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Segundo Ato: A alegorização da physis

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 68-72)

CAPÍTULO III – O TRAUERSPIEL DO CORPO ESCRITURAL

2 O corpo-emblema da escritura ruínica

2.2 Segundo Ato: A alegorização da physis

Rezava no missal empertigada, os lábios se movendo quase silenciosos, os olhos transparentes. Total beatitude. (...) Em meio da leitura imperturbável, pousou a mão na testa de Ana Clara:

― Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona ei reqiem sempiternam. ― Lorena, tenha juízo e pára com esse teatro, entende. Você vai chamar Madre Alix e eu vou desaparecer (...) não posso ficar nem nas imediações quando essa morte explodir e a polícia se instalar nessa mansarda! Conforme os jornais ela morreu devido a uma dose excessiva de barbitúricos, sabe o que isso significa, não sabe? (...) ― Você é perfeita, as freiras são santas mas e eu? Deixamos o corpo lá no quarto, não chamamos ninguém, melhor ainda, carregamos o corpo... Não posso continuar (...) Ana Clara já virou corpo. Nomes,

apelidos, tudo desapareceu e ficou só o corpo. Eu disse o corpo. Aceitei sua morte. E Lorena tomando providências sem maior aflição

(...) toda composta acendendo seu incenso e pedindo calma.

― Lógico que você precisa sumir, querida. Deixa o resto por minha conta.

― Que resto?

Ela sopra a brasa. O incenso começa a escapar em fios tênues pelos furos da ânfora dourada.

(...)

Abriu o armário e está escolhendo um vestido. Então a idéia maravilhosa é vesti-la? Evidente que não, deve vir mais coisa por aí, o modo como me olhou com aquele ar de sacerdotisa. A voz de vitral.

Lorena estendeu na cadeira um longo preto com bordados

prateados que começam na gola alta e descem com a fileira de botõezinhos até a barra. (AM, p.243). (...) já separou a meia-colante cor de fumaça e o biquíni de renda.

(...)

― Tive a intuição. Disso que aconteceu, digo mais ― murmurou ela pondo as mãos sobre o vestido. Está lívida: ― Meu irmão Remo que me mandou este Kaftan de Marrocos, eu juro que pensei, é Aninha que vai usar isto não vou usar nunca nem me serve, imagine. Quem vai usar é a Aninha. Para sempre, intuí. Tive um estremecimento enquanto fechava a porta do armário, era como se estivesse fechando seu caixão.

Pronto, começaram as iluminações. Desvio o olhar de Lorena. ― Podre de chique, hein, Ana Turva? Marrocos.

― E combina com os sapatos dela , pobrezinha. Pena que não tenha argolas de prata.

Ela disse argolas? Vai fazer-de-conta que Ana está viva. (AM, p.244). (...)

― Mas o que você vai fazer?

Não era preciso perguntar, seus gestos são nítidos. Ordenados.

Tirou o creme-base rosado e começou a maquilar Ana Clara. (...)seus

cansaço, sem desfalecimento prepara o freguês como se não tivesse feito outra coisa na vida.

― Venha, Lião, venha ver. Ah, como ela está ficando bonita. Ajoelhada

na cabeceira da cama, Lorena está sombreando de verde a pálpebra de Ana Clara. Às vezes se afasta um pouco para ver melhor o efeito. Parece satisfeita, o pincel na mão esquerda e a caixinha na direita, é canhota. Luminosa sob a base rosada,a face me

parece agora mais distante. Desinteressada. Será só impressão minha ou a meia-lua dos olhos diminuiu? Está ligeiramente encoberta, como se a névoa da noite tivesse chegado até ali. Não me lembro de tê-la

visto tão bem vestida e tão bem maquiada como nesta hora. Na poltrona, as correntes de prata.

― e os colares? ― pergunto.

― O vestido já tem muito bordado, fica mais fino assim (...) Os cabelos. Atenção especial para os cabelos. Vou buscar o frasco de perfume, faço questão de trazer o perfume. (...) não me seguro mais. Respiro bem fundo antes de falar: ― Você está exagerando, entende. Você sabe que está exagerando, não sabe? Estamos aqui feito duas dementes completas, presta atenção, Lena: vão botar ela numa

padiola ou sei lá o que e daqui vai reto pra autópsia, sabe o que é autópsia? O médico vem e retalha tudo e depois costura. Fim. Tudo

isso que você está fazendo vai ser desfeito na mesa de mármore, não

tem sentido, Lena. Não tem sentido!

― tem sentido sim. Me solta, querida, estamos atrasadas.

― Mas ela não vai pra festa!

Apanhou no chão os sapatos de fivela e delicadamente calçou-os na morta (...)

― Lena, daqui a pouco amanhece, tenho que ir embora antes que amanheça, certo? Mas não quero te deixar sozinha, diga logo qual é essa sua idéia e eu ajudo mas depressa, depressinha que no seu relógio já passa das três!

― Sim, vamos imediatamente ― murmurou ela entrando no banheiro, o chambre vermelho apertado contra o peito.

― Vamos, Lena. Essa bolsa atrapalha, você leva depois. Mas a bolsa tem que estar com ela, querida.

― Na cama?

― Mas ela não vai ficar na cama ― disse Lorena. Encarou a amiga: ― Ana Clara não vai ficar na cama.

― Não?

― Lógico que não. Ela não vai ser encontrada no quarto, ela não morreu no quarto, morreu noutro lugar.

―Onde?

― Numa pracinha. Mas por que você pensa que fiz esses preparativos todos? Vai ficar numa pracinha, tem um banco debaixo de uma árvore, é a praça mais linda que existe (...) ― veja que as coisas todas vão se

ajustando, o carro, a neblina. Nunca vi uma neblina tão providencial, a noite estava claríssima, lembra?. (AM, p.248-9).

Nos trechos destacados evidencia-se a tensão entre duas forças, dois vetores simbolizados pelas falas das duas personagens, Lia e Lorena. O primeiro vetor está representado em Lia, personagem que “aceita” a morte e gera um movimento para a separação, o distanciamento (grande espaço da morte); o segundo vetor tem em Lorena o valor que puxa para a presença, co-relação/co-munio (grande espaço da vida). O corpo de Ana Clara funciona como o vórtice poético que concentra essas duas forças relacionais.

No plano da linguagem, esses dois vetores presentificam uma prerrogativa da linguagem literária como expressão que:

De um lado, reserva-se aos medos e desejos humanos em articulação com as experiências e os modos adotados por uma cultura; de outro, seu poder para desafiar as normas vigentes dessa cultura, contradizer e gerar tensões dialógicas dentro de si mesma, sabendo ser a linguagem essencialmente diálogo (PALO, 2004, p.5).

Além dessa primeira observação, é possível ver que o corpo morto de Ana Clara abandona-se aos cuidados de Lorena, artífice que tem consciência de sua técnica e de seu método, conforme os trechos destacados em negrito. Podemos ver nessa consciência do artifício a presença do alegorista, para quem a visão da transitoriedade das coisas e a preocupação de salvá-las para a eternidade estão entre seus temas mais fortes (BENJAMIN, 1984, p.246).

Há, também, nesse embelezamento da morte operado pela personagem Lorena, a presença de uma deliberação artística reveladora de que o artista é aquele que, em vez de imitar a natureza, se permite retocá-la para corrigir suas imperfeições. Também o poeta se torna, assim, um poderoso interventor capaz de tudo remodelar a seu bel- prazer. Sobre essa tarefa do artista, Baudelaire declarou que ‘será sempre útil mostrar

os benefícios que a arte pode extrair da deliberação e mostrar ao mundo que trabalho exige este objeto de luxo que se chama poesia. (JUNQUEIRA, 2003, p. 38).

Esse “abandono do corpo” a uma técnica compositiva - vestuário, maquilagem etc - é explicado por Santaella (2004), como um movimento que possibilita ao homem lançar ao exterior suas funções,

se desprender do aqui e agora das circunstâncias, das imposições do meio ou das urgências vitais e projetar o que não estava aí. Desse modo, não é o corpo nu ou natural que estabelece a mediação ou fronteira entre o homem e o mundo, mas um corpo atravessado, modulado pela técnica, não sendo por acaso que esta se define como mediação. (...) Ao disseminar suas funções no espaço externo, nem o corpo nem o mundo permanecem os mesmos – o interior e o exterior, bem como a mediação entre eles, ganha novos contornos (p. 56). A técnica do artifício, presentificada na ornamentação do corpo da personagem, está relacionada à teatralização porque, analogamente à arte cênica, gera uma duplicação: da trama da vida pela trama do drama, do espaço físico pela cena e do ser humano pelo ator. Além disso, seu sentido primordial é

... dar visibilidade ao invisível, expô-lo como máscara e encarnação. A exteriorização – os elementos, as moldagens e as ações que a tecem – é sua anteface pública. Mas ela só pode existir, pela sua própria natureza projetiva, por uma relação orgânica e, no entanto, não poucas vezes opositiva, com sua outra face: a interioridade – alma, sentimentos , emoções, experiências íntimas e páthos de seu agente-paciente.. (GUINSBURG, 2001, p. 7).

A atitude de Lorena parece metaforizar também a atitude (re)criadora do artista, em sua luta contra o curso inexorável e “natural” do tempo, pois, conforme Gagnebin o artista “tenta, por assim dizer, adiantar-se ao tempo pela rapidez, criando imagens ao mesmo tempo efêmeras e duradouras que dizem a junção do temporal e do eterno” (2004, p.49).

No documento LCL Maria das Dores P Santos (páginas 68-72)

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