento de uma imagem discursiva especular, resultante do

entreespelhamento das três personagens. Com base nessa premissa, tentaremos

rastrear os traços indiciais desse modus operandi na obra, mormente no que se refere à

configuração de um diagrama discursivo tríádico.

Nos doze capítulos do romance, as meninas montam turnos discursivos

revezando-se como narradoras e instaurando um jogo caleidoscópico de observação. O

discurso estruturante da fala dessas personagens, o monólogo interior, permite que elas

girem o olhar reciprocamente entre si como personagens ”percebidas, mas também

perceptoras, ‘refletoras’ (TODOROV, 1970, p.65).

O reconhecimento da existência de uma organização narrativa marcada pela

visualização recíproca, remete-nos tanto à figura poliangular da pirâmide, presente na

epígrafe, quanto a outro modo de entreespelhamento do ângulo de visão, a mediação do

olhar pela figura do espelho:

Aquilo que pensamos se reflete em três espelhos do absurdo  leio no poeta que abri por acaso, consulto poesia como o paizinho

consultava O Velho Testamento, sempre ao acaso:  Três espelhos

do absurdo. Esse é o meu. E os outros dois? (...)

(20)

seu manto, seu rosto, suas mãos segurando esse pano. É pouco, não? E o resto? Onde está o resto que não posso ver? (AM, p. 139).

Inicialmente importa destacar, conforme o primeiro fragmento, que a experiência

visual é problematizada pelo desdobramento do reflexo em três espelhos do absurdo.

Cremos que é possível ver nesse trecho a manifestação de um método de construção

deformador da visão como totalidade, os princípios de uma arquitetura romanesca

neobarroca, que instaura na narrativa o descentramento do olhar e o estilhaçamento da

imagem em fragmentos, conforme podemos observar no segundo trecho: “apenas um

terço de nós é visível. E o resto?”.

Essa relação olho/espelho, que resulta numa visão especular, é recorrente em

todo o romance e será responsável pela construção fisionômica do drama das

personagens:

Ana Clara apoiou-se na banheira. Olhou-se no espelho (...) Examinou no espelho a face brilhante (AM, p.160).

Lorena: “Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho” (AM, p.136).

Lia: “Na parede, os altos espelhos refletindo-a em todos os

ângulos. ‘Como tomar um porre de si mesma.’ (AM, p. 201).

A relação recíproca de olhar e ser olhado pelo espelho cria uma dupla ilusão

perspectiva. Mas esta também é problematizada pelo jogo entre olho/espelho/página

que emoldura o sujeito da cena, definindo o ângulo de sua projeção imagética:

“olhou-se / me olha / refletindo- a. Es“olhou-se exercício de perspectiva, viabilizado pela posição de

cada personagem diante do espelho, aponta para um aspecto neobarroco da escritura:

a visualização de sujeitos fracionados que encenam posições diante do espelho como

(21)

Essas questões colocam-nos o problema da visualidade como ponto nodal na

escritura e remetem nossa análise para as reflexões sobre a função do olho nas artes.

A visão é uma faculdade que opera desde o mais imediato plano sensível (percepção sensorial) até o mais elevado plano intelectual (conhecimento intelectivo, intuição, etc.) [...] Estar no mundo implica em ver (saber de si, saber do outro), situação que se torna cada vez mais complexa quanto maior a capacidade de visão a ser considerada. No caso do homem, em particular, essa complexidade é proporcional à extensa gama de suas atuações ‘visuais’, que culminam na consciência. (CHARDIN apud BARROS 2002, p. 35)

Nessa perspectiva, a arte apresenta-se como discurso inserido entre o sujeito e o

mundo, “discurso efetuado por meio da visão e atualizado por signos visuais”

(BARROS, 2002, p.37). No plano da arte verbal, a atualização da visualidade ocorre

predominantemente no discurso agenciado pelas personagens, conforme foi possível

atestar nos fragmentos do romance.

No que concerne ao nosso interesse de apresentar uma leitura dos

procedimentos de estruturação de uma poética da morte, a idéia de um espelho do

absurdo desdobrado em três – metáfora das personagens – traz conseqüências

estruturais e semânticas que podem estar relacionadas à dissolução de uma linguagem

estritamente mimética em relação ao real, bem como à atitude de perplexidade da

linguagem poética perante o contexto da ditadura.

A visualidade relacionada à limitação do espaço, estratégia artística que recria a

atmosfera opressiva, aparece na descrição de um quarto feita pela personagem Lia, a

guerrilheira:

— Sim? — disse o copeiro entreabrindo a porta. [...] Com um gesto evasivo, ele apontou uma cadeira no vestíbulo penumbroso. O olhar voltou a boiar indiferente na superfície meio estagnada dos olhos (AM, 200).

(22)

Corredores e salas até o túnel ir se apertando mais secreto, mais escuro. O vestíbulo dava para um quarto trevoso. Quarto? Pela primeira vez entrava numa verdadeira alcova onde não vi janelas mas cortinas e panejamentos de um dossel lânguido, sustentado por quatro colunetas. Aproximei-me. Os panos desciam, compondo uma espécie de casulo [...] A luz do abajur de cabeceira estava acesa. O sol explodia lá fora mas ali era noite (AM, 205).

[...] O teto baixo não oferece a menor visibilidade (AM, 210)

― O banheiro? Vou entrar um instante.

A sala de banho lilás resplandece como se a noite do quarto tivesse entrado até ali (AM, 218).

Entrou a empregada numa lufada de ar. Respirei como um condenado na câmara de gás. (AM, 225).

Conforme podemos observar, os fragmentos destacados criam uma atmosfera

espacial asfixiante por meio da apresentação de elementos visuais e cromáticos que

concorrem para o efeito de fechamento. Além desses recursos, a informação de que as

personagens moram em quartos de um pensionato para moças reforça a “ansiedade de

espaço” 4 no romance.´

Entretanto, é na estruturação do foco narrativo que a visualidade diagramática da

tensão entre interior/exterior vivenciada pelas personagens se explicita, pois, não

obstante a predominância do monólogo interior como estrutura discursiva que provoca

como efeito o ensimesmamento de cada personagem, o casulo de cada micro-narrativa

é rompido pelo comparecimento de cada personagem no discurso da outra,

respectivamente:

Lia: “A Loreninha acrescentaria: coitadinhos. Mas quando ela fala em tom

poético não usa diminutivos” (AM, p.119). Penso imediatamente em Ana Clara.Tenho

que amá-la. Difícil, fico impaciente, irritada”. (AM, p.217).

Lorena: “Lião fica uma vara se falo em cartomantes, sou vidrada em

cartomantes. Disse que não tem destino, não tem nada, porque somos livres,

4 Expressão utilizada por Lúcia Helena no texto “A tradição reinventada”, no qual analisa as produções de autoras

(23)

completamente livres.” (AM,p.105). “Ana Clara falava tanto em Jaguar, coitadinha. Tão

superado o Jaguar”. As coisas que tomava seriam para substituir o casaco de onça? O

Jaguar? (AM, p. 54-107).

Ana Clara: “Ana Clara Conceição você está me ouvindo? Estou Lorena Vaz

Leme. Descendente de bandeirantes”. (AM, p.70). Lião contou que o pilhento foi lixado

assim. Se me convidassem para entrar no grupo quando eu era menina sabe que eu

entrava?”(AM, p.69).

Esse monólogo interior dialogizado refrata a visão de cada personagem em

múltiplos ângulos, permitindo que componhamos vários focos de observação. Como

conseqüência, a narrativa se descentra, engendrando os estilhaços de um espelho que

forja perfis não fixos. Entendemos, ainda, que nesses recortes dialógicos as

personagens refletem fisionomias do tempo opressor e é isto que tentaremos

apresentar nas próximas análises.

Para elucidar esse pressuposto, consideramos em nossa perspectiva de

abordagem, a categoria da personagem como a define Walter Benjamin no drama

barroco: “os personagens da ficção só existem na ficção. Como os personagens de

uma tapeçaria, eles estão de tal forma integrados na tessitura total da obra que não

podem de forma alguma ser destacados dela.”(op. cit., p. 128)

Tentaremos complexizar a afirmativa de Benjamin, acrescentando a concepção

de personagem-texto, tal como a apresenta Fernando Segolin (1978): “um complexo

sígnico dotado de uma natureza verbal, diferentemente da personagem-função, que

mantém uma estreita relação referencial com o mundo, construindo a ilusão do

(24)

Em consonância com o pensamento desses teóricos, tomaremos em nossa

abordagem a personagem como “método de composição”, conforme afirma Bradbury,

citando Nabokov (1989, p. 162) e, portanto, como linguagem por pertencer “mais a um

processo do que a um mundo produzido por imitação, parecendo participar do ato de

sua própria criação” (FLETCHER, 1989, p. 325).

2. A (CON)TEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CORPO ROMANESCO

Além do aspecto referente à fragmentação, apresentado no tópico anterior, outra

característica da arte alegórica é permitir à linguagem incorporar as temáticas com as

quais trabalha ao procedimento construtivo da própria obra. Neste sentido, o interesse

deste tópico é apresentar os modos de inscrição da violência e morte na palavra literária

do romance As Meninas, com base na hipótese de que o modo de incorporação poética

dessa palavra estabelece diálogo com o método alegórico.

Uma premissa central que se coloca no que tange à temática da violência é a de

que em toda organização social a manutenção da ordem e a tentativa de controle da

conduta dos indivíduos pressupõem seu uso como fator de regulação dos valores

institucionais.

Não obstante, quando se faz necessário balizar as fronteiras do poder, a

simbolização que media as restrições impostas aos indivíduos é substituída pela violência

explícita. A Ditadura Militar (1964 –1972) representou um momento da vida sócio-política

brasileira em que a repressão imposta pelo Estado-segurança funcionou como força

motriz dessa violência sanguinária, e a morte, seu resultado mais aparente, inscrevem-se

(25)

depõe Fábio Lucas (1989), em diversos gêneros ficcionais, a exemplo do conto e do

romance, manifestam-se imagens dessa violência como reflexo temático e projeção das

práticas repressivas no discurso literário.

Refletindo sobre a manifestação da violência ditatorial no Brasil como núcleo

temático de narrativas ficcionais, esse autor apresenta duas questões de interesse para

nossa leitura do romance As Meninas: o problema da repressão como interdição do

desejo e o exercício da violência indisciplinada vigente no período.

Para nossa abordagem, centrada na análise das relações entre escrita e morte,

esses dois tópicos são significativos por corresponderem, respectivamente, a dois tipos

de violência: a psicológica e a física, ambas presentes no romance.

Ainda segundo Fábio Lucas, enquanto uma grande parcela de ficcionistas

brasileiros dos decênios de 60-70 se encontra inapelavelmente limitada pelos traços da

época e pelos horizontes da vida coletiva, outra “distanciou-se da preocupação de

transcrever meramente a realidade social, pondo em declínio a narrativa centralizada na

‘crônica de costumes’ e provocando a ascensão daquela que cria a personagem dividida

interiormente, mutilada e impotente, em choque com os valores que a esmagam” (1989,

p.106).

Dentre os autores brasileiros que elaboram suas narrativas com base nessa

tendência, conforme o autor, encontra-se Lygia Fagundes Telles, cuja produção traz

marcadamente traços de indagação sobre o destino humano numa perspectiva de

reflexão especulativa. Resulta como conseqüência derivada desse modo de construção

ficcional, uma atenção maior ao próprio processo narrativo, o que faz com o que o

(26)

Analogamente ao que propõe o crítico em suas análises, no romance As

Meninas, obra contemporânea da Ditadura Militar no Brasil, é possível observar que

Lygia Fagundes Telles opera artisticamente por meio da internalização de procedimentos

de criação que agenciam homologações entre o contexto social violento e o discurso

literário. Um exemplo desse recurso pode ser observado em trechos que conferem à

narrativa, pela fala monologal das personagens, um caráter auto-especulativo:

Estava contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. As letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos,agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem, mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos (AM, 57-8).

Essa homologação entre letra (escritura) e violência, espécie de inscrição textual

da morte, é recorrente em outras passagens da obra:

— Está liquidando o canteirinho — sussurrou Lorena enquanto dobrava o guardanapo [...] No guardanapo branco, as iniciais do pensionato estavam bordadas em linha vermelha: P. N. F. F. Ponto de cruz. A letra

P era a mais caprichada. Já o N meio torto se aproximara demais do S

que para compensar o defeito, abandonara o F ilhado na auréola

rosada da linha que desbotou. — Um mato duro de tirar — resmungou a freira vergando o corpo para trás. [...] A senhora faz jardinagem como borda — digo passando o dedo no F tão mais pálido do que as outras letras, a se esvair sanguinolento em meio a nódoa rosada. Como um ferido de morte. (AM, p.57).

O dilaceramento presentificado na personificação dos sinais gráficos, conforme

os dois fragmentos, autoriza uma leitura deste romance como corpo no qual a inscrição

da morte se faz tatuagem. Violentado pela repressão, resta ao discurso (con)figurar-se

metalingüisticamente, assumindo como condição de existência a convivência pari passu

(27)

romance como espaço reflexivo no qual se organizam poeticamente diferentes formas de

composição de uma creación dolor.

As ressonâncias da violência na obra podem ser vistas também em passagens

que estruturam jogos polifônicos, a exemplo do diálogo da personagem Lia, a

guerrilheira, com madre Alix, freira do pensionato onde “as meninas” moram:

— Não, Madre Alix. Confesso que estou mudando, a violência não funciona [...] mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma — digo e procuro o depoimento que levei pra (sic) mostrar a Pedro e esqueci. — Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, não vou ler tudo: Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de tortura. Iniciou-se um cerimonial freqüentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor de meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choque em mim mesmo e em meus amigos.Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos: mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido ás algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. E etcétera, etcétera. (AM, p.131-2).

No fragmento acima, é possível observar o artifício de incorporação do

texto-depoimento do torturado pelo romance e a performance de sua leitura pela personagem

(28)

diz”. Esses recursos possibilitam a interatividade com os interlocutores - Madre Alix e o

leitor. Entendemos que essa leitura de um texto trazido ao nosso conhecimento pela

personagem compromete uma referencialidade direta e aponta para a artificialização

literária do testemunho da violência.

Não obstante o depoimento-testemunho sobre a violência, explicitado no

fragmento acima, o discurso lygiano rompe com a univocidade discursiva sobre a

temática ao apresentar ironicamente, pela fala da mesma personagem, Lia, a atitude

dos intelectuais diante do fato político da ditadura:

Os intelectuais com seus filminhos sobre o Vietcong. Há tanta fome e tanto sangue na tela de lençol. Tão terrível ver tanta morte, putz, como pode? Revolta e náusea. “Náusea sartriana”, murmura uma convidada bisonha. Que se cala quando sente no escuro os olhares gelados em sua direção. [...] As luzes se acendem mas as caras demoram pra acender, que horror. Uísque e patê pra (sic) aliviar o ambiente. Considerações sobre prováveis nomes nas próximas listas. Voltam os filminhos ás latas enquanto aos poucos voltam todos às respectivas casas. [..] São bem humorados os intelectuais. Até piadas. Mas, justiça seja feita, estão vigilantes. Sobretudo informados, pudera, se reunindo como se reúnem. Sabem que você foi preso e torturado, menino corajoso esse Miguel, é preciso ter coragem, bravo, bravo. [..] Os intelectuais estão comovidos demais pra (sic) falar, só ficam sacudindo a cabeça e bebendo. A sorte é que o uísque não é nacional. (AM, p.22-3).

Podemos visualizar em procedimentos artísticos como Fábio Lucas (1989)

aponta em obras que classifica como “contos de repressão”: nelas “é possível

aprofundar o estudo da violência, sua tipologia, seu exercício, assim como as formas de

que se reveste, incluindo-se aí a sua utilização no discurso literário, no interminável

jogo entre o texto e o contexto” (p.153).

Ainda segundo esse autor, as obras inscritas nessa categoria “curiosamente não

apontam para a utopia, nem se transformaram em armas ideológicas para se lograr

(29)

na área da negatividade e da desesperança do que na idealização de um mundo

corrigido. Somente por linha reflexa é que dizem da emancipação humana” (1989,

p.154). Esse posicionamento revela um distanciamento da preocupação de transcrever

meramente a realidade social.

As conseqüências advindas desse modus operandi da obra literária se fazem

observar numa atitude escritural que é própria das obras produzidas no período

imediatamente posterior à ditadura, o chamado Pós-64: a auto-contemplação do

processo de construção do texto literário. Renato Franco (1998) afirma que é próprio

desse período histórico-político “a conquista, por parte da elaboração romanesca, de

uma aguda autoconsciência estética acerca das próprias condições sobre sua atual

natureza ou a do ato narrativo e também sobre a condição particular do escritor em uma

sociedade que parece conspirar contra sua mera existência” (p. 122).

No romance As Meninas, a personagem Lia representa, conforme vimos nos

fragmentos anteriores, o sujeito actancial que agencia as falas e o olhar sobre os

modos de opressão social internalizados na narrativa. Além de sua função testemunhal

direta da violência – como guerrilheira -, ela encena, como escritora, o questionamento

sobre a (im)possibilidade da escritura no período. Além dessa personagem outras

questionam polifonicamente esse lugar da literatura, orquestrando na narrativa uma

espécie de “voz autoral” auto-avaliativa:

(...)

Muito bem, muito bem. E o livro? Disseram-me que tem um livro quase pronto. Segundo a informação, trata-se de um romance, Não?

— Rasguei tudo, entende — disse ela soprando a fumaça na minha cara. — O mar de livros inúteis já transbordou. Ora, ficção. Quem é que está se importando com isso (AM p.18).

(30)

Rasguei o meu romance, eu disse. (AM, p.21).

(...)

Contei que rasguei meu livro e foi como se dissesse que rasguei o jornal. Não gosta do que eu escrevo. Ninguém gosta, deve ser uma bela merda. Mas as pessoas sabem o que é bom? O que é ruim? Quem é que sabe? E se for válido? Não devia ter rasgado coisa nenhuma. Mas sei de cor, posso aproveitar o texto talvez num diário. Gostaria de escrever um diário. Estilo simples, direto. (AM p.22).

(...)

Quem sabe um dia ainda vou escrever bem. Se isso acontecer. Tenho pensado num diário, diário deve ser mais simples, uma coisa assim despojada, a Lorena me aconselhou a escrever despojado, me acha barroca. Sou barroca por dentro e por fora, aceito. (AM, p.122).

Os trechos acima apresentam como característica comum algo que se aproxima

do que Telma Borges da Silva (1996) afirmou em seu texto “Inventário de ruínas”, no

qual analisa a feição alegórica da poesia de Baudelaire e Cesário Verde: “A cena escrita

(tenta) fazer-se sob o signo da visibilidade, traduz-se no ‘dar a ver’, mas se volatiliza” (p.

177). Esse desaparecimento de uma escrita que nem chega a se concretizar é

incorporado ao romance não apenas como linguagem, mas, pelo viés do método

alegórico, “penetra no logos poético e se manifesta como escrita ruínica que é a

absorvida no que é lido como figura do lido” (BENJAMIN: 1984, p.236).

O questionamento das personagens sobre o lugar da ficção no contexto

repressivo, apresentado nos excertos acima, sugere possibilidades de leitura sobre as

estratégias de elaboração do gênero romance no referido período, pois é peculiar ao

romance Pós-64, segundo Renato Franco, a consciência da impossibilidade de construir

uma sólida ilusão de realidade. Essa consciência faz com que ele se desnude,

(31)

revelando que é constituído por um sentimento de desorientação cuja análise pode ser

proveitosa” (1998, p.150).

Um pensamento análogo pode ser encontrado em Linda Hutcheon (1991), para

quem “A interação do historiográfico com o metaficcional em textos contemporâneos

coloca em evidência a rejeição de pretensões de representação autêntica e da

referencialidade histórica” (p. 141-162).

Serão esses pressupostos que nortearão as análises constitutivas dos próximos

capítulos. Neles tentaremos observar como as personagens protagonistas encenam

(32)

CAPÍTULO II

A anamorfose como artifício poético da evasão

Neste capítulo, observaremos como o artifício poético da anamorfose permite à

narração movimentos internos de ruptura com as coerções contextuais, próprias da

ditadura, a partir de três recursos criativos: o delírio que se manifesta no discurso da

personagem usuária de drogas, as rasuras operadas em textos da cultura incorporados

intertextualmente ao romance e a onipresença da morte na temporalidade.

1. A droga

A temática da droga manifesta-se na linguagem pela personagem Ana Clara,

jovem que se droga e cuja imagem é trazida à visualização pela imbricação narrativa

das falas das personagens Lia e Lorena:

Vai mal a Ana Turva. De manhã já está dopada. E faz dívidas feito doida, tem cobrador aos montes no portão. As freirinhas estão em

pânico. E esse namorado dela, o traficante...  O Max? Ele é

traficante?  Ora, então você não sabe  resmungou Lião arrancando

um fiapo de unha de unha do polegar.  E não é só bolinha e

maconha, cansei de ver as marcas das picadas. Devia ser internada imediatamente. O que também não vai adiantar no ponto em que chegou (...) Lião está com medo. Ana Clara também posa de indiferente mas se não toma tranqüilizante recomeça naquele delírio ambulatório (AM, p. 13-9).

(...)

(33)

A droga, artifício de desarticulação da lógica narrativa, terá como função, no

romance, o desencadeamento da virtualização da morte. Segundo Lévy (1996), a

palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez de virtus, potência,

força. Sendo assim, o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à

concretização efetiva ou formal. Entendemos, desse modo, que, no plano poético, a

droga presentifica um recurso viabilizador da potencialização narrativa, a anamorfose,

isto porque permite à linguagem uma performance delirante.

A anamorfose consiste num artifício de construção barroca que compromete o

princípio da simetria e da verossimilhança. Segundo SANT’ANNA,

a perspectiva simétrica renascentista desvirtua-se no Barroco. As proporções tornam-se mais expressionistas, o olho do pintor ou do espectador parece estar às vezes em estado alucinatório (...) em muitas obras barrocas ocorre um tumulto na superfície lisa, que deixou de ser espelho ou lago plácido para ser reflexo de agitação, sinuosidades e dramas que expõem o interior dos personagens e não apenas sua tranqüila face. (...) O espelho barroco, então, ao invés de simetria, passa a reproduzir tortuosidades; ao invés da objetividade, subjetividades. O espelho se converte em lente deformadora do real (2000, p.43)

A informação de que a personagem Ana Clara droga-se, conforme o fragmento

inicial, representa um elemento decisivo para compreendermos alguns procedimentos

da linguagem poética na obra. Por meio desse artifício, adentramos num caleidoscópio

discursivo, gerado pelo fluxo de consciência da personagem e deparamo-nos com uma

“palavra desatinada que se apresenta na escritura como [...] evasão compensadora das

opressões coerções e repressões” (CORTÁZAR apud YURRIEVICH, 1997, p. 22). Tal

“desatino da palavra” pode ser visto em passagens, como:

(34)

química. Eu limpava e vinha o judeu velhinho que gostava de mim e me dava o avental para vestir e deixava eu lidar com as agüinhas. Me explicava as coisas das cores azul vermelho verde. As agüinhas mudavam de cor (...) os vidrinhos mudando de cor que nem nós. Olha,

amor, bebo e viro arco-íris azul, amarelo, ai! Não me pega senão

derramo. Eu sabia a música, como era? (AM, p.35).

(...)

As agüinhas escorrendo e eu verde amarela azul ah vou me tingindo de mar. Um mar amor. Vou boiando e as línguas verdes dos peixes me lambendo as pernas não! Grito me cobrindo porque a língua lambe meu ventre e me penetra tão quente ah amor. (AM, p.37)

As conjunções aditivas destacadas, que marcam a presença do polissíndeto,

iniciam várias orações e sintaticamente são necessárias, mas semanticamente são

oralizantes, além de melódicas. A repetição sucessiva desse “e”, chamado “e” de

movimento, dá fluidez ao texto, sugere movimentos ininterruptos e marca uma seriação

redundante e pleonástica, presentificando a perturbação mental da persoangem.

Entendemos, além disto, que essa marcação excessiva pelas coordenativas funciona

como esteio para dar suporte a ilogicidade do discurso.

Não obstante, é na figura da anamorfose barroca5 que podemos ancorar uma

possível leitura desse fragmento, pois, segundo SANT’ANNA, na anamorfose “a cena

retratada abandona a homologia com o real e rompe-se a linearidade entre o olhar e o

5 A anamorfose é definida por Affonso Romano de Sant’Anna como um recurso artístico ligado à

(35)

quadro. O olho olha, mas não reconhece o que vê retratado; os traços lhe parecem algo

caótico, os volumes se assemelham a um turbilhão de formas retorcidas e sem sentido”

(op. cit., p. 49).

No romance, o processo da anamorfose é gerado pelas distorções de foco do

olho da personagem drogada. O estrabismo desse olho está presente em construções,

como: “Agora ela ria, a face corada, os olhos brilhantes, ligeiramente estrábicos” (AM,

p.223) “Passou um anão agora mesmo no canto do meu olho mas já sumiu” (AM,

p.77). Ela então me olhou em silêncio. E seu olhar que em geral é oblíquo ficou reto.”

(AM, p.55).

O olhar enviesado, transtornado e perturbado pela droga, instrumento de uma

percepção visual distorcida que instaura uma perspectiva diagonal de observação,

configura-se como espaço da transgressão da linguagem e sugere que o artifício da

anamorfose no romance pode estar relacionado a uma idéia de experiência visual

internalizada no sujeito observador, revelando que: “A visão e seus efeitos são sempre

inseparáveis das possibilidades de um sujeito que observa, o qual é tanto um produto

histórico quanto local de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de

subjetificação” (BARROS: 2002, p.39).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que a “alucinação discursiva” da

personagem desencadeia um processo de subjetificação irracional, como forma de

contraposição barroca à tentativa de imposição da ordem, própria do (con)texto

ditatorial. Sendo assim, o princípio da evasão surge porque:

(36)

quase caótica; onde havia imobilidade, estabilidade, tranqüilidade,

irrompe a instabilidade, a insegurança, a vertigem. (SANT’ANNA,

2000, p.48).

A viagem vertiginosa viabilizada pela droga ganha proporções cada vez maiores

na narrativa:

Os diabinhos ainda voam por aqui e brincam comigo e eu dou beliscões em Max que nem sente. É festa? Esqueça esqueça. Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludo-e-ventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada. (AM, p.73).

Uma tentativa de explicação para a irracionalidade presente nessa pura imagem

como expressão poética, pode ser encontrada em Bachelard (apud LAFETÁ, 1986),

que depõe:

O espelho sem moldura que é um céu azul desperta um narcisismo especial, o narcisismo da pureza, da vacuidade sentimental, da vontade livre. No céu azul e vazio, o sonhador encontra o esquema dos sentimentos azuis da clareza intuitiva, da felicidade de ser claro em seus sentimentos, seus atos e seus pensamentos. O narciso aéreo mira-se no céu azul (p.168-9).

Uma leitura complementar das imagens derivadas do “céu azul”, ainda à luz das

contribuições teóricas de Bachelard, revela que os “devaneios aéreos” baseados neste

tropo tendem todos à desmaterialização e à dissolução do ser, construindo uma visão

poética em que “o mundo imaginado é posto antes do mundo representado e em que o

conhecimento poético precede o conhecimento racional dos objetos. (Bachelard apud

LAFETÁ, 1986, p.166).

Esse ponto de vista aéreo pode ser visto também como a evanescência, a

desmaterialização, a liberdade do texto numa cultura que nega esse valor. Assim,

(37)

propositalmente irreal, a direção que segue é tão forçada no rumo do sonho, que ele se

ergue como verdadeiro antípoda das relações sociais existentes, revelando o conteúdo

arquetípico: a negação da não-liberdade” (p.135).

A droga permite à linguagem empreender uma viagem em liberdade, uma

peregrinação aérea e fantástica:

― Aterrissar! Aterrissar! ― Gritou Max abrindo os braços e desabando de bruços no travesseiro (AM, p77).

Ana Clara: (..) A gente tem que conhecer as coisas todas chegar ao fundo do poço e depois dar aquela arrancada de avião uiiiiiiiim! (AM, p.73).

Procuro no chão um cigarro. Bebo na garrafa e fico tragando até chegar à estratosfera. (AM, p.71).

Rolo nas nuvens

O deslocamento do ponto de vista da horizontalidade para o alto possibilita a

visão ilusória da plenitude. Cremos que o ponto de vista aéreo na escritura de Lygia se

aproxima da ânsia pela liberdade, ainda que às custas da ilusão criada pelo jogo ótico

(38)

2. A poética da devoração no romance

Além da evasão propiciada pela droga, a personagem Ana Clara agencia outro

modo de manifestação da anamorfose: o excesso narrativo resultante da apropriação

de fragmentos narrativos pertencentes aos contos populares e fábulas tradicionais.

Nosso interesse, neste capítulo, é destacar e analisar as dominantes desse artifício de

construção na obra, na tentativa de reconhecer mais um traço de ruptura do texto

literário com o discurso unívoco da ditadura, além de tentar demonstrar um traço

neobarroco presente no romance: a unidade esfacelada e irrecuperável da palavra

tradicional.

A personagem-narradora Ana Clara arquiteta um discurso auto-reflexivo tecido

pela (re)apropriação de restos, fragmentos e repetições de textos que circulam na

cultura. Para a elaboração desse procedimento é utilizado um traço compositivo

característico do neobarroco: a estrutura da repetição e da citação.

Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona. Contente. Semente torrada com sal é bom pra lombriga ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento. Não quero a semente mãe quero a história. Então à meia-noite a princesa virava abóbora. Quem me contou isso ? Você não mãe que você não contava história contava dinheiro. A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada. (AM, p.27).

É possível observar, de acordo com o fragmento acima, que a estrutura da

repetição em Lygia subverte o conto tradicional. O fragmento “à meia-noite a princesa

virava abóbora” difere da informação do conto: “à meia-noite a carruagem viraria

(39)

da permuta lexical carruagem/princesa, a forma verbal no pretérito imperfeito – virava

- indica que o fato ocorrido é habitual, caracterizando-se, portanto, pela repetição do

acontecimento, o que elimina o aspecto condicional. Essas permutas

sintático-semânticas, estabelecem uma rasura em relação ao conto popular e geram uma

tensão dialógica intertextual. Como conseqüência desse procedimento, a linguagem

conota um indício de dissolução da história verdadeira, substituindo-a por uma história

possível.

Uma leitura possível dessa tensão dialógica operada pelo discurso da

personagem pode ser explicada pela apropriação, na alegoria moderna, das “ruínas de

dicção poética” pois, segundo Vianna (1985, p. 159) “Nascida sob o signo de uma

violência (a da ruptura com a experiência e a tradição, substituídas pela vivência de

choque) a alegoria presta-se à valorização do escatológico, do excessivo, do grotesco e

da devoração”.

Além da apropriação do conto popular, presente no fragmento analisado acima,

outra forma de devoração intertertextual aparece na usurpação, pela personagem, de

diferentes identidades com as quais tenta, provisoriamente, construir a sua:

Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver. Certidão nova pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido. Batizo meu pai pra me casar não posso? Nome de imperador. Então. (...) Caio César Augusto. Caio César Augusto Conceição.

A hibridização do nome do antigo imperador romano com parte do nome da

personagem, “Conceição”, revela-se como artifício poético de comprometimento de uma

mímesis ético-representativa, em favor de uma linguagem cujo pendor permutacional

(40)

Lariboisière? Sei lá na hora decido meto o nome que entender não estou pagando?

O Conceição é da mãe.“ (AM, p.73).

A apropriação de estruturas de histórias de amor novelescas é outro recurso

utilizado pela personagem para construir sua história:

Então a velha quis saber por que eu andava assim quietinha. (...) Então a velha quis saber. Meu pai morreu num desastre de avião e minha mãe está com câncer. Ela então se benzeu meu Deus que horror. Que horror ficou repetindo e sacudindo a cabeça e me consolando porque eu já comecei a chorar “ah minha pobre menina minha pobre

menina.” Vai acontecer que nem nas besouragens da mulher

importante que adota uma órfã pobre e bonita. E vem um sobrinho orgulhoso e cruel porque me visto mal mas logo fica vidrado de amor e se atira em mim que nem. (AM, p. 76)

O decalque explícito de categorias narrativas que fazem parte do repertório

tradicional, de acordo com o trecho destacado “Vai acontecer que nem” é recuperado

em eco na última construção “que nem”. Esse artifício de incorporação da repetição na

estrutura sintática possibilita ao texto uma abertura semântica para a leitura bem como

para a incorporação de outros textos possíveis, apontando para uma incorporação

textual ad infinitum.

Não obstante, num processo de construção antitética, o texto que mal começou a

ser construído ameaça ruir: conforme podemos ver no trecho, a velha, que parecia

ocupar a categoria proppiana6 de auxiliar da heroína, acaba por ocupar a posição de

antagonista:

“Mas isso tudo é mesmo verdade?” estranhou a mulher enquanto ia tecendo um tapete fazia um tapete e era exigentíssima tanto no trabalho como no questionário. Antes de falar eu precisava falar mas

6 Referimo-nos aqui às categorias dos contos populares russos sistematizadas por Wladimir Propp (2006). Em seu

(41)

ela trabalhava tão depressa com a agulha que comecei a me enredar nos fios. Aconteceu quando meu pai guiava um Opala e ela parou a agulha. “Opala? Mas não foi num avião?” Recomecei a chorar para ganhar tempo. Primeiro foi com um Opala e depois.”Mas seu pai tinha um avião?” ela se espantou. Ele era o aviador. O avião era de um velho que lidava com petróleo. “Petróleo?” Petróleo sim senhora. “Como se chamava esse homem. Esse patrão do seu pai.” Ah lá sei. Sei que era um homem importantíssimo tinha avião tinha iate. Ah. “Ah

fez ela recomeçando o maldito tapete. ― E depois” Depois o

avião se espatifou nas pedras tinha caído uma horrível tempestade e meu pai perdeu o controle foi isso. Então minha mãe piorou lá do câncer dela e perdemos tudo e fomos morar com meu tio que é um grande médico. “Médico? Qual é o nome dele?” Fui ficando com raiva então era só ir fazendo a vontade dela? Um grande médico sim senhora importante á beca tio Clóvis. Já ia perguntar o nome dele quando entrou a vesguinha. Tinha uma concha na mão. Clóvis Conchal respondi sem pestanejar. Clóvis Conchal repeti e antes que ela me cutucasse com mais perguntas como cutucava o pano dei um grito sacudindo a mão uma vespa! Saí correndo ai que dor ai que dor. Não se voltou a falar no meu pai não sabido e ignorado nem na minha mãe que tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor que a morte para apagar as pegadas como a onda apaga toda a escrita da areia. (AM, p.76-7).

Essa “atitude” da personagem pode ser explicada, numa aproximação com a

análise do teatro pós-moderno apresentada por Steven Connor (2000), por uma “recusa

da narrativa” que resulta numa concentração de forças não mais “no ímpeto e coerência

narrativos, mas sim na “superposição ou ‘arrumação de camadas’, o repisar, a citação,

a repetição (...) a duplicação, a ‘fantasmagoria’, a tradução, a transferência”. (p.117),

processos que desnudam o procedimento da bricolagem textual.

Outra forma de manifestação da intertextualidade como recurso estruturador do

drama da linguagem neste romance é, conforme se deduz do trecho citado, a

incapacidade de narrar. A personagem inventa uma história para enganar uma outra

personagem, duplicando a ficção; não obstante, é desmascarada por aquela a quem

(42)

Noites, uma narrativa infinita, Ana Clara vê sua história-trapaça questionada, conforme

vimos no fragmento.

O erro na tessitura dos fios é fatal. A mulher-Penélope traz em si a ambigüidade

do tecer / destecer. O “tapete”, mal se constrói, é desfeito. A história desmorona. A

pergunta da tecelã “Mas isso é mesmo verdade?” força o reconhecimento do estatuto

ficcional. O artifício narrativo utilizado pela personagem - a sobreposição de textos – e a

contrapartida de sua interlocutora, a desconstrução do fio narrativo, conduz-nos à idéia

de Roland Barthes de texto como jogo,

... engendramento perpétuo de significantes. Não segundo uma via orgânica de maturação, ou segundo uma hermenêutica de aprofundamento; mas antes de tudo segundo um movimento serial de desencaixes, de imbricações, de variações; a lógica que define o texto não é interpretativa mas metonímica; o trabalho das associações das contigüidades, das relações, coincide com uma liberação da energia simbólica. O Texto é deste modo restituído à linguagem; como ela é também estruturado, mas desfocado, sem fechamento. (apud SEGOLlN,1978, p.101)

Essa perspectiva de construção textual aponta, segundo Segolin (1978) para a

textualização da personagem, em detrimento de sua presença na obra como “função”.

Resulta desse processo que, do ponto de vista funcional, os agentes narrativos sejam

desfigurados definindo-se como “atores-discurso que dão vida ao texto mediante o jogo

metalingüístico de seus conceitos” (p. 102).

Outra problematização gerada pelo jogo estabelecido entre a personagem e sua

interlocutora, a mulher que “quer saber a verdade da mentira”, pode estar relacionada

ao problema da verossimilhança, aspecto responsável pela coerência da narrativa. A

escritura lygiana aponta, nessa perspectiva, para a questão da coerência verossímel,

(43)

“a narrativa literária é uma fala mediada e não imediata e que, ademais, está submetida

às restrições da ficção” (TODOROV, 2003, p. 41).

Outra interpretação possível para o fracasso da narrativa construída pela

personagem pode estar relacionada ao “não contar mais?” benjaminiano. Assim, o

encontro da personagem com essa “velha” que “sabe” remete-nos à relação entre

narração/experiência na modernidade. Esta última, conforme depõe o teórico, nos foi

subtraída, gerando uma “pobreza de experiência que não é mais privada, mas de toda

a humanidade” (BENJAMIN, 1994, p.115).

Sobre essa busca desesperada por uma história redentora, embora

conscientemente “falsa” e, por isso, sempre ameaçada pelo desmascaramento, é

interessante atentar para o que nos diz Richard Sheppard (1989), ao tratar da crise da

linguagem nas obras literárias modernas: “O poeta deixa de ser o celebrador de uma

ordem humana, e torna-se o experimentador que busca uma ‘imagem redimida e

redentora’ quase impossível em meio a um universo mutável, num processo

aparentemente caótico, como que tentando manter um equilíbrio na beira de um

penhasco em desmoronamento” (p.269).

Desmoronamento, ruína; do romance e da personagem. Escritura e morte

imbricam-se mutuamente na imagem do “apagamento”, instaurando o drama da

linguagem na fala da personagem, como podemos ver neste trecho do fragmento citado

acima: ”tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor que a morte pra

apagar as pegadas como a onda apaga toda escrita da areia”.

Entendemos, ainda, do fragmento anteriormente destacado, que ele expõe a

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o sujeito em crise, problematizado, é o das práticas discursivas, entre as contradições, sem identificação: sua subjetividade está entre as malhas da narrativa (tapete/tessitura), inserida nos/entre gêneros textuais. Na página branca do texto, inscreve seu diagrama humano com as marcas corporais, gestuais e performáticas de tensão expressiva, a fazer de toda palavra uma citação ou variável de arquétipo em estado de virtualidade que preexiste a toda produção textual (PALO, 2004, p. 7).

Atestando essa condição de sujeito contraditório, cuja identidade é sempre

forjada no/pelo discurso e cuja função é, conforme depõe Benjamin sobre a função da

personagem no Drama – servir meramente aos propósitos da peça-tapete - é no

diálogo parodístico com a fábula que se dá a continuidade, sempre ameaçada, da

“diagramação” narrativa desse sujeito:

Eu iria à festa com meus trapos mas quando o príncipe me visse entre

as debilóides das princesas. Na minha história nem faltava a amiga

vesga e rica já se esquivando porque a comparação era inevitável. “Quando meu amor completar quinze anos vai ser operada da vista na Inglaterra não é amor?” E o amor envesgando ainda mais de pura alegria o bocão rindo rindo. (AM, p. 78 ).

(...)

Tenho que contar uma história bem contada. Sou a Gata Borralheira meu príncipe. Chegou minha tia rica com minhas primas peitudas e me proibiram de sair de puro capricho a mais velha e mais nojenta fazendo beicinho “mamã mamã a prima é mais bonita do que eu! Uá uá!”... Cobriram minha cabeça com tanta porcaria que quando chegou o cara da corneta aquele dos avisos só se viu no borralho um monte de cinza. “Além das vossas bigodudas filhinhas não existe no vosso palácio nenhuma outra donzela que possa ser a dona deste sapatinho?” A tia então puxou as filhas para o meio do palco: “Nenhuma meu senhor. Na realidade só temos na cozinha uma trapenta bastarda que jamais poderia calçar tal mimo. Vamos meus tesouros cortem as pontas dos vossos dedinhos e o sapatinho vai servir como uma luva.”

Que horas são? As horas, tenho de saber as horas! (AM,

p.89-90).

O reconhecimento da personagem, conforme o fragmento, de que necessita

articular uma história com base na reapropriação de uma preexistente para simular a

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