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A angústia entre a língua e a linguagem

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 53-65)

CAPÍTULO II O DISPOSITIVO DA PESSOA E SEUS PARADOXOS

1. A angústia entre a língua e a linguagem

A reviravolta pragmático-linguística, capitaneada principalmente por Heidegger

e Wittgenstein, significou uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, com

impacto em todo o mundo ocidental. A linguagem deixa de ser considerada mero

instrumento à disposição do homem e passa a ser compreendida como condição de

possibilidade de todo atuar humano, que sempre se dá por meio da linguagem

67

.

Aliás, há uma ruptura em relação ao que se compreendia, até então, em relação

ao próprio homem. Este não poderá mais ser considerado como um sujeito que se

contrapõe aos objetos e se reconhece independentemente destes, antes de qualquer atuar

seu no mundo, antes mesmo deste. É o fim do sujeito da modernidade e de seu modo de

é uma virada qualquer, como se vê no texto, mas sim uma “virada que volta”, donde necessitarmos de outra palavra, que bem poderia ser alguma forma arcaizante, como “retornamento” ou “retornaça”, reservando “retorno” para traduzir outra ocorrência no texto, tanto na forma verbal, como naquela substantivada, a saber, Einkehr, ou mais simplesmente, “reviravolta”, mas optamos por “retorsão”. A rigor, em vernáculo, atualmente, a grafia da palavra é “retorção”, mas a opção pelo termo arcaico se justifica por preservar o pospositivo do latim medieval que, por si, já significa “retorno”, “reversão”, tal como no espanhol torsión e no italiano torsione, além de expressar, igualmente, “tormento”, que não deixa de ser, também, um tema do texto e o que ele nos transmite”.

66 HEIDEGGER, Martin. De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador. In.: A

caminho da linguagem. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. 6ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança

Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012. Pág. 80.

67 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Pág. 717.

compreender respaldado na relação sujeito-objeto, ou seja, é o fim do modo de ser

transcendental

68

que sucedera a metafísica clássica

69

.

A partir de então a linguagem passa a ocupar um lugar tão fundamental na

filosofia que Gadamer vai dizer que “ser que pode ser compreendido é linguagem”

70

.

Mas reconhecer que o homem se compreende e compreende o mundo e os entes que o

compõe através da linguagem não significa já uma compreensão mais autêntica em

relação a essa. Muito menos uma compreensão autêntica sobre o próprio homem, pois

este, como já mostramos, originariamente se encontra na errância.

Somos, antes de tudo, na linguagem e pela linguagem. Não é necessário um caminho para a linguagem. Um caminho para a linguagem é até mesmo impossível, uma vez que já estamos no lugar para o qual o caminho deveria nos conduzir. Mas será que estamos mesmo nesse lugar? Será que somos e estamos na linguagem a ponto de fazermos a experiência de sua essência, de a pensarmos como linguagem, percebendo, numa escuta, o próprio da linguagem? Será que já estamos na proximidade da linguagem mesmo sem uma ação nossa? Ou será o caminho para a linguagem como linguagem o mais longo e extenso que se pode pensar? E não apenas o mais longo, mas também o mais cheio de obstáculos oriundos da própria linguagem tão logo tentamos pensar, genuinamente e sem desvios, a linguagem no que lhe é mais próprio?71

Portanto, pelo fato de já estarmos na linguagem, o acesso à sua compreensão fica

para nós obstado, encoberto, posto que é antecipado e, como condição de possibilidade

de tudo o que fazemos e compreendemos, é justamente o que não entra

originariamente – para nós no âmbito das questões que nos assolam. A linguagem

68 STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. 2ed.Ijuí: Unijuí, 2005, p. 73.

69 “Antes de mais nada, o que está em jogo é o sujeito cartesiano, ou seja, o sujeito como cogito, como princípio evidente, como afirmação da subjetividade. E o que desejam os denominados pós-modernos é a dissolução desse conceito de sujeito, a partir da idéia central de que seria necessário operar o descentramento do sujeito para o melhor entendimento das questões postas a ele. O primeiro passo foi dado pela denominada ‘reviravolta’ linguístico-pragmática que tentou substituir os paradigmas da subjetividade pelos paradigmas da linguagem.” In.: GUIMARÃES, Aquiles Côrtes. Fenomenologia e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Pág. 94

70 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 1997. Pág. 612.

7171 HEIDEGGER, Martin. O caminho para a linguagem. In: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 6ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012. Pág. 191-2.

permanece sendo compreendida como expressão, como meio a partir do qual se realiza

algo que está no âmbito do ideal, do pensamento. Não se trata de indagar a linguagem

deste modo, como o que possibilita nossa compreensão de mundo, mas

o que Heidegger pretende, não negando o valor do caráter instrumental da linguagem, é fazer o ‘passo para trás’, a fim de poder pensar a relação originária do homem com a linguagem, que, para ele, não constitui uma pesquisa a mais ao lado das ciências e da filosofia da tradição, mas é uma descida a seus ‘fundamentos’, pois é essa relação originária que é sempre pressuposta em toda ciência e filosofia.72

Manfredo Araújo de Oliveira, aprofundando sobre esta questão, traduz o Dasein

por eis-aí-ser

73

, de modo a explicitar que a linguagem não é um meio através do qual o

homem, isto é, o Dasein, se utiliza para expressar sua compreensão de si mesmo e

também do ser. Isto porque o ser não é, quer dizer, não é ente. Não é o ente supremo

que fundamenta todos os demais. O ser, portanto, se dá. E se dá na linguagem.

O Dasein é eis-aí-ser e, como ser-no-mundo, só há mundo porque o Dasein é

desvelamento do ser, seu ser é compreensão prévia do ser, presença do ser. Sendo o

Dasein ec-sistência, ele é o ente através do qual o ser se dá. “É o próprio ser que assume

o homem para seu acontecer”

74

. Ou seja, o ser acontece, e o faz através do homem, que

é solicitado para responder ao seu chamado, e o advento do ser, seu interpelar o homem

que (re)cria mundo é linguagem. Acontece que esta dimensão ontológica da linguagem,

porque o ser se dá e faz-se compreender enquanto falamos e lidamos com os entes, fica

encoberta pela dimensão ôntica.

Toda linguagem humana é perpassada por uma dimensão de profundidade anterior à instância proposicional, fonte mesma de toda fala. Nesse sentido, pode-se dizer que nossa linguagem é sempre marcada por uma tensão estrutural, pois nela acontece a diferença ontológica: em nível proposicional falamos dos entes, mas enquanto falamos dos entes, apontamos para o ser que é a condição de possibilidade do nosso falar sobre os entes. Por isso, a dimensão radical da

72 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Lingüístico-Pragmática na filosófica contemporânea. 2ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Pág. 205.

73 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Lingüístico-Pragmática na filosófica contemporânea. 2ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Pág. 209.

74

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Lingüístico-Pragmática na filosófica contemporânea. 2ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Pág. 214.

linguagem é o dizer o ser. A linguagem, contudo, não produz o ser nem o domina, seu papel é mediar sua manifestação. O ser- homem é, assim, inseparável da linguagem, pois, na medida em que vela pela revelação do ser, ele abre um espaço para emergência de uma vida marcada pelo sentido. Assim, fica aberto para a verdade de tudo: falar é desvelar o mundo, tornar possível a emergência do sentido essencial e constitutivo de tudo. É só a partir da linguagem que o homem tem propriamente o mundo, onde todas as coisas podem encontrar seu lugar.75 (grifos nossos)

Heidegger proclama o fim da Filosofia, dizendo com isso que o fim desta não

significa simplesmente seu término, mas seu acabamento, seu triunfo que acontece com

seu desdobramento nas ciências. Estas, assim como a Filosofia – enquanto metafísica –

são caracterizadas por não pensarem a diferença entre ser e ente, apesar de sempre

pressuporem esta

76

. Não pensam, exatamente, a linguagem de modo essencial, não

pensam a abertura na qual o ser dá-se ao Dasein como linguagem.

Nesta abertura é que os entes se apresentam ao Dasein, que os compreende na

medida em que já antecipou o ser, mas este antecipar é o que fica encoberto. Pois a

própria abertura ao se dar-se, se vela. Heidegger esclarece melhor a questão fazendo

uma referência à clareira de uma floresta. Diz que podemos percebê-la ao ser iluminada,

mas não porque a luz cria a clareira; muito pelo contrário, a luz, o iluminar pressupõe a

clareira. A relação entre ambas encobre um jogo entre claro e escuro, pois na abertura

em que acontece a iluminar do ente que se presenta, o ser dá-se encobrindo-se. A

filosofia, aliás, o Dasein – e, portanto, tudo o que é humano – acontece da dimensão do

aberto, da clareira. Aí, no encontro, há o conhecer, a possibilidade de todo

conhecimento, mas da clareira mesma, desta abertura, a Filosofia nada sabe

77

.

O que designamos no primeiro capítulo como uma possibilidade de um modo-

de-ser-próprio do Dasein pode, agora, ser melhor compreendido. Se dissemos que este

modo de ser teria que se dar com um salto no Abismo, podemos perceber agora que este

75 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Lingüístico-Pragmática na filosófica contemporânea. 2ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Pág. 222.

76 HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In.: Coleção os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2000. Pág. 95-98.

77 HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In.: Coleção os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2000. Pág. 102-104.

salto deve ser para dentro da clareira. Pensar-o-Ser requer, então, pensar a relação

originária entre o Dasein e a linguagem.

Heidegger termina o ensaio citado com a indagação: “de onde, porém, vem e

como se dá a clareira? O que fala no dá-se?”

78

O fim da Filosofia reserva ainda,

portanto, a tarefa de pensar(-o-Ser).

A clareira “vem”, ou melhor, existe pela própria condição do Dasein que

destacamos no início do caminho: sua finitude. Esta o caracteriza como ec-sistente e,

assim, como vazio, como uma falta que é falta de sentido. Esta não é percebida

propriamente, pois a clareia encobre-se enquanto tal e o fato de não existir um ente

transcedente – pelo menos não um que possa ser por nós conhecido – que justifique

nossa existência não invalida isto. Pelo contrário, pois o que está em jogo é não “A

coisa” em sua realidade efetiva, mas seu lugar, a partir do qual o Dasein se re-conhece.

O que queremos dizer é que, mesmo não sendo-nos possível acessar o que antes

designamos como Real, o vazio, o mistério, existe o mundo e a realidade. Heidegger

fala numa quadratura entre céu e terra, divinos e mortais. E diz que

o manifestante jogo de espelhos da <<unicidade>> de terra e céu, divinos e mortais, chamamos nós mundo. O mundo é, enquanto ele <<munda>>. Isto quer dizer, o <<mundar>> do mundo não é explicável por qualquer outra coisa, nem prescrutável a partir de qualquer outra coisa.” Porém, “os Quatro unidos são logo sufocados no seu ser, quando os representamos apenas como realidades desmembradas, que devem ser fundadas umas sobre as outras e explicadas umas a partir das outras79.

Somente pelo caráter de finitude que marca o Dasein este é fundamentalmente

ec-sistência, então, somente por ser originariamente não-ser, por carecer de sentido “em

si mesmo” e, apesar disso, existir deste modo, é que pode o Dasein, simbolicamente,

reconhecer-se na relação de transcendência. Não é que o Dasein reconheça-se como

carente de sentido e, então, busque preencher essa falta. Pelo contrário, por já desde

78 HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In.: Coleção os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2000. Pág. 108.

79 HEIDEGGER, Martin. A coisa. Tradução de Eudoro de Souza. In.: SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Lisboa: Guimarães Editores, 1984. Pág. 267-8.

sempre se reconhecer enquanto subjetividade ao antecipar a compreensão do ser, o

Dasein encontra-se, originariamente, na errância.

Deste modo, o ser não é compreendido na sua essência, isto é, como abertura,

mas é (in)compreendido como a transcendência e/ou seu fundamento. Por isso que não é

somente por colocar no lugar do Outro um ente – uma divindade, espíritos, um mito –

que o Dasein encontra-se na errância, mas justamente por haver o lugar da

transcendência que é, antecipadamente, incompreendido. Esta incompreensão será a

condição de possibilidade dos fundamentos.

Assim, o “fundamento do fundamento”, ou melhor, sua essência, reside no

modo-de-ser-impróprio em que o Dasein já desde sempre se encontra. Por se

compreender, e tomar tal compreensão como uma realidade, o Dasein pode fundamentá-

la. A realidade do mundo – enquanto “mundar” – portanto, não é simples decorrência da

linguagem, mas está ligada ao fato desta ser tomada onticamente, ou seja, ter sua

essência encoberta pela língua. Esta não apenas o institui, mas convoca o Dasein a re-

conhecê-lo, isto é, conhecer o mundo como realidade, como dado, assumindo a relação

que se instaura na abertura como condição de possibilidade para compreensão do ente

em sua totalidade.

O fundamento está necessariamente ligado à língua que constitui o mundo e que

se apresenta(m) ao Dasein com uma força quase que irresistível. É neste sentido que

Lacan usa a palavra Letra, como sendo a língua que condiciona o encontro de ser e

Dasein em determinado momento, em que a força daquela não repousa em sua

objetualidade, mas à sua função, pois a Letra não simplesmente um signo. Isto é, o

Dasein não se reconhece, digamos, nos textos que se estabelecem, mas em seu modo de

leitura em que os repete, recompondo-os. A força-da-Lei não está no que ela diz, pois

isto não é algo (pré)determinável, mas sim no fato de ser a possibilidade de se dizer

algo, de se estabelecer e re-conhecer sentidos. Como nos diz Nancy, fazendo uma

leitura de Lacan, a força está no título da Letra (significante), que não é mera letra

(signo)

80

. Ao se permanecer na errância, o Dasein é convocado a descobrir o sentido que

está na base de toda e qualquer fundamentar; e não se atenta para o caráter ficcional –

podemos até dizer impróprio – deste modo-de-ser, que não é des-encoberto. O imperar

80 NANCY, Jean-Luc. O título da letra: uma leitura de Lacan. Tradução de Sérgio Joaquim de Almeida. São Paulo: Escuta, 1991. Pág. 53-57.

da verdade como adequação, que mostramos ser inerente à metafísica, encobre o acesso

à sua essência. Assim como a língua encobre o acesso à linguagem.

A força da língua reside em esta ser a condição de possibilidade de todo

conhecimento e, portanto, de Poder. Pois este é inerente à divisão que a língua propicia,

ao instituir a possibilidade de sentido e, a partir disso, a necessidade de fundamentar. É

uma relação que “sustenta a si mesma”, pois a possibilidade de fundamentar só se

garante graças à necessidade do sentido. Os polos sustentam-se respectivamente,

deixando, porém, encoberta a (im)possibilidade desta relação, que se mantém somente à

força, contra qualquer possibilidade de demonstração que sua condição de possibilidade

é justamente pré-supor como dado o que nos é não só impossível de conhecer, mas que

nos reclama para nosso modo-de-ser-próprio, isto é, o mistério. No encobrimento deste,

vige a força, ou melhor, a violência da língua que nos de-termina.

Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência e dessa ubiqüidade é que o poder é o parasita de um organismo transsocial, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.81

81 BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França. Pronunciada em 7 de Janeiro de 1977. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cutrix. Pág. 10-11.

O que Barthes percebe é que o Poder exercido por uma pessoa ou um conjunto

delas sobre as outras não constitui a sua essência, mas apenas seu modo de expressão,

que mascara aquela. Não se capta a essência do Poder ao identificar um ente que se

sobrepõe a outro, mas que todo relacionar humano é, já, exercício de Poder, pois as

relações só são possíveis na medida em que as partes que se relacionam já antecipam

uma compreensão de mundo, dos entes em sua totalidade, isto é, já trazem em si, no

relacionar, o sentido-do-ser, que não é-lhes nem mesmo perceptível enquanto tal, mas

que condiciona todo seu agir, desde seus desejos às ações em relação a eles.

A língua é o que possibilita o relacionar, mas somente na medida em que implica

uma alienação do Dasein quando fala, em que se compreende, antecipadamente, como

uma subjetividade, sem o que seu discurso não poderá fazer sentido. Não somos nós que

falamos, portanto. É a língua que fala através de nós. “Mas a língua, como desempenho

de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente:

fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”

82

.

O que acontece é que, na verdade, não dizemos, mas somos-ditos. Através de

nós fala o Outro, ou melhor, fala a relação que se estabelece desde o lugar do Outro, que

é vazio. Quando falamos, o que acontece é que a língua toma o lugar deste vazio e se

apresenta como sentido, mas este não chega a nós apenas como uma possibilidade, mas

como Lei. Se dissemos que a clareira vem da condição do Dasein como e finitude e,

portanto, ecsistência, dizemos agora que o que dá-se na clareira é seu próprio

encobrimento, em que o Dasein originariamente reconhece-se como uma subjetividade,

encobrindo sua essência, que é não-ser.

Porém, apesar de se reconhecer originariamente na errância, submetido às

relações de Poder que o conformam, o Dasein é essencialmente abertura. A língua

institui (um)a realidade, mas não consegue nunca tocar o Real. Ela mascara o mistério,

mas, não consegue oferecer uma solução para a questão fundamental do Dasein. Na

verdade, como diz em ensaio primoroso João Bosco Abero, “linguagem e realidade

nada têm em comum. O real é unitário. A linguagem é binária”

83

.

82 BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França. Pronunciada em 7 de Janeiro de 1977. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cutrix. Pág. 13.

O autor mostra que a realidade, que se institui na e através da língua, na verdade

mascara a realidade, ou melhor, o Real. Ao instituir (um)a realidade a partir da qual dá-

se o sentido que possibilita e condiciona as relações humanas, na verdade encobre-se o

que há de mais humano: o fato de não-sermos. A língua não tem uma ligação com o que

chamamos Real, muito pelo contrário, ela impede que o compreendamos enquanto tal.

Aqui chegamos a uma formulação que nos parece de fundamental importância:

Gramática é fração. A um sujeito se atribui uma ação ou dele se declara um estado. A isso se reduz a mecânica frasal.

Sujeito é uma fração do real e, portanto, sua negação. O sujeito, que é um termo, poderia ser representado por um círculo traçado num plano. A parte abrangida pelo círculo implica a renúncia de toda a porção infinita que circunda o círculo. Dentro do círculo, haverá, de igual modo, renúncia a n pontos integrantes do plano. Sendo o plano a realidade, tem-se que, à base da renúncia à quase totalidade do plano, forma- se um termo apto a desempenhar a função de sujeito. Por procedimento análogo, chegaremos ao predicado.

Os termos da mecânica binária da linguagem (sujeito e predicado) formam-se à base da escolha arbitrária de n elementos contidos na trama do real.84

Pois bem, resumindo, temos que em seu modo-de-ser-impróprio o Dasein já se

compreende como uma subjetividade, isto é, assujeitado. E a sujeição não lhe aparece,

primariamente, como algo negativo, mas algo necessário. A sujeição é intrinsecamente

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 53-65)